Elas vivem enclausuradas e só saem de casa nas festas religiosas
POR PATRICIO DE LA PAZ / EL TIEMPO*
Samita Bajracharya, um das três meninas deusas do Nepal - wikipedia
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KATMANDU — Samita Bajracharya nunca olha nos olhos. Não conversa com quem a visita. Não demonstra sentimentos. É estritamente proibido. Em público, jamais deve dar risada nem chorar. Ela não tem opção. Uma menina como ela deve seguir um rigoroso protocolo. Não é fácil ser uma deusa viva no Nepal. Muito menos quando se tem apenas 11 anos.
Já passa do meio-dia de uma terça-feira e Samita está sentada em um trono pequeno para ela, usado desde os 7 anos de idade, quando os sacerdotes de Patan — um vilarejo perto de Katmandu, capital do Nepal — a elegeram Kumari, a reencarnação da deusa Taleju, a mais importante do país.
Desde então, todos os dias Samita se veste de vermelho, a cor da sorte e da energia, fica a maior parte do tempo sozinha, sempre descalça e tem os olhos pintados de preto. Sua mãe faz o traço bem delineado todas as manhãs.
Em nepalês “kumari” significa virgem. Mas Kumari com K maiúsculo é usado para designar as meninas consideradas a versão humana da mais querida deusa hindu, Taleju.
A seleção das candidatas é uma mistura espiritual, já que no Nepal o hinduísmo convive de forma pacífica com o budismo. Por isso, ninguém se surpreende que as aspirantes a Kumari sejam muitas vezes de famílias budistas, porém, elas devem provar que em seus corpos vive uma deusa hindu.
Para isso é preciso cumprir com 32 condições físicas como, por exemplo, ter cílios de vaca, colo de uma concha, músculos de um cervo, o peito de um leão, a voz de pato, cabelos e olhos escuros, mãos e pés pequenos, e todos os dentes de leite. Cada requisito é certificado por um grupo de sacerdotes. Como último passo, os pais devem aceitar que a filha é uma Kumari, o que sempre acontece já que isso significa uma honra.
A menina deusa começa então uma infância atípica, fechada entre quatro paredes, venerada, mas sozinha. Não vai ao colégio, não tem amigos, não pode pôr os pés no chão.
Não se sabe ao certo como começou a tradição, mas diz a lenda que os reis da dinastia Malla tinham contato direto com a deusa Taleju. Porém, a esposa do rei Trailokya Malla, intrigada com as visitas noturnas de seu marido, um dia resolveu segui-lo e o encontrou conversando com Taleju. A deusa ficou furiosa e despareceu, mas antes advertiu o monarca: "Se quiser me ver de novo, escolha a menina mais bonita que cumpra os 32 requisitos."
O rei obedeceu e há quase 350 anos o ritual é seguido religiosamente no Nepal, mesmo agora quando não existe mais monarquia no país.
Como Samita não pode falar, sua mãe faz por ela.
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— Minha filha foi escolhida em 2009. Nunca imaginei que este seria o seu destino, mas tive medo, porque não sabia o que aconteceria depois. Gente de todo Nepal começou a vir visitá-la — conta sua mãe acrescentando que as pessoas vêm pedir saúde, sucesso nos negócios, nos estudos.
Existem três Kumaris no Nepal, sendo que a de Katmandu é a mais importante e também a única que é proibida de continuar vivendo com a sua família.
Qualquer uma das três Kumaris vive enclausurada e só sai uma dúzia de vezes por ano, durante festas religiosas. Antes elas não estudavam. Agora têm aulas particulares todas as manhãs de linguagem, História e inclusive de inglês.
Mas a vida de deusa não dura para sempre. As meninas deixam de ser Kumaris quando chega a primeira menstruação e voltam a ser uma simples mortal. É um momento difícil.
Em seu livro “De deusa à mortal”, Rashmila Shakja, Kumari de Katmandu entre 1984 e 1991, conta como foi difícil voltar a viver com seus pais biológicos e irmãos e deixar o palácio.
Também teve que aprender coisas básicas, como usar sapatos.
“Era péssima caminhando. Minhas irmãs me diziam que parecia um cavalo”, conta no livro Rashmila.
Diferentes ONGs alegam que as instituições Kumaris violam os direitos das crianças, já que impõe às meninas muitas obrigações. Em 2006, a Corte Suprema do Nepal ordenou ao governo um relatório sobre o tema. Mas nunca houve sanções.
Ex-Kumaris se defendem, principalmente no que diz respeito ao casamento, porque reza a lenda que quem se casa com uma ex-deusa morre jovem e vomitando sangue.
“Isso é mentira. Muitas ex-Kumaris se casaram tiveram filhos e são felizes”, diz Rashmila em seu livro. Ela, aos 34 anos, continua solteira.
Tiro do meu bolso 300 rupias nepalesas, pouco mais de US$ 3. É um costume deixar pequenas quantias em dinheiro como agradecimento. E depois ofereço o que meu amigo nepalês sugeriu, uma barra de chocolate. É o único momento desta tarde de janeiro que esta deusa se vê como menina e fica feliz com um presente. Algo assim ocorreu quando alguém lhe deu uma Barbie.
Soube que pouco tempo depois, em março, Samita deixou de ser deusa, quando a primeira menstruação chegou. Naquele momento, a deusa Taleju abandonou o corpo impuro da menina que acabava de cumprir 12 anos.
*“El Tiempo” integra o Grupo de Diarios América (GDA), do qual O GLOBO faz parte
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