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sábado, 8 de novembro de 2014

MP 657/2014 estimula delegado burocrata e investigação ineficiente


POR FREDERICO VASCONCELOS
08/11/14  08:02

Sob o título A Medida Provisória 657/2014 alimenta sistema fracassado“, o artigo a seguir é de autoria do Procurador Regional da República Wellington Cabral Saraiva, Coordenador da Assessoria Constitucional do Procurador-Geral da República. O texto foi publicado originalmente em seu blog. (*)

A equivocada edição da MP 657/2014
Em 13 de outubro de 2014, a poucos dias do segundo turno das eleições presidenciais, o Poder Executivo, de forma inesperada, editou a Medida Provisória 657, para tratar de assunto sem nenhuma urgência.
A MP 657/2014, em resumo: a) afirmou que o Departamento de Polícia Federal (DPF) integra o Ministério da Justiça e se baseia na hierarquia e na disciplina; b) estabeleceu que os delegados de polícia federal devem dirigir o órgão e sua função tem “natureza jurídica e policial”; c) o concurso para delegado de polícia federal exige três anos de atividade jurídica ou policial; d) o diretor-geral do DPF deve ser nomeado pelo Presidente da República e é cargo privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial.
Embora a Constituição da República exija, de forma cumulativa, relevância e urgência para edição de medidas provisórias (artigo 62), a MP 657/2014 claramente não preenche o segundo requisito, uma vez que não havia nem há urgência alguma associada ao tratamento legal do cargo de delegado de polícia federal. Contém ainda referência impertinente à estrutura do Departamento de Polícia Federal como se baseando em hierarquia e disciplina, que são eixos das organizações militares, não de órgãos civis como o DPF.
Inquérito policial: um modelo fracassado
Além da inconstitucionalidade por falta do requisito da urgência, a medida provisória é muito danosa para o sistema criminal brasileiro. Embora pareça apenas um conjunto de normas para fortalecer a Polícia Federal, a MP 657/2014, resultado exclusivo de forte pressão corporativa de delegados de polícia federal, na prática, alimenta sistema de investigação criminal fracassado, em prejuízo de toda a sociedade.
A maior parte da investigação criminal, no Brasil, baseia-se no inquérito policial (IP) de que trata o Código de Processo Penal (CPP). O modelo atual de inquérito policial foi criado pela Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871! É fácil ver que se trata de instrumento arcaico e muito ineficiente, como se imagina de ferramenta de investigação estruturada há mais de 140 anos, em outra realidade histórica, e pouco aperfeiçoado desde então.
O fracasso do inquérito policial comandado por delegados de polícia foi apontado em mais de um estudo sério. Considerando apenas os inquéritos policiais por crime de homicídio, por exemplo, a estimativa atual é de que apenas de 5% a 8% sejam esclarecidos pela polícia no Brasil – percentual que é de 90% no Reino Unido, 80% na França e 65% nos Estados Unidos, de acordo com o Diagnóstico da investigação de homicídios no Brasil (versão 2012, p. 22), da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (ENASP). Em relação aos crimes de roubo, levantamento feito pela Folha de S. Paulo para período de uma década mostrou que a taxa de esclarecimento desse delito caiu de 10,2% em 2004 para 5,1% em 2013.
Existem múltiplas causas para esse déficit de resultados, mas esses percentuais mostram que o inquérito policial e as próprias polícias precisam de reforma radical, em direção distinta da que a Medida Provisória 657/2014 aprofunda.
Problemas do inquérito policial
O sistema atual de investigação é um pântano de ineficiência, revelada pela baixíssima taxa de elucidação de crimes por meio do inquérito policial.
Quem atua na área criminal (e faço isso no Ministério Público há 22 anos, desde 1992), se não estiver de má fé, sabe que o inquérito policial é uma cópia mal feita do processo judicial, com caráter formalista, burocrático, lento e ineficiente. Grande parte das folhas de qualquer inquérito (muitas vezes a maior parte) não é de atos de investigação, mas de atos burocráticos, com ofícios, despachos, mandados, análises jurídicas e carimbos – péssimos e arcaicos resquícios de tradição ibérica, que prioriza a formalidade em lugar da apuração dos fatos.
