"Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço –
e nisto vai longe.
Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em
toca e gargalhar ao joão-de-barro. Pura biboca de bosquimano. Mobília, nenhuma. A
cama é uma espipada esteira de peri posta sobre o chão batido.
Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas – para hóspedes. Três
pernas permitem equilíbrio; inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a
nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados
calcanhares sobre os quais se sentam?
Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo – colher, garfo e faca a um
tempo?
No mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de
feijão.
Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo. Só tem dois parelhos; um
que traz no uso e outro na lavagem.
Os mantimentos apaiola nos cantos da casa.
Inventou um cipó preso à cumeeira, de gancho na ponta e um disco de lata no
alto: ali pendura o toucinho, a salvo dos gatos e ratos.
4
Da parede pende a espingarda pica-pau, o polvarinho de chifre, o São Benedito
defumado, o rabo de tatu e as palmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas.
Servem de gaveta os buracos da parede.
Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão
quarta perna ao banco. Para que? Vive-se bem sem isso.
Se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las.
Ficam pelo resto da vida os buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.
Quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva, Jeca,
em vez de remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha a
água gotejante…
Remendo… Para que? Se uma casa dura dez anos e faltam “apenas ” nove para
que ele abandone aquela? Esta filosofia economiza reparos.
Na mansão de Jeca a parede dos fundos bojou para fora um ventre empanzinado,
ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela umidade, oscilam na podriqueira do
baldrame. A fim de neutralizar o desaprumo e prevenir suas conseqüências, ele grudou
na parede uma Nossa Senhora enquadrada em moldurinha amarela – santo de mascate.
– “Por que não remenda essa parede, homem de Deus?
– “Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?
Não obstante, “por via das dúvidas”, quando ronca a trovoada, Jeca abandona a
toca e vai agachar-se no oco dum velho embiruçu do quintal – para se saborear de longe
com a eficácia da escora santa.
Um pedaço de pau dispensaria o milagre; mas entre pendurar o santo e tomar da
foice, subir ao morro, cortar a madeira, atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o
sacerdote da Grande lei do Menor Esforço não vacila. É coerente.
Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas,
nem horta, nem flores – nada revelador de permanência.
Há mil razões para isso; porque não é sua a terra; porque se o “tocarem” não
ficará nada que a outrem aproveite; porque para frutas há o mato; porque a “criação”
come; porque…
– “Mas, criatura, com um vedozinho por ali… A madeira está à mão, o cipó é
tanto…”
Jeca, interpelado, olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu,
coça a cabeça e cuspilha.
– “Não paga a pena”.
Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já
amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe
colheita, nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama fincada em
qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem-vergonha.
Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo reside nas
benemerências sem conta da mandioca. Talvez que sem ela se pusesse de pé e andasse.
Mas enquanto dispuser de um pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar
sobre brasas, Jeca não mudará de vida. O vigor das raças humanas está na razão direta
da hostilidade ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo
salgado a Holanda, essa jóia do esforço, é que ali nada o favorecia. Se a Inglaterra
brotou das ilhas nevoentas da Caledônia, é que lá não medrava a mandioca. Medrasse, e
talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhiços, de pé no chão, amarelentos, mariscando
de peneira no Tamisa. Há bens que vêm para males. A mandioca ilustra este avesso de
provérbio.
Outro precioso auxiliar da calaçaria é a cana. Dá rapadura, e para Jeca,
simplificador da vida, dá garapa. Como não possui moenda, torce a pulso sobre a cuia
de café um rolete, depois de bem macetados os nós; açucara assim a beberagem,
fugindo aos trâmites condutores do caldo de cana à rapadura.
Todavia, est modus in rebus. E assim como ao lado do restolho cresce o bom pé
de milho, contrasta com a cristianíssima simplicidade do Jeca a opulência de um seu
vizinho e compadre que “está muito bem.” A terra onde mora é sua. Possui ainda uma
égua, monjolo e espingarda de dois canos. Pesa nos destinos políticos do país com o seu
voto e nos econômicos com o polvilho azedo de que é fabricante, tendo amealhado com
ambos, voto e polvilho, para mais de quinhentos mil réis no fundo da arca.
Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa muito irmã
da de Bertoldo. A esperteza última foi a barganha de um cavalo cego por uma égua de
passo picado. Verdade é que a égua mancava das mãos, mas ainda assim valia dez mil
réis mais do que o rocinante zanaga.
Esta e outras celebrizaram-lhe os engrimanços potreiros num raio de mil braças,
granjeando-lhe a incondicional e babosa admiração do Jeca, para quem, fino como o
compadre, “home” … nem mesmo o vigário de Itaoca!.
Aos domingos vai à vila bifurcado na magreza ventruda da Serena; leva apenso à
garupa um filho e atrás o potrinho no trote, mais a mulher, com a criança nova enrolada
no xale. Fecha o cortejo o indefectível Brinquinho, a resfolgar com um palmo de língua
de fora.
O fato mais importante de sua vida é sem dúvida votar no governo. Tira nesse dia
da arca a roupa preta do casamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras,
entala os pés num alentado sapatão de bezerro; ata ao pescoço um colarinho de bico e,
sem gravata, ringindo e mancando, vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe
Coisada, que lho retém para maior garantia da fidelidade partidária.
6
Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando
o aranhol de gatafunhos a que chama “sua graça”.
Se há tumulto, chuchurrea de pé firme, com heroísmo, as porretadas
oposicionistas, e ao cabo segue para a casa do chefe, de galo cívico na testa e colarinho
sungado para trás, afim de novamente lhe depor nas mãos o “dipeloma”.
Grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o heroísmo, flagrantemente
documentado pelo latejar do couro cabeludo, com um aperto de munheca e a promessa,
para logo, duma inspetoria de quarteirão.
Representa este freguês o tipo clássico do sitiante já com um pé fora da classe.
Exceção, díscolo que é, não vem ao caso. Aqui tratamos da regra e a regra é Jeca Tatu.
O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o suculento recheio de superstições, vale o
do casebre. O banquinho de três pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo se
reedita dentro de seus miolos sob a forma de idéias: são as noções práticas da vida, que
recebeu do pai e sem mudança transmitirá aos filhos"
-MONTEIRO LOBATO - Urupês
Perfil
- I.A.S.
- Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR
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