Ganhou repercussão decisão proferida, há poucos dias, em que se discutiu o conceito de religião.
A questão ligava-se à possibilidade de retirar do Youtube vídeos que conteriam afirmações de intolerância ou discriminação contra “manifestações religiosas afro-brasileiras”, consoante se afirmou (cf. reportagens realizadas a respeito, aqui e aqui).
Temos tido, há tempos, embates relacionados, de algum modo, à noção de liberdade religiosa, ou de atos praticados com alguma justificativa religiosa.
Trata-se de problema de escala global. Lembre-se, por exemplo, da condenação de uma jovem à morte, no Sudão, por ter abandonado a fé islâmica (cf. notícia aqui). Por aqui, um vereador pediu a demissão de funcionária da Câmara de Vereadores por afirmar que “Deus não existe” (cf. notícia aqui).
Com freqüência, os debates realizados a respeito são marcados por algum tipo de preconceito. E, não raro, dispositivos constitucionais são esgrimidos para justificar, por exemplo, a crítica a alguma prática religiosa.
Instado a se manifestar sobre problemas de tal dimensão, ocupam-se os tribunais de tentar dar contornos ao que pode e ao que não pode ser feito, em nome de ou contra alguma religião.
Afirma-se que o Brasil é um Estado laico, o que significa que não acolhe, impõe, estimula ou segue dogmas impostos por qualquer religião, mas também que não reprova uma ou outra religião.[1]
Isso não significa que o Estado é alheio a valores que inspiraram e ainda inspiram boa parte das religiões.
Entendo que não se deve confundir religiosidade e espiritualidade. Se não se admite ao Estado apreender dogmas e rituais religiosos, é difícil negar que o ser humano não tenha uma dimensão espiritual, e esta aspiração foi incisivamente expressada, no texto constitucional.[2]
A dignidade da pessoa humana funciona como eixo central dos direitos fundamentais e essa ideia, incorporada no seio da Constituição, ostenta o que de mais espiritual tem o ser humano: o de reconhecer-se a si mesmo e a seus semelhantes como tal, procurando aprimorar-se como pessoa e, ao mesmo tempo, cuidando para fazer com que o mundo à sua volta melhore.
A laicidade do Estado não permite que se afirme inexistir um princípio que norteia a atuação estatal e que também deve guiar as pessoas, no relacionamento que mantém entre si. Concordo com Enzo Bianchi, que afirma que o Estado, sendo laico, deve defender a dignidade de todos, a começar por aqueles a quem ela é constantemente negada, propiciando que cada um busque dar plenitude de sentido à sua vida.[3]
Esse, segundo penso, é o sentido que devemos extrair da norma constitucional, que, alicerçado nos direitos fundamentais, é, inegavelmente, espiritual.
[1] Afirmou-se, no julgamento da ADPF 54, que “o Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro”. Isso significa que, “se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais.
Vale dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual — ou a ausência dela, o ateísmo — serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade religiosa não se tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não professem o credo inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia desejem rever a posição até então assumida”. Assim, “ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover qualquer religião. Todavia, como se vê, as garantias do Estado secular e da liberdade religiosa não param aí — são mais extensas. Além de impor postura de distanciamento quanto à religião, impedem que o Estado endosse concepções morais religiosas, vindo a coagir, ainda que indiretamente, os cidadãos a observá-las. Não se cuida apenas de ser tolerante com os adeptos de diferentes credos pacíficos e com aqueles que não professam fé alguma. Não se cuida apenas de assegurar a todos a liberdade de frequentar esse ou aquele culto ou seita ou ainda de rejeitar todos eles” (STF, ADPF 54, trecho do voto do rel. Min. Marco Aurélio, j. 11 e 12.04.2012).
[2] Escrevi a respeito na obra Constituição Federal comentada (3.ed., Ed. Revista dos Tribunais), comentário ao artigo 19 da Constituição.
[3] “La laicità dello stato è allora quella opzione di fondo che consente di reinventare continuamente strumenti condivisibili e linguaggi comprensibili da tutti, di garantire presidi di libertà e di non sopraffazione, di difendere la dignità di ciascuno, a cominciare da quelli cui viene negata, di consentirea ciascuno di ricercare, anche assieme ad altri, la pienezza di senso per la propria vita” (Enzo Bianchi, La spiritualità di chi no crede, disponível aqui).
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
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