Apelação Criminal n. 2012.016841-9, de Lages
Relator: Des. Jorge Schaefer Martins
CRIME DE RACISMO. ARTIGO 20, § 2º, DA LEI N.
7.716/89. PUBLICAÇÃO DE CHARGE EM JORNAL. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO
DA ACUSAÇÃO. ILUSTRAÇÃO PEJORATIVA. VINCULAÇÃO DO NASCIMENTO DE CRIANÇAS
AFRODESCENDENTES À CRIMINALIDADE. CONTEÚDO RACISTA MANIFESTO. COLISÃO
DE PRINCÍPIOS. LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E
IGUALDADE. SOLUÇÃO QUE SE DÁ ATRAVÉS DA UTILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE. PREVALÊNCIA DOS ÚLTIMOS INEQUIVOCAMENTE APLICÁVEL AO
CASO CONCRETO. RECURSO PROVIDO.
Ilustração de recém nascidos afrodescendentes em
fuga de sala da parto, associado aos dizeres de um personagem
(supostamente médico) de cor branca "Segurança!!! É uma fuga em
massa!!!", configura a prática do crime de racismo.
A Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu
artigo 3º, entre os objetivos fundamentais da República, a "promoção do
bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação". Ademais, no capítulo
referente aos direitos e garantias individuais, estabelece a "igualdade"
como garantia fundamental do indivíduo sendo a prática do racismo crime
inafiançável e imprescritível (artigo 5º, inciso XLII).
Havendo colisão de normas constitucionais entre a
que impõe a igualdade entre os indivíduos e a liberdade de pensamento,
deve prevalecer aquela, pois não é possível que o exercício do direito
de opinião ofenda outros valores constitucionais, mormente a dignidade
humana, fundamento do princípio da igualdade.
[...] não se pode atribuir primazia absoluta à
liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face
de valores outros como os da igualdade e da dignidade humana. [...] Ela
encontra limites, também no que diz respeito às manifestações de
conteúdo discriminatório ou de conteúdo racista. Trata-se, como já
assinalado, de uma elementar exigência do próprio sistema democrático,
que pressupõe a igualdade e a tolerância entre os diversos grupos. (HC 82424, Relator: Min. MOREIRA ALVES, Relator para Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003).
DOSIMETRIA. CHARGISTA, AUTOR DA ILUSTRAÇÃO. PENA
FIXADA EM 2 (DOIS) ANOS DE RECLUSÃO. REGIME INICIAL ABERTO. SUBSTITUIÇÃO
DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR DUAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. EDITOR
CHEFE EM EXERCÍCIO. PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA. PENA DEFINITIVA
EM 1 (UM) ANO E 4 (QUATRO) MESES DE RECLUSÃO. REGIME INICIAL ABERTO.
PENA CORPORAL IGUALMENTE SUBSTITUÍDA.
[...] partícipe é quem concorre para que o
autor ou coautores realizem a conduta principal, ou seja, aquele que,
sem praticar o verbo (núcleo) do tipo, concorre de algum modo para a
produção do resultado. Assim, (...) pode-se dizer que o agente que
exerce a vigilância sobre o local para que seus comparsas pratiquem o
delito de roubo é considerado partícipe, pois, sem realizar a conduta
principal (não subtraiu, nem cometeu violência ou grave ameaça contra a
vítima), colaborou para que os autores lograssem a produção do
resultado.
Dois aspectos definem a participação: a)
vontade de cooperar com a conduta principal, mesmo que a produção do
resultado fique na inteira dependência do autor; b) cooperação efetiva,
mediante uma atuação concreta acessória da conduta principal
(CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal - parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 338-339).
PRESCRIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO.
CRIME IMPRESCRITÍVEL. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, INCISO XLII, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Vistos, relatados e discutidos estes autos
de Apelação Criminal n. 2012.016841-9, da comarca de Lages (2ª Vara
Criminal), em que é apelante Ministério Público do Estado de Santa
Catarina e apelado o Mauro Martinelli Maciel e Carlos Alberto Costa
Amorim:
ACORDAM, em Quarta Câmara Criminal, por
unanimidade, dar provimento ao recurso para: condenar o réu Carlos, à
pena de 2 (dois) anos de reclusão, em regime aberto, substituída a pena
privativa de liberdade por duas restritivas de direitos - prestação de
serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de um salário
mínimo; condenar o réu Mauro à pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de
reclusão, a serem cumpridos em regime inicial aberto, substituída a pena
corporal por prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária
no valor de um salário mínimo. Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado
nesta data, os Excelentíssimos Desembargadores Roberto Lucas Pacheco e
Rodrigo Collaço. Emitiu parecer pela Procuradoria-Geral de Justiça o Dr.
