Riscala Corbaje, ex-agente do DOI, revela ao MP como torturou mais de 500 presos
Pelas mãos de ‘Nagib’, como era conhecido, passaram 500 presos em quase dois anos
Sem arrependimento, torturador confessa que o aparelho mais eficaz era o pau de arara
CHICO OTAVIO (EMAIL)
Coronel reformado da PM trabalhou por dois anos no DOI-I da Barão de Mesquita, na Tijuca Leo Martins
RIO - De 1970 a 1972, durante o auge da repressão política no país, as sessões de interrogatório no Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI-I), na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, chegaram a mobilizar 20 torturadores para cada preso. A brutalidade servia para arrancar informação em menos de 48 horas, a tempo de fazer novas prisões. Era “um massacre”, como definiu o coronel reformado da Polícia Militar Riscala Corbaje, ex-chefe de equipe de interrogadores do DOI, ao falar pela primeira vez sobre sua participação direta nas torturas. Em três horas de depoimento ao grupo Justiça de Transição do Ministério Público Federal, Riscala contou que, ao chegar, o preso era levado à “sala do ponto”, um lugar tão terrível que “até o diabo, se entrasse ali, saía em pânico”.
Pelas mãos de Riscala, que usava nos porões da ditadura o codinome “Nagib”, passaram cerca de 500 presos nos quase dois anos que esteve no DOI. Embora admita o envolvimento em sessões de eletrochoque e a prática de outras violências físicas contra presos, ele disse que o aparelho mais eficaz para fazer o interrogado abrir a boca era o pau de arara, que consiste em atravessar uma barra de ferro entre os punhos amarrados e a dobra do joelho do torturado, e colocá-la entre duas mesas, deixando o corpo da vítima pendurado. Riscala explicou que a dor era indescritível, pois todo o peso do corpo do torturado ficava “em cima dos dois nervos que passam por debaixo da perna”.
- Não tem necessidade de fazer nenhum outro sofrimento, choque, nem nada. Os outros davam tapa, davam soco. Cada um trabalhava de um jeito lá. Tu já viu estudante? Você pega um estudante, você bota ele com o peso do corpo numa barra de ferro e deixa ele 15 minutos pendurado no pau de arara. Não precisa dar choque. O cara urra de dor. Sabe por quê? Atinge os nervos da perna. O cara quer descer de qualquer maneira.
Torturador quer paz
Cabia a Riscala, nas sessões que comandava, decidir quem descia do pau de arara e quem continuava pendurado. Desde que figurou pela primeira vez em listas de torturadores, o coronel nunca se deixou ser visto. Conseguiu ficar nas sombras até mesmo em 1985, já na democracia, quando foi descoberto e denunciado por ex-presos políticos no cargo de assessor de Segurança do Banerj, no governo Brizola. Hoje, completamente cego e doente, ele disse que revolveu contar o que sabe para se livrar do problema:
- Só quero de vocês (membros do Ministério Público), pelo amor de Deus, que me deixem em paz. Eu sou cardíaco, cheio de problemas, tenho um neto que é excepcional, cada vez que eu venho para cá, fica a família toda nervosa. Eu falei para a mulher: não vou deixar de depor, estou cansando o meu advogado. Não tenho nada a esconder.
Riscala chegou ao DOI com outros nove oficiais da PM recrutados para interrogar presos. Na mesma época, segundo ele, “paraquedistas do Exército eram convocados para trabalhar na área de buscas, prisões e trocas de tiros”. A unidade era comandada pelo então major José Antônio Nogueira Belham, hoje general reformado e um dos cinco denunciados pela tortura, morte e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, entre 20 e 21 de janeiro de 1971, no mesmo DOI da Barão de Mesquita.
O movimento de prisões, descreveu o militar, era muito grande e só havia duas salas para interrogatório. A sala 1 era a “sala do ponto”, onde o preso passava, em média, por sessões de 48 horas de tortura, sendo “jogado num corredor” após o interrogatório:
- Quando chegava um preso, ficavam 20 para interrogar da pior forma possível uma única pessoa. De vez em quando, essa pessoa, por algum motivo, desmaiava ou qualquer coisa durante o interrogatório. Estávamos vivendo o apogeu de assaltos a bancos, invasão de residência, policiais feridos, incêndios. Era uma guerra constante.
