Se o Judge Dredd Enforcement Act for aprovado e entrar em vigor a letalidade policial vai aumentar e não diminuir. Transformados em drones de combate a serviço de uma política de segurança pública obtusa, os policiais brasileiros também serão desumanizados
- 02/04/2019
Ao ser sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o Ministro da Justiça disse que o Projeto de Lei dele, que eu tenho chamado de Judge Dredd Enforcement Act (veja aqui e aqui), não é fruto apenas das suas convicções. Entretanto, ele não revelou detalhadamente os fundamentos teóricos que foram utilizados na confecção do mesmo.
Como a Lei não define de maneira específica e exaustiva quem poderá ser considerado “suspeito” e o que é uma “ameaça” capaz de justificar o uso letal da força, me parece evidente que o Projeto de Lei não foi inspirado na nossa CF/88. De fato, Como vimos, referido o Judge Dredd Enforcement Act revoga implicitamente o direito à vida e a proibição da pena de morte que foram expressamente prescritos na Constituição Federal ao conferir ao policial o direito genérico de matar cidadãos sempre que se sentir ameaçado ou disser que interpretou a situação como ameaçadora.
Como a interpretação da conduta da vítima e do sentimento que ela inspira ficará a cargo do policial podemos dizer com alguma segurança que o PL de Sérgio Moro pode ter sido inspirado nos manuais militares dos EUA para a ação dos pilotos de drones. Nesse sentido, nunca é demais revisitar um livro clássico sobre esse assunto.
“Quando o dispositivo de telecomando torna-se máquina de guerra, o inimigo é que é tratado como material perigoso. Eliminam-no de longe, observando-o morrer na tela a partir de um casulo aconchegante de uma safer-zone (zona segura) climatizada. A guerra assimétrica se radicaliza para se tornar unilateral. Pois é claro que ainda se morre, mas só de um lado.” (Teoria do Drone, Grégoire Chamayou, editora Cosacnaify, 2015, São Paulo)
A guerra drônica é realizada à distância. O Judge Dredd Enforcement Act distancia o policial da responsabilidade por seus atos letais.
Se for aprovado e entrar em vigor, o PL de Sérgio Moro transformará cada policial brasileiro num drone de combate autônomo autorizado a matar cidadãos sempre que sentir necessidade ou vontade de fazer isso. Uma consequência inevitável da inovação será que os juízes ficarão num “safer-zone (zona segura) climatizada” nos Fóruns. Afinal, eles não precisarão mais julgar os crimes cometidos pelos agentes de segurança. A única coisa que o Poder Judiciário poderá fazer será homologar indiscriminadamente todos os homicídios cometidos por policiais com base no depoimento do autor dos disparos que interpretou a situação como ameaçadora e suspeitou da pessoa que foi abatida.
O drone começou a ser utilizado para fazer o trabalho de “informação, vigilância e reconhecimento” (Teoria do Drone, Grégoire Chamayou, editora Cosacnaify, 2015, São Paulo). O que o equipamento norte-americano realizava nesse contexto era um trabalho de policiamento à distância. Desde que passou a ser usado como arma, o drone “…constituiu-se uma forma não convencional de violência de Estado que combina as características díspares da guerra e da operação de polícia, sem realmente corresponder nem a uma nem à outra, e que encontra sua unidade conceitual e prática na noção de caça ao homem militarizada.” (Teoria do Drone, Grégoire Chamayou, editora Cosacnaify, 2015, São Paulo).
No Brasil, o agente policial se desloca em viaturas para fazer seu trabalho presencial nas periferias das grandes cidades. Ele não é um soldado indo para o front e sim um agente de segurança pública que realiza policiamento ostensivo em benefício da sociedade (conceito que inclui inclusive a população periférica). Se for autorizado a matar impunemente cidadãos, o policial pode se sentir tentado a agir na periferia como se fosse um soldado obrigado a caçar e eliminar qualquer pessoa que ele julgue ser ameaçador ou suspeito. O PL de Sérgio Moro transformará a atividade policial de “operação transitória de segurança pública” em “operação permanente de guerra urbana”.