Pedro Sérgio Steil.
Florianópolis, 23 de maio de 2013.
Jorge Schaefer Martins
PRESIDENTE E RELATOR
RELATÓRIO
O representante do Ministério Público da
comarca de Lages ofereceu denúncia contra Mauro Martinelli Maciel e
Carlos Alberto Costa Amorim, como incursos nas razões do artigo 20, §
2º, da Lei n. 7.716/89, em razão da prática do seguinte fato:
No dia 16 de fevereiro de 2007, o Jornal Correio
Lageano, localizado na Rua Coronel Córdova, nº 84, Bairro Centro, neste
município e comarca, publicou uma charge com o título "MAIORIDADE
PENAL...".
Neste cartum, uma mulher negra se encontra
deitada em trabalho de parto em um leito de determinado hospital, sendo
que acabaram de descer do ventre materno quatro crianças
afrodescendentes com vendas nos olhos e que estão em fuga do nosocômio,
utilizando inclusive uma corda de lençol, como aquelas usadas por
criminosos segregados para fugas ou para rebeliões.
Além disso, no aludido desenho se encontra ao
lado do leito do hospital um médico de cor branca amedrontado com a
evasão das crianças negras recém-nascidas, que grita: "SEGURANÇA!!! É
UMA FUGA EM MASSA!!
Não há dúvidas de que na charge referida houve
preconceito e discriminação de raça e cor, pois a prática de crimes foi
absurdamente relacionada ao nascimento de crianças negras, o que se
configura como inadimissível conduta racista publicada em jornal de
grande circulação desta região serrana.
Consta que o responsável pela elaboração/criação
da charge foi o denunciado CARLOS ALBERTO COSTA AMORIM, sendo que a
publicação do cartum racista só ocorreu porque o outro
denunciado, MAURO MARTINELLI MACIEL, Editor-Chefe do Jornal O Correio
Lageano, permitiu a disseminação do conteúdo preconceituoso já
mencionado.
Recebida a denúncia em 13 de outubro de
2008 (fl. 71) e, citados os réus, deu-se a apresentação de defesa
prévia. Ouvidas cinco testemunhas e realizados os interrogatórios, as
partes apresentaram alegações finais.
Sentenciando, o Juiz de Primeiro Grau, Dr.
Juliano Schneider de Souza, julgou improcedente a inicial acusatória,
absolvendo os réus fulcro no artigo 386, inciso III, do Código de
Processo Penal.
Irresignada, a acusação interpôs apelação,
sustentando que a charge publicada tem cunho racista, pois teve como
motivação o caso "João Hélio Fernandes", onde a vítima era de cor branca
e o acusado, menor de idade à época dos fatos, é afrodescendente. Disse
que os recém-nascidos afrodescendentes foram tratados como bandidos.
Com as contrarrazões, subiram os autos a esta Corte.
Instada, a Procuradoria-Geral de Justiça,
em parecer da lavra do Dr. Pedro Sérgio Steil, opinou pelo não
provimento do recurso.
VOTO
A Constituição Federal de 1988 dispõe, em
seu artigo 3º, entre os objetivos fundamentais da República, a "promoção
do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação".
Ademais, no capítulo referente aos
direitos e garantias individuais, estabelece a "igualdade" como garantia
fundamental do indivíduo sendo a prática do racismo crime inafiançável e
imprescritível (artigo 5º, inciso XLII).
Não se tratando de comando constitucional
auto-aplicável, em razão do princípio basilar da legalidade, foi editada
a Lei n. 7.716/89, que define os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, que
contribui para dar eficácia às disposições contidas na Lei Maior.
Inicialmente, é preciso distinguir
preconceito de discriminação. Aquele indica um sentimento, e mesmo
atitude em relação a uma raça ou a um povo, decorrente de internalização
de crenças racistas. Já a discriminação, expressa a quebra do princípio
da igualdade com a distinção, exclusão, restrição ou preferência
motivada por raça, cor, sexo, idade, credo religioso ou convicções
políticas (Leon Frejda Szklarowsky. Crimes de Racismo. Artigo publicado
na Revista de Informação Legislativa, n. 135, Julho/Setembro de 1997, p.
