A sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobília – em qualidade.
Quantitativamente, assombra. Da noite cerebral pirilampejam-lhe apozemas, cerotos,
arrobes e eletuários escapos à sagacidade cômica de Mark Twain. Compendia-os um
Chernoviz não escrito, monumento de galhofa onde não há rir, lúgubre como é o
epílogo. A rede na qual dois homens levam à cova as vítimas de semelhante
farmacopéia é o espetáculo mais triste da roça.
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Guerra do Paraguai.
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Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Eusébio Macário de pé no chão e
cérebro trancado como muita de taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre a pinga
– meio honesto de render homenagem à deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda
não encontrou heréticos.
Doenças haja que remédios não faltam.
Para bronquite, é um porrete cuspir o doente na boca de um peixe vivo e soltá-lo:
o mal se vai com o peixe água abaixo…
Para “quebranto de ossos”, já não é tão simples a medicação. Tomam-se três
contas de rosário, três galhos de alecrim, três limas de bico, três iscas de palma benta,
três raminhos de arruda, três ovos de pata preta (com casca; sem casca desanda) e um
saquinho de picumã; mete-se tudo numa gamela d’água e banha-se naquilo o doente,
fazendo-o tragar três goles da zurrapa. É infalível!
O específico da brotoeja consiste em cozimento de beiço de pote para lavagens.
Ainda há aqui um pormenor de monta; é preciso que antes do banho a mãe do doente
molhe na água a ponta de sua trança. As brotoejas saram como por encanto.
Para dor de peito que “responde na cacunda”, cataplasma de “jasmim de
cachorro” é um porrete.
Além desta alopatia, para a qual contribui tudo quanto de mais repugnante e
inócuo existe na natureza, há a medicação simpática, baseada na influição misteriosa de
objetos, palavras e atos sobre o corpo humano.
O ritual bizantino dentro de cujas maranhas os filhos do Jeca vêm ao mundo, e do
qual não há fugir sob pena de gravíssimas conseqüências futuras, daria um in-fólio
d’alto fôlego ao Sílvio Romero bastante operoso que se propusesse a compendiá-lo.
Num parto difícil nada tão eficaz como engolir três caroços de feijão mouro, de
passo que a parturiente veste pelo avesso a camisa do marido e põe na cabeça, também
pelo avesso, o seu chapéu. Falhando esta simpatia, há um derradeiro recurso: colar no
ventre encruado a imagem de S. Benedito.
Nesses momentos angustiosos outra mulher não penetre no recinto sem primeiro
defumar-se ao fogo, nem traga na mão caça ou peixe. A criança morreria pagã. A
omissão de qualquer destes preceitos fará chover mil desgraças na cabeça do chorincas
recém- nascido.
A posse de certos objetos confere dotes sobrenaturais. A invulnerabilidade às
facadas ou cargas de chumbo é obtida graças à flor da samambaia.
Esta planta, conta Jeca, só floresce uma vez por ano, e só produz em cada
samambaial uma flor. Isto à meia noite, no dia de S. Bartolomeu. É preciso ser muito
esperto para colhê-la, porque também o diabo anda à cata. Quem consegue pegar uma,
ouve logo um estouro e tonteia ao cheiro de enxofre – mas livra-se de faca e chumbo
pelo resto da vida.
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Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhes as crendices, e
como não há linhas divisórias entre estas e a religião, confundem-se ambas em
maranhada teia, não havendo distinguir onde pára uma e começa outra.
A idéia de Deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica. São os santos os graúdos lá de
cima, os coronéis celestes, debruçados no azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir
nela ajudando-os ou castigando-os, como os metediços deuses de Homero. Uma
torcedura de pé, um estrepe, o feijão entornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou
– tudo diabruras da corte celeste, para castigo de más intenções ou atos.
Daí o fatalismo. Se tudo movem cordéis lá de cima, para que lutar, reagir? Deus
quis. A maior catástrofe é recebida com esta exclamação, muito parenta do “Allah
Kébir” do beduíno.
MONTEIRO LOBATO - Urupês
Perfil
- I.A.S.
- Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR
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