E já que estamos falando de uma guerra urbana mais ou menos legitimada legalmente com base em critérios indefinidos, nunca é demais lembrar que a guerra drônica também se caracteriza pela indefinição dos critérios utilizados para determinar quem pode e quem não pode ser abatido.
“…além desses ‘ataques de personalidade’ nominativos, há também os ‘ataques de assinatura’ – ‘assinatura’ aqui no sentido de traço, índice ou característica definidora. Estes são dirigidos a indivíduos cuja identidade permanece desconhecida, mas cujo comportamento leva a supor, indica ou assina o pertencimento a uma ‘organização terrorista.” (Teoria do Drone, Grégoire Chamayou, editora Cosacnaify, 2015, São Paulo)
Em sua obra, Grégoire Chamayou faz uma longa digressão sobre os princípios de geografia humana e sobre os novos conceitos militares que foram desenvolvidos para que os pilotos de drones, encarregados de vigiar os suspeitos, possam definir se eles merecem viver ou morrer.
“Uma vez que a constatação de uma participação direta nas hostilidades torna-se quase impossível pela boa e simples razão de que não há mais combate, o estatuto de combatente tende a deslizar para um estatuto indireto, suscetível, por diluição, de abarcar qualquer forma de pertencimento, de colaboração ou de simpatia presumida com uma organização militante, seja ou não com seu seguimento armado. É a passagem insidiosa da categoria ‘combatentes’ à de ‘militantes presumidos’ (suspected militants). Essa equação combatente = militante serve para estender o direito de matar para muito além dos limites jurídicos clássicos, e o conceito de alvo legítimo adota então uma elasticidade indefinida.” (Teoria do Drone, Grégoire Chamayou, editora Cosacnaify, 2015, São Paulo)
O PL de Sérgio Moro não define exatamente quem serão os “militantes presumidos (suspected militants)”. Portanto, me parece evidente que qualquer pessoa poderá ser abatida a tiros no local em que o policial estiver realizando uma “operação permanente de guerra urbana”, inclusive e/ou principalmente aqueles que tenham algum tipo de atividade social, sindical, partidária, religiosa ou humanitária nas periferias.
Nesse sentido, podemos dizer que o Judge Dredd Enforcement Act não leva o Estado aos territórios em que a presença dele é frágil. O que o PL do Ministro da Justiça faz é exatamente o contrário. Assim que entrar em vigor, essa nova Lei desestimulará qualquer ação política que vise restaurar a cidadania nas periferias das cidades brasileiras.
A única diferença essencial entre o Projeto de Lei comentado e os manuais militares de guerra drônica norte-americana diz respeito ao momento da execução das vítimas. Nos EUA os pilotos de drones vigiam os suspeitos e sugerem sua execução, mas não são eles que decidem se e quanto os suspected militants serão abatidos por mísseis Hellfire. No contexto do PL de Sérgio Moro cada policial será um míssil telegiado autorizado a abater a tiros qualquer pessoa que ele considerar suspeita ou que o faça sentir temor.
As estimativas mais pessimistas afirmam que entre janeiro de 2009 e dezembro de 2015 os EUA eliminou mais ou menos 800 pessoas utilizando drones. Em 2014 as PMs brasileiras mataram 2,5 mil pessoas. Em 2015, 3 mil pessoas foram assassinadas por policiais. Só no Rio de Janeiro 8,4 mil pessoas foram abatidas pela PM no período 2005/2014.
Se o Judge Dredd Enforcement Act for aprovado e entrar em vigor a letalidade policial vai aumentar e não diminuir. Transformados em drones de combate a serviço de uma política de segurança pública obtusa, os policiais brasileiros também serão desumanizados. Vistos como assassinos profissionais, em algum momento eles também começarão a ser mortos com maior frequência. Ninguém precisa disso, exceto aqueles que irão lucrar brutalizando uma população que já está sendo excluída da vida econômica e política do país.
Fonte: https://jornalggn.com.br/justica/o-que-sergio-moro-quer-e-guerra-urbana-permanente-com-drones-humanos/
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