Entronizar bacharéis em Direito no comando das investigações, como ocupantes do cargo de delegado, reforça e eterniza esse modelo, que só beneficia os criminosos, por sua ineficiência. Não é disso que o Brasil precisa.
O que a sociedade quer é um sistema de investigação criminal rápido e eficiente, que respeite os direitos dos investigados. Para isso, o líder da investigação, no cargo superior da carreira policial, não precisa ser bacharel em Direito. Para investigar bem não é preciso cursar Direito.
Receita Federal, por exemplo, tem ótimos investigadores de ilícitos fiscais que nem sempre são formados em Direito. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) tem ótimos investigadores de ilícitos previdenciários que não o são. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) tem ótimos investigadores de ilícitos ambientais que não o são. O mesmo vale para o Banco Central, na investigação de ilícitos financeiros, para o TCU (Tribunal de Contas da União) e a CGU(Controladoria-Geral da União), na investigação de ilícitos contra a administração pública, para o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), na detecção de lavagem de bens. As CPIs (comissões parlamentares de inquérito) são conduzidas por parlamentares, que investigam atos ilícitos sem necessidade de ser bacharéis em Direito. O mesmo ocorre nos órgãos estaduais e municipais correspondentes, os quais diariamente apuram incontáveis infrações à lei e as comunicam ao Ministério Público, de forma apta a gerar ação criminal, sem nenhuma necessidade de passar pela análise de “juristas” da polícia.
O mesmo ocorre nos países mais avançados do mundo, em que muitos de seus melhores investigadores de crimes jamais precisaram ser bacharéis em Direito, embora devam ter algum conhecimento jurídico. Os investigadores da Receita Federal, do INSS, do Ibama, do Banco Central e do TCU, entre diversos outros servidores públicos, conduzem investigações bem sucedidas, com conhecimentos jurídicos adquiridos em sua formação para o cargo, sem necessidade de passar por faculdade de Direito.
Delegados de polícia alimentam o mito de que, para investigar crimes, é preciso ser bacharel em Direito. Isso nunca foi verdade, seja no Brasil, seja no exterior. Em uma investigação criminal de sucesso é preciso algum conhecimento jurídico, o qual pode ser obtido no treinamento policial, mas, de modo algum, exige faculdade de Direito.
Por causa desse desvirtuamento na condução de investigações, frequentemente ocorrem disputas “jurídicas” entre delegado e Ministério Público na condução de inquérito. Investigações são atrasadas porque delegados discordam por escrito da definição jurídica de determinado fato e pretendem impor sua avaliação à do Ministério Público, embora seja este o órgão titular da persecução criminal (artigo 129, inciso I, da Constituição da República). Delegados perdem tempo e geram discussões inúteis devido ao ato inútil do indiciamento. Relatórios de inquérito afastam-se da investigação do crime e descabidamente sustentam teses processuais e de defesa do investigado. Delegados que pretendem substituir-se ao Ministério Público e ao Judiciário causam atraso, confusão e perda de tempo e recursos na condução de inquéritos, em lugar de concentrar-se na investigação.
Não se trata de diminuir nem de defender a extinção de carreira alguma. É preciso, porém, reformar a polícia, para que gere melhor retorno para a sociedade. Delegados podiam manter seu prestígio e sua nobre função sendo investigadores eficientes, em vez de alimentar esse sistema falido.
Experiência de outros países
Em países mais avançados, existe estreita integração entre a polícia e o Ministério Público, e ambos são órgãos parceiros, sem que policiais pretendam tomar o lugar do Ministério Público nem realizar atividades jurídicas dispensáveis para a investigação criminal. A experiência internacional mostra a falsidade da tese de que investigador criminal precisa ser bacharel em Direito.
No FBI (Federal Bureau of Investigation, uma das polícias federais dos EUA), por exemplo, os líderes da investigação criminal são os “agentes especiais” (special agents), que podem ter formação em Contabilidade, Direito, Ciência da Computação/Tecnologia da Informação, Línguas e em outras áreas do conhecimento (vide “FBI Special Agent Entry Programs”). Não precisam ser bacharéis em Direito. Sugerir que investigadores criminais do FBI exercem “função de natureza jurídica” e são cargos “privativos de bacharel em Direito”, como faz a Medida Provisória 657/2014, seria motivo de ridículo naquele país.