25).
Por sua vez, o racismo expressa o conjunto
de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças e
etnias ou, ainda, uma atitude de hostilidade em relação a determinadas
categorias de pessoas. Assim, em regra, o racismo e o preconceito é que
levam à discriminação, isso quando houver a sua exteriorização por meio
de atos ou comportamentos de segregação.
Há também que se considerar, no caso
concreto, a ofensa à dignidade da pessoa humana, a qual, como já tive a
oportunidade de discorrer em obra doutrinária, é de difícil conceituação, mas buscando-se defini-lo, possível admitir que pressuponha a existência de respeito à vida e integridade do ser humano,
sem olvidar da presença de condições mínimas para existência digna,
resguardadas a intimidade e a identidade do indivíduo, com a garantia de
igualdade para com outrem, sem que se possa excluir também sua condição
psicofísica
(Prisão provisória - medida de exceção no direito criminal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2004, p. 38).
No caso dos autos, fica evidente a
ocorrência de embate entre o princípio de liberdade de expressão e o
princípio da igualdade, ambos constitucionais, sendo que, fazendo-se uma
interpretação sistemática, conclui-se que a Constituição Federal
autoriza a punição na hipótese da existência de discriminação que atinja
direitos e liberdades.
Isso decorre da circunstância de não se
admitir em nosso ordenamento jurídico, a censura prévia, não obstante
seja possível o controle judicial:
Por força de mandamento constitucional, é
consagrado o direito de ação, pelo qual se assegura a apreciação pelo
Poder Judiciário de qualquer pretensão de quem se suponha lesado ou
ameaçado em seu direito (art. 5º, XXXV). O exercício da liberdade de
expressão pode, em diferentes situações, violar a ordem jurídica e
afetar a esfera de direitos de outrem, sujeitando o agente a
consequências jurídicas de natureza civil ou penal. O controle judicial
singulariza-se pela independência e imparcialidade do órgão que o
exerce, e obedece a um devido processo legal, que inclui o direito ao
contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes
(art. 5º, LIV e LV).
(BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão, censura e controle da programação de televisão na constituição de 1988. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 90, agosto de 2001, vol. 790, p. 133/134).
O Supremo Tribunal Federal já enfrentou a
matéria atinente à colisão de direitos fundamentais análogos no seguinte
julgado:
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros
"fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a
comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei
8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de
inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).
[...]
6. Adesão do Brasil a tratados e acordos
multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações
raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições
ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem
nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo
sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia",
"islamafobia" e o anti-semitismo.
7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos
agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da
ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam
rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à
sua prática.
8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos
conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou
biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do
termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal,
conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que
regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e
alcance da norma.
9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as
legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de
direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições
para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações
da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e
da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram
entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de
boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de
racismo.
[...]
13. Liberdade de expressão. Garantia
constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos.
O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência,
manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.
14. As liberdades públicas não são
incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF,
artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de
expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um
direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas
ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos
princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.
[...]
Ordem denegada.
(HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003).
(HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003).
No mencionado precedente, objeto de
análise na tese de doutorado de José Emílio Medauar Ommati, professor da
Pontifícia Universidade Católica Minas Cerro (Igualdade, liberdade de
expressão e proibição da prática de racismo na Constituição Brasileira
de 1988, Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2012), o Ministro Gilmar Mendes
traça um paralelo entre o racismo, a liberdade de expressão e de
opinião, com os princípios da igualdade e proporcionalidade.
Se se aceita a ideia de que o conceito de racismo contempla, igualmente, as manifestações de anti-semitismo,
há de se perguntar sobre como se articulam as condutas ou manifestações
do caráter racista com a liberdade de expressão positivada no texto
constitucional. Essa indagação assume relevo ímpar, especialmente se se
considera que a liberdade de expressão, em todas as suas formas,
constitui pedra angular do próprio sistema democrático. Talvez seja a
liberdade de expressão, aqui contemplada a própria liberdade de
imprensa, um dos mais efetivos instrumentos de controle do próprio
governo. Para não falar que se constitui, igualmente, em elemento
essencial da própria formação da consciência e de vontade popular.
