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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Rádio ATÉIA - Clementino Rodrigues (Riachão)



Gravado por nomes como Caetano e Cássia Eller, compositor Riachão vai para o estúdio recuperar canções
Aos 91 anos, Clementino Rodrigues vive até hoje, 'na roça, com um facão do lado, criando galinha, plantando aipim e cantando'
'Tenho mais de 500 músicas. Jesus me soprou o primeiro samba quando eu tinha 15 anos', diz


MARIANA TIMÓTEO DA COSTA (EMAIL·FACEBOOK·TWITTER)



SÃO PAULO - Se o samba nasceu lá na Bahia, há 91 anos ele está muito bem encarnado numa rua chamada Língua de Vaca, no bairro do Garcia, um dos mais antigos e tradicionais de Salvador. É ali que nasceu e vive até hoje, “na roça, com um facão do lado, criando galinha, plantando aipim e cantando”, Clementino Rodrigues, o Riachão. Sambista reverenciado, gravado por Caetano Veloso e Gilberto Gil (“Cada macaco no seu galho”, no disco “Expresso 2222”, de Gil, de 1972) e Cássia Eller (“Vá morar com o diabo”, em “Acústico” MTV, de 2001), Riachão é dono de um repertório tão amplo quanto desorganizado e inacessível ao público: gravou apenas vinis nas décadas de 1950 e 70, além de um CD promocional, em 2001. Mas a água do riacho grande vai mudar de curso, numa aguardada notícia para quem não é ruim da cabeça e nem doente do pé. Riachão está gravando um disco de 13 faixas inéditas em São Paulo. Além disso, sua gravadora, a paulistana Comando SD, tem um projeto de registrar, no processo de realização deste disco, previsto para ser lançado em dezembro, o máximo possível do repertório do sambista.



— Eu tenho mais de 500 músicas. Jesus me soprou o primeiro samba quando eu tinha 15 anos e continua me mandando samba até hoje. Me esqueci de vários, mas me lembro de muitos. Agora, quando eu me lembro, a gente grava — conta Riachão na sede da gravadora, onde passou sua segunda temporada na semana passada.

Lúcido, com a musculatura firme — só precisa dar a mão para quem estiver do lado para descer escadas —, com lenço no bolso de trás da calça clara, toalha no pescoço, mão cheia de anéis, boina e cabeça repleta de lembranças, o nonagenário quer fazer o que nunca teve oportunidade: “Jogar a obra para o comércio, vender”.

A iniciativa de resgatar Riachão foi da produtora baiana Vania Abreu, que foi procurada por sobrinhos do sambista quando ainda vivia em Salvador. No ano passado, Vania se mudou para São Paulo e virou sócia da Comando, dando início ao projeto. O CD está garantido; os demais planos — um DVD, shows e um site onde as demais músicas de Riachão serão disponibilizadas — ainda estão em fase de captação de recursos. Riachão veio a São Paulo pela primeira vez em abril deste ano. Passou uma semana no estúdio, quando 59 músicas inéditas lhe voltaram à memória.

— Daí tiramos as 13 do disco. É claro que não chegaremos às 500 que ele diz ter. Mas a ideia é ir aumentando o registro, com a consciência de que estamos lidando com um senhor de 91 anos, que quase nunca registrou nada por escrito e aprendeu a ler apenas o suficiente para sobreviver — explica Vania, cujo método de trabalho é simplesmente colocar Riachão no estúdio e começar a conversar com ele.

Cantando e contando histórias

E o samba chega, assim, naturalmente, com o vocabulário restrito de quem nunca morou em outro lugar senão a tal Língua de Vaca, ganhou a vida como alfaiate, hoje vive de uma aposentadoria e de um direito autoral ou outro, e começou a cantar seus sucessos na Rádio Sociedade da Bahia, nos anos 1930. Riachão é ruim de datas. Como seu repertório é oral, pedir para ele lembrar quando algum evento aconteceu é completamente inútil. Conta muitas histórias e cantarola entre elas.

— A Rádio Sociedade da Bahia guardava todas as músicas dos malandros, as minhas 500 estavam lá. Aí teve um incêndio e destruiu tudo, tem muitas que Jesus me manda de novo, tem outras que não chegam mais à minha mente — diz Riachão, que, depois de Dorival Caymmi, foi o primeiro baiano a ser gravado no Rio de Janeiro, ainda na década de 1950.