Riscala disse que, por ser considerado um especialista nas mais de dez organizações da esquerda armada que atuavam no país, muitas vezes era chamado em casa por outros interrogadores menos experientes:
- Me chamavam para tirar dúvidas sobre as mentiras do preso. Eu sabia porque lia. Aí eu ia. Dizia, essa organização não é do Rio, é de outro Estado. Se ele veio para o Rio, ele veio para uma reunião, e então já tinha assunto, o que aquele cara estava fazendo aqui. O problema é o que fazer com o preso no estado em que ele ficava depois.
O coronel reformado explicou que tinha facilidade de interrogar, inclusive com a ajuda de um organograma de cada organização, porque pertencera ao serviço reservado da PM (P2) e havia passado muito tempo “interrogando presos de favelas para saber onde havia depósito de armas”. O problema, ele reconhece, era encontrar o preso já sem condições de ser interrogado.
- Uma vez, conversando com esse outro capitão, falei: ‘Esses caras (outros agentes) chegam aqui, não sabem o que perguntar, fazem o que querem com um preso e, depois, largam o cara em mau estado. E o que a gente, que está de plantão 24 horas, vai fazer com esse pessoal? Às vezes, você queria falar com um preso. Mas, dependendo do lugar em que ele estava machucado, não conseguia falar’.
Embora a ideia fosse não juntar os presos da mesma organização na mesma cela, Riscala disse que o DOI efetuou tantas operações que a carceragem, gerida pelo Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército (PIC), enfrentou uma superlotação ou “montoeira de presos”.
- Quando nós entramos, era uma merda só porque não havia organização no DOI. Havia muita gente sendo presa o tempo inteiro. Nós tínhamos umas 20 guarnições de equipe de rua. Havia denúncias surgidas em São Paulo, dizendo que no Rio, em tal rua, tinha um estudante de Medicina, que era da mesma organização de lá, porque um preso de lá denunciou, havia estado em tal apartamento. Havia muita prisão, mas os interrogadores não sabiam perguntar. O DOI se fazia passar por idiota.
Sem arrependimento
Para tentar organizar o porão, Riscala disse que montou um painel, com o organograma de cada organização, evitando assim a mistura.
- Se você tivesse, de cada organização, um painel, você poderia orientar. Nós tínhamos esse quadro na sala. Quando alguém tinha dúvida, ia lá e olhava. Quando nós começamos a organizar a coisa, começou a haver uma confiança maior do 1º Exército, porque havia menos gente ferida - lembrou.
Nas sessões de tortura que comandava na “sala do ponto”, Riscala só retirava o preso do pau de arara depois que ele denunciasse os companheiros:
- Chegava ali (na sala) e dizia: ‘Zairo, você quer descer do pau de arara?’ Ele dizia: ‘Quero!’. ‘Mas você vai conversar legal comigo? Vou mandar te levar para uma outra sala, tu vai sentar, vou te dar água, mas nós vamos conversar legal. Agora eu tenho dados que você deve me dizer de outras pessoas que te indicaram, se você não me disser, vai voltar para a sala do ponto’. Aí, ele dizia assim: ‘Você é um torturador. Não é?’ Porque é mesmo! Porque se ele não me contasse, tinha um problema de consciência. Ia voltar para lá por minha culpa. Mas, ao mesmo tempo, tinha que proteger a organização dele, pelo fanatismo político. Então, ele não queria entregar os colegas.
Riscala lamentou que o médico destacado para monitorar as sessões de tortura, avaliando a capacidade de resistência do preso, tivesse sido o jovem e inexperiente tenente Amilcar Lobo, então com 23 anos:
- Amilcar Lobo, o Doutor Carneiro, era um cara tão idiota, mas tão idiota, tão infantil, que eu dizia: ‘Esse cara não é médico?’ Às vezes, o cara (preso) estava desmaiado, e ele (Amilcar) dizia que podia. Mas não podia, cara! Eu dizia: se a gente não organizar o interrogatório, a gente não vai ter produtividade aqui.
Outro erro do Exército, segundo ele, foi destinar ao DOI todos os oficiais que estavam ameaçados de desligamento por problemas disciplinares:
- O Exército pegou todos os oficiais que iam ser mandados embora, major cachaceiro, capitão contrabandista da Vila Militar, capitão bicheiro. Pegaram a escória e jogaram para lá. E qual era o interesse desse pessoal em trabalhar? Nenhum. Faziam o mínimo. Eles adoravam ir à “sala de ponto” porque ali não precisava saber muita coisa porque, normalmente, as pessoas falavam.
Três horas depois de revelar a passagem pelos porões do regime, Riscala disse que não se arrependia do que fez:
- Não tenho o menor peso na consciência.
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