Não se desconhece, porém, que, nas sociedades
democráticas, há uma intensa preocupação com o exercício de Liberdade de
expressão consistente na incitação à discriminação racial, o que levou
ao desenvolvimento da doutrina do "hate speech".
[...]
Como se vê, a discriminação racial levada a
efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos
pilares do sistema democrático, a própria ideia de igualdade.
E, segue o Ministro, tecendo comentários sobre o princípio da proporcionalidade:
Nesse contexto, ganha relevância a discussão da
medida de liberdade de expressão permitida sem que isso possa levar à
intolerância, ao racismo, em prejuízo da dignidade humana, do regime
democrático, dos valores inerentes a uma sociedade pluralista.
[...]
Da mesma forma, não se pode atribuir primazia
absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade
pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da
dignidade humana. Daí ter o texto constitucional de 1988 erigido, de
forma clara e inequívoca, o racismo como crime inafiançável e
imprescritível (CF, art. 5º, XLII), além de ter determinado que a lei
estabelecesse outras formas de repressão às manifestações
discriminatórias (art. 5º, XLI).
É certo, portanto, que a liberdade de expressão
não se afigura absoluta em nosso texto constitucional. Ela encontra
limites, também no que diz respeito às manifestações de conteúdo
discriminatório ou de conteúdo racista. Trata-se, como já assinalado, de
uma elementar exigência do próprio sistema democrático, que pressupõe a
igualdade e a tolerância entre os diversos grupos.
O princípio da proporcionalidade, também
denominado princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou
ainda, princípio da proibição do excesso, constitui uma exigência
positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos de
direitos fundamentais, de modo a estabelecer um "limite do limite" ou
uma "proibição de excesso" na restrição de tais direitos. A máxima da
proporcionalidade, na expressão de Robert Alexy (Theorie der
Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986), coincide igualmente com o chamado
núcleo essencial dos direitos fundamentais concebidos de modo relativo -
tal como defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio, ou máxima
da proporcionalidade, determina o limite último da possibilidade de
restrição legítima de determinado direito fundamental.
A par dessa vinculação aos direitos fundamentais,
o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de
bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as
exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral
para solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre
normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela
revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela
explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e
tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em
tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos.
Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para
estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais.
Assim, conforme a fundamentação
supramencionada, o meio de solucionar a colisão de princípios
constitucionais se dá pelo manejo de outro princípio, o da
proporcionalidade. Aliás, Ommati, comentado sobre o tema, diz que:
a aplicação do princípio da proporcionalidade se
dá quando é verificada restrição a determinado direito fundamental ou um
conflito entre distintos princípios constitucionais, de modo a exigir
que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da
aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da
proporcionalidade. Essas máximas são em número três: adequação, a
necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito (op. cit. p. 30).
Ainda sobre o princípio da proporcionalidade, tive a oportunidade de discorrer:
Esta é uma das situações mais complexas no âmbito
jurídico, em vista de exigir a verificação da possibilidade de
coexistência entre princípios antagônicos, ou, por vezes, de prevalência
de um sobre o outro, sem que isso determine, necessariamente, a
apequenação do princípio que se viu postergado naquele caso concreto.
Para melhor compreensão a respeito de seu
reconhecimento e utilização, Helenilson Pontes assevera que,
"terminologicamente , o termo proporcionalidade contém uma noção de
proporção, adequação, medida justa, prudente e apropriada à
necessidade", contendo, em resumo, "um apelo à prudência na determinação
da adequada relação entre as coisas".
[...]
Robert Alexy informa que o princípio da
proporcionalidade tem os princípios constitucionais como mandatos de
otimização relacionados às perspectivas jurídicas e fáticas de forma a
reconhecer a possibilidade de conflito entre princípios opostos. Com o
desiderato de resolver o confronto entre princípios que contenham normas
de Direitos fundamentais, faz-se indispensável um exercício de
ponderação. Nessa atividade, impõe-se a verificação da norma
constitucional que contenha maior peso para o caso concreto que se tenha
por decidir, considerando-se que a norma mais débil pode vir a ser
desprezada, desde que o seja na medida do necessário e sob um ponto de
vista lógico e sistemático.