O mesmo ocorre em diversos outros órgãos de investigação criminal dos Estados Unidos, como a DEA (Drug Enforcement Agency, voltada ao tráfico ilícito de drogas) e a ATF (Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives, ligada à repressão do tráfico e uso ilícito de álcool, tabaco, armas e explosivos), cujos agentes de investigação não precisam ser formados em Direito. Vide “Minimum Requirements and Preferred Degrees for DEA Special Agents” e “ATF Special Agent Informational Packet”.
Outro exemplo de país mais desenvolvido no tema é o da França, na qual, para ingressar na carreira de investigação criminal da Gendarmeria, não é necessário diploma em Direito, como se vê da divulgação da seleção para seu concurso (“Concours SOG – session mars 2015”). No principal órgão de apoio às autoridades judiciárias (que lá são juízes e procuradores da República), a Polícia Nacional (Police Nationale), as duas carreiras de comando (comissário de polícia e oficial de polícia, esta voltada à investigação criminal), não exigem diploma de Direito para o acesso (vide as condições de acesso para commissaire de police e para officier de police). A Polícia Nacional e a Gendarmeria promovem concursos internos para progressão na carreira policial.
A título de conclusões
A Medida Provisória 657/2014 afeta o sistema criminal, na medida em que alimenta um de seus defeitos, ou seja, o modelo de inquérito policial formalista e bacharelesco. Essa medida provisória estimula delegados burocratas e formalistas, em vez de investigadores operacionais e multidisciplinares.
Com ela, um analista de sistemas especialista em crime cibernético nunca poderá comandar investigação desses fatos; um contador nunca poderá comandar investigação de desvio de recursos públicos; um engenheiro ambiental não poderá liderar investigação de crimes ambientais. Profissionais especializados nos fatos sob investigação precisarão receber intermediação de delegados formados em Direito.
A própria concentração da investigação criminal nas polícias atuais é profundo equívoco, além de hipócrita. O Código de Processo Penal, desde 1941, dispensa a existência de inquérito policial, se o Ministério Público receber elementos suficientes para promover ação penal sem ele (artigo 39, § 5.º). [Obs.: O símbolo “§” lê-se como “parágrafo”.] Nas investigações dos órgãos citados (Receita, INSS, Banco Central etc.), diariamente são produzidos elementos que o Ministério Público aproveita para ajuizar ações penais consistentes, sem necessidade de “juristas” à frente dessa coleta de provas.
Seria preferível para o país que houvesse mais órgãos e mais profissionais investigando atos ilícitos, inclusive os de caráter criminal, sem necessidade de criar reserva de mercado para delegados bacharéis.
Nada do que se disse aqui pretende significar que a polícia e os delegados sejam desimportantes. Sua função é muito relevante e deve ser prestigiada da forma correta. É bom para qualquer democracia que sua polícia seja valorizada e respeitada. Isso se obtém, contudo, por meio de adequada administração dos recursos humanos, com capacitação técnica e vantagens remuneratórias justas para esses servidores e, por outro lado, pela produção de investigações sólidas e pelo respeito aos direitos dos cidadãos por parte deles. Uma polícia eficiente, respeitada e que observe os direitos dos cidadãos não precisa ser liderada por bacharéis em Direito. Basta dessa mentira.
Alguns delegados de polícia parecem nutrir competição com o Ministério Público e desejar reproduzir a função de juízes, em lugar de se dedicar a ser investigadores eficientes, que é a essência de sua nobre e importante função. Delegados de polícia não são Ministério Público nem juízes. As funções e o regime jurídico destas carreiras não são nem devem ser aplicáveis à função policial, pois são intrinsecamente distintas. Seria provavelmente mais frutífero para os próprios delegados repudiar o atual modelo de investigação burocrático, arcaico e ineficiente e lutar pela reforma desse sistema. Com mais resultados, seriam mais respeitados e certamente se sentiriam mais úteis para a sociedade.
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(*) http://wsaraiva.com/2014/11/06/a-medida-provisoria-6572014-alimenta-sistema-fracassado/

Fonte: http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/

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