Naquela época, três músicas apareceram num disco de Jackson do Pandeiro: “Meu patrão”, “Saia” e “Judas traidor”. Mas foi em 1972, quando Caetano e Gil voltaram do exílio em Londres, que o sambista ficou mais conhecido. Os dois escolheram gravar “Cada macaco no seu galho” como a primeira música da volta à Bahia.

— Fiquei muito feliz, cantava essa música há muito tempo, os dois me disseram que iam me ouvir no rádio. Mas sabe como é, né? O público conhece o artista, mas o artista não conhece o público. Depois (em 2001) veio aquela menina moderninha (Cássia Eller), que gravou a música do diabo, a única minha que eu não gosto, mas reconheço e sou agradecido pelo sucesso dela — conta Riachão.

O sambista lembra que teve a ideia para “Vá morar com o diabo” a partir de uma frase dita por um amigo, que reclamara da mulher.

— Eu fiz porque a música veio. Mas eu jamais desejaria uma coisa tão ruim para nenhuma mulher minha.

As duas mulheres oficiais (“gatas maravilhosas”, elogia) foram sempre musas inspiradoras. Lalinha e Dalvinha deram um total de 12 filhos e oito netos para Riachão. A primeira morreu de diabetes; a segunda foi embora há cinco anos, num trágico acidente de carro, no Rio, no qual o sambista perdeu ainda dois de seus filhos.

— Tem dias que eu amanheço chorando que só vendo — emociona-se, para logo cantarolar “Montão de ouro (Dalvinha)”, em homenagem à mulher: “Dalvinha, o teu olhar é um montão de ouro, eu vou te dar meu tesouro, se não me deres teu amor, eu morro”, que estará no disco ao lado de “Eu queria ela (Amor proibido)”. (Veja ele cantando um trecho da canção no vídeo acima)

O acidente ocorreu logo após o réveillon de 2008, quando Riachão tinha 86 anos. Além de Dalvinha e dos filhos Vonei, então com 29 anos, e Railene, de 25, outros dois parentes do compositor morreram. Na época, ele se isolou em casa, de onde só saía para visitar as sepulturas dos familiares.

Mas o tempo passou e, hoje, mais do que chorar, Riachão ri, e a música é, como diz, “sua alegria de viver”. Recorda-se dos shows que fez e ainda faz (“é só me chamar”). Lembra-se também de quando participou de filmes como “Os pastores da noite”, de 1975, baseado na obra do amigo Jorge Amado, e de quando foi, em 2001, protagonista do documentário “Samba Riachão”, no qual recebe elogios rasgados de conterrâneos como Caetano, Gil, Tom Zé e Carlinhos Brown (o filme, dirigido por Jorge ALfredo, está disponível no YouTube).

Produtora é irmã de Daniela Mercury

Vania Abreu e Riachão, ao lado do também baiano Cássio Calazans, que faz os arranjos e toca quase todos os instrumentos nas gravações, querem mostrar essa alegria — “saindo do folclórico” — para o Brasil.

— O samba de Riachão é pra cima. Não tem nada a ver com a melancolia de um Noel Rosa. Aliás, é burrice compará-lo a Cartola, a Noel, a Pixinguinha... A beleza de Riachão está na simplicidade, neste universo de palavras restritas onde ele não dramatiza, e sim exibe aquele umbigo negro da felicidade que vem da África e a gente não sabe direito como explicar — filosofa a produtora, que também é uma cantora estabelecida na Bahia, com discos de relativo sucesso no currículo, como “Seio da Bahia”, de 1999, e participações em trilhas sonoras e em CDs de outros artistas baianos, como sua irmã mais velha e mais famosa, Daniela Mercury.

Para Cássio, além de ser uma honra trabalhar com Riachão, “ele é como um pilar, um museu, onde a gente chega, olha e interage”.

O pupilo de 91 anos parece concordar com os comentários segundo os quais seu samba irradia alegria e merece ser vendido e, principalmente, registrado para a posteridade.

— Sou um malandro da velha guarda — atesta, cantarolando mais um samba, ainda sem nome, mas que, promete, estará no disco: “A minha vida é alegria/ À tristeza não dou bola/ Se surgir algum problema/ Com samba resolvo na hora”.


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