Assim, como antes afirmado, a proporcionalidade
não determina o desprezo de um princípio constitucional em detrimento de
outro. Antes, autoriza que, na análise de uma situação determinada,
possa a autoridade encarregada da decisão reconhecer a maior relevância
de determinado princípio constitucional naquele caso, obviamente
informando as razões de sua conclusão, sem que fique obrigatoriamente
vinculado ao raciocínio, quando vier a enfrentar outra situação que
pareça assemelhada (MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Prisão provisória:
medida de exceção no direito criminal brasileiro. Curitiba: Juruá,
2004. p. 61 e 65).
Feitas essas considerações gerais, tem-se
que nestes autos, os réus foram denunciados pelo crime previsto no
artigo 20, § 2º, da Lei n. 7.716/89, que dispõe:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
(...)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é
cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de
qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa
O elemento subjetivo do tipo é o dolo, não
existindo a modalidade culposa; são crimes formais, dispensando o
resultado naturalístico para a sua consumação; e os objetos jurídicos
tutelados são o direito à igualdade, o respeito à personalidade e à
dignidade da pessoa.
Sustenta a acusação que a charge publicada
no jornal Correio Lageano tem conteúdo racista, na medida em que
vinculou a prática de crimes ao nascimento de crianças afrodescendentes.
Merece acolhida a insurgência.
Com efeito, a materialidade vem comprovada
pela cópia do jornal de fl. 12, bem como pelos depoimentos prestados na
fase investigativa e em juízo.
No tocante à autoria, no que pertine ao
réu Carlos, ela se mostra incontroversa, pois em seu depoimento judicial
constou que:
[...] é chargista profissional há 25 anos; que a
charge em questão foi publicada em 2007; que na época havia discussão
sobre a maioridade penal, em razão do caso João Helio; que é contrário a
diminuição e vinha manifestando sua opinião durante a semana; que
procurou usar o humor para este fim; que não teve e intenção de
manifestar preconceito de raça ou classe social [...] que o interrogando
teria se retratado, mas no entanto, só soube dos fatos através da
internet; que em toda sua carreira não passou por situação semelhante.
Assim, a questão atinente aos autos diz respeito a definir se a charge publicada tem conteúdo racista, ou não.
O desenho, que se intitula "maioridade
penal", retrata uma mulher afrodescendente, na sala de cirurgia, deitada
em um leito hospitalar, oportunidade em que sai, do meio de suas
pernas, um lençol com nós, por onde descem crianças negras, com tarjas
pretas nos olhos. No local ainda há um médico aparentando ser o
obstetra, gritando "Segurança!!! É uma fuga em massa!!!".
Pelo título, maneira como as crianças
descem pelo lençol, bem como pelos dizeres do personagem, depreende-se
que há nítida intenção de fazer uma analogia da situação com uma fuga de
um estabelecimento prisional, tratando-se de verdadeiro racismo velado.
Há, sem dúvida, uma relação entre crianças
de etnia negra e a criminalidade, o que não pode ser aceito. Deve ser
estabelecido o que é a crítica jornalística e o crime de racismo,
salientando-se que o limite entre os institutos é tênue.
O núcleo do tipo "induzir" significa
persuadir, pressupondo a iniciativa à prática do delito. No caso dos
autos, a charge publicada induz à discriminação racial, incutindo
sentimento de desprezo e preconceito contra os indivíduos
afrodescendentes.
É certo que a liberdade de opinião e
manifestação de pensamento, também é um princípio constitucional a ser
observado, entretanto não há direitos absolutos no ordenamento jurídico
brasileiro, nem mesmo o direito à vida, excepcionado pelo artigo 23 e
incisos, bem como pelo artigo 128 e incisos, ambos do Código Penal. E,
havendo colisão entre normas constitucionais entre a que impõe a
igualdade entre os indivíduos e a liberdade de pensamento, deve
prevalecer aquela, pois não é possível que o exercício do direito de
opinião ofenda outros valores constitucionais, mormente a dignidade
humana, fundamento do princípio da igualdade. Logo, na comparação entre o
direito de opinar e o direito à não discriminar, não é possível que
prevaleça a livre manifestação do pensamento.
Diante dos fatos, a condenação do réu
atende às três máximas parciais da proporcionalidade estabelecida pela
doutrina alemã (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido
estrito), citadas pelo Ministro Gilmar Mendes no HC 82.424, do Supremo
Tribunal Federal.
A adequação é manifesta, na medida em que a
condenação alcança o fim almejado, qual seja, a defesa da igualdade e o
respeito à dignidade da pessoa humana. A necessidade de punição a tais
fatos exsurge, conforme as palavras do Ministro, da ausência de outro
meio menos gravoso e igualmente eficaz, em face dos valores
constitucionais em jogo e o reflexo de sua inobservância na sociedade.
Por derradeiro, a condenação atende à proporcionalidade em sentido
estrito, pois a liberdade de expressão não pode subjulgar o sistema
democrático, não podendo ocasionar a intolerância racial e a
discriminação contra os afrodescendentes.
Não há falar, por outro lado, na ausência
de dolo. O ato foi praticado de molde a deixar claro o menoscabo, a
avaliação negativa sobre pessoas de origem africana. O reconhecimento da
intenção deliberada de atingir indivíduos com tais características se
mostra evidente. A negativa de sua ocorrência, por parte do acusado, não
tem o condão de afastar sua configuração.
Por conseguinte, o réu Carlos Alberto
Costa Amorim praticou a conduta descrita no artigo 20, § 2º, da Lei n.
7.716/89, sendo a condenação medida impositiva.
Passa-se à dosimetria da pena.
A culpabilidade é normal à espécie. Não
registra antecedentes. Não há dados nos autos para aferir a conduta
social, nem laudo para atestar a personalidade. Os motivos são os
inerentes ao tipo e, por fim, não existem elementos para valoração
negativa das circunstâncias e consequências do crime. Diante das
circunstâncias judiciais favoráveis, fixa-se a pena-base no mínimo
legal, 2 (dois) anos de reclusão, reprimenda que resta definitiva diante
da ausência de circunstâncias agravantes e atenuantes, ou causas de
aumento ou diminuição de pena.
O regime de cumprimento da pena privativa de liberdade irrogada é o aberto.
Em razão de estarem preenchidos os
requisitos legais do artigo 44, do Código Penal, quais sejam: pena
privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos; crime não
cometido com violência ou grave ameaça; réu não reincidente e
circunstâncias judiciais favoráveis, substitui-se a pena privativa de
liberdade por duas restritivas de direito, consistentes na prestação de
serviços à comunidade pelo mesmo período da condenação à razão de uma
hora por dia, e prestação pecuniária no valor de um salário mínimo. O
local de cumprimento da prestação de serviços e a entidade beneficiada
com a prestação pecuniária, serão definidas no juízo de execução.
Derradeiramente, em relação ao réu Mauro, repisa-se a argumentação referente à materialidade delitiva.
No tocante à autoria, disse em juízo:
[...] Que na ocasião examinou a charge
previamente mas como o material estava titulado, referindo-se claramente
a maioridade penal, autorizou a publicação. [...]Que não vislumbrou na
charge nenhum caráter ofensivo ou discriminatório, uma vez que o tema
era específico [...] (fls. 176/177).
Logo, vê-se que o acessou o conteúdo,
tendo pleno conhecimento da charge antes de sua publicação, autorizando a
divulgação do desenho, portanto, em tendo permitido a publicação, anuiu
à conduta do corréu Carlos, salientando-se, entretanto, que não
participou ativamente da realização do núcleo do tipo descrito na
denúncia.
Não há dúvida acerca de sua
responsabilização, na medida em que na qualidade de editor chefe do
periódico quando dos fatos, tinha o poder de vetar a publicação. Em não o
fazendo, e tendo, como disse, plena consciência do conteúdo, o
reconhecimento de sua participação é evidente.
Todavia, sua sua conduta deve ser
considerada de menor importância, uma vez que não foi o autor da charge,
tampouco determinou viesse ela a ser elaborada daquela maneira.
A participação é a cooperação dolosa em um delito doloso, em consequência, ela não existe per se,
mas sim atrelada à conduta dolosa de outrem, possuindo uma natureza
acessória, havendo uma adequação típica indireta. A propósito, o Código
Penal adotou a teoria da acessoriedade limitada para explicar o
instituto, exigindo-se uma conduta principal típica e ilícita para sua
configuração.
No caso dos autos, a forma de participação
praticada pelo réu consistiu na permissão para a publicação da charge
com conteúdo racista, na condição de editor chefe do jornal de
circulação local, exercendo papel de coadjuvante na prática da infração
penal.
Conforme lição de Rogério Greco, operou-se
a cumplicidade "necessária", ou seja, aquela hipótese em que o auxílio
não pode ser fornecido normalmente por qualquer pessoa (Código Penal
Comentado, 5. ed. Niterói: Impetus, 2011. p. 93).
Quanto à participação, Damásio acrescenta:
Conceito de participação
Dá-se quando o sujeito, não praticando atos
executórios do crime, concorre de qualquer modo para a sua realização
(CP, art. 29). Ele não realiza conduta descrita pelo preceito primário
da norma, mas realiza um atividade que contribui para a formação do
delito. Chama-se partícipe. No sentido do texto:RT. 494:339, 572:393 e 644:266; RJTJSP, 37:288 e 40:317
(op. cit. p. 157).
Igualmente:
Participação: partícipe é quem concorre para que o
autor ou coautores realizem a conduta principal, ou seja, aquele que,
sem praticar o verbo (núcleo) do tipo, concorre de algum modo para a
produção do resultado. Assim, (...) pode-se dizer que o agente que
exerce a vigilância sobre o local para que seus comparsas pratiquem o
delito de roubo é considerado partícipe, pois, sem realizar a conduta
principal (não subtraiu, nem cometeu violência ou grave ameaça contra a
vítima), colaborou para que os autores lograssem a produção do
resultado.
Dois aspectos definem a participação: a) vontade
de cooperar com a conduta principal, mesmo que a produção do resultado
fique na inteira dependência do autor; b) cooperação efetiva, mediante
uma atuação concreta acessória da conduta principal (CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal - parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 338-339).
Portanto, deve o réu Mauro ser condenado
nas sanções do crime previsto no artigo 20, § 2º, da Lei n. 7.716/89,
aplicando-se a causa de diminuição do artigo 29, § 1º, do Código Penal,
na fração de 1/3, em função de sua simples anuência ao conteúdo da
charge, autorizando sua publicação.
Passa-se à dosimetria da pena:
A culpabilidade é normal à espécie. O réu
não registra antecedentes. Não há dados nos autos para aferir a conduta
social, nem laudo para atestar a personalidade. Os motivos são os
inerentes ao tipo e, por fim, não existem elementos para valoração
negativa das circunstâncias e consequências do crime. Diante das
circunstâncias judiciais favoráveis, fixa-se a pena-base no mínimo
legal, 2 (dois) anos de reclusão.
Ausentes agravantes e atenuantes, permanece nesse quantum na segunda fase da dosimetria.
Por fim, diante do reconhecimento da causa
de diminuição da participação de menor importância, reduz-se a pena em
1/3, tornando-a definitiva em 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de reclusão,
a serem cumpridos em regime inicial aberto.
Preenchidos os requisitos legais do artigo
44, do Código Penal, já explicitados anteriormente, substitui-se a pena
privativa de liberdade por duas restritivas de direito, consistentes na
prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período da condenação à
razão de uma hora por dia, e prestação pecuniária no valor de um salário
mínimo. O local de cumprimento da prestação de serviços e a entidade
beneficiada com a prestação pecuniária, serão definidas no juízo de
execução.
Derradeiramente, ressalte-se que não há de
se falar em prescrição da pretensão punitiva em concreto, pois o crime
de racismo é imprescritível, conforme expressa previsão do artigo 5º,
inciso XLII, da Constituição Federal, tratando-se de verdadeira exceção
ao direito de punir, quebrando a regra da temporalidade das pretensões
estatais, e impossibilitando a aplicação do artigo 107 do Código Penal.
Em face do exposto, dá-se parcial
provimento ao recurso, para condenar o réu Carlos, à pena de 2 (dois)
anos de reclusão, em regime aberto, substituída a pena privativa de
liberdade por duas restritivas de direitos - prestação de serviços à
comunidade e prestação pecuniária no valor de um salário mínimo; bem
como para condenar o réu Mauro à pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses
de reclusão, a serem cumpridos em regime inicial aberto, substituída a
pena corporal por prestação de serviços à comunidade e prestação
pecuniária no valor de um salário mínimo.
Gabinete Des. Jorge Schaefer Martins
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