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segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

A partir dos cinquenta quem manda é o cavalo



António Lobo Antunes


Como era o nome do muralista? Rivera, isso. Ainda cá canta, o México, nem o cavalo me desvia dele, palavra de honra. Depois dos cinquenta é o cavalo quem manda mas eu continuo no selim. Com o futuro talvez não à minha frente, atrás, mas continuo no selim. Por mais esforços que o tempo faça não me tira daqui. Posso baloiçar, posso escorregar mas aguento. Torto mas aguento. Quase a tombar mas aguento


Ilustração: Susa Monteiro

Há anos e anos conheci em Paris o escritor alemão Ernest Jünger, que tinha perto de cem anos. Disse-me

– Quanto mais envelheço mais futuro tenho

que me deixou de boca aberta. E, de facto, continuava a publicar, de olhinho brilhante faiscando ideias e projectos, até que um belo dia morreu e as ideias e os projectos sumiram-se pelo ralo abaixo consigo, deixando uma espumazinha de rascunhos que se foram evaporando na areia das páginas porque, a partir dos cinquenta, é o cavalo quem manda e tudo o que podemos fazer se limita a tentar equilibrarmo-nos lá em cima, ora pendurados de um lado, ora pendurados do outro, quase a cair, aflitos e precários, mais lentos, mais vagarosos, mais incertos. Começa a haver espaços brancos na memória, esquecimentos absurdos, qual é o nome daquele muralista mexicano, meu Deus, furiosos connosco mesmos, oscilando entre o espanto e a fúria

– Diego quê, Diego quê, não é Orozco, não é

e, passados uns segundos angustiosos, Siqueiros, é o outro, o mais conhecido, Diego Qualquer Coisa, o que se passa comigo, não pode ser, não pode ser, ganas de bater na cabeça a fim de agitar lembranças, tantos espaços ocos, meu Deus, Diego Rivera, gaita, até que enfim, o gordo, parece que estou a vê-lo, zangados com Rivera, zangados com o mundo, desesperados connosco mesmos e não é só a memória que falha, os invernos cada vez mais frios, mais incómodos, mais lenços, mais assoadelas, mais arrepios, menos vontade de sair de casa, dentes que ainda ontem estavam bons, o dentista

– Não era má ideia pôr um implantezito aqui

a espreitar lá para dentro com a ajuda de uns pauzinhos cromados

– Pois é


e os olhos com pena de nós por cima da máscara. Depois dos cinquenta, amigos, é de facto o cavalo quem manda. Menos vontade de sair de casa, conversar, jantar fora, que é do entusiasmo pelas viagens e os museus, um filme óptimo que vais adorar, um concerto, uma peça e uma absoluta falta de vontade, por parte do cavalo, de estar com pessoas, uma absoluta falta de paciência, por parte do cavalo, de ouvir coisas, contar coisas, achar interessante, achar graça. Penso que estou a exagerar, quer dizer o cavalo está a exagerar, ainda acha graça, ainda se interessa. O cavalo e eu não mudámos no mais fundo de mim. Aqui para nós na maior parte do tempo nem sequer existe o cavalo, sou eu sozinho, a sorrir sem amargura alguma. Talvez o Jünger

– Quanto mais envelheço mais futuro tenho

esteja do lado da razão, seja o que for que isso signifique, de modo que estendo os olhos para o rio, lá no fim da janela. Casas, casas, pombos, gaivotas. O retrato da minha avó sobre a mesa, uma rapariga linda, de dezassete anos e imensos olhos azuis. Comprava-me os versos que eu fazia, pegava-me na mão. Ninguém se atrevia a ralhar-me quando estávamos juntos, ninguém me podia ralhar à sua frente, o que eu não dava para estar consigo, sabia? Volta e meia quase me censurava

– Tu matas a tua mãe

enquanto me fazia festas no cabelo, festas óptimas mesmo tendo em conta que fazer festas decentes no cabelo é dificílimo. Como era o nome do muralista? Rivera, isso. Ainda cá canta, o México, nem o cavalo me desvia dele, palavra de honra. Depois dos cinquenta é o cavalo quem manda mas eu continuo no selim. Com o futuro talvez não à minha frente, atrás, mas continuo no selim. Por mais esforços que o tempo faça não me tira daqui. Posso baloiçar, posso escorregar mas aguento. Torto mas aguento. Quase a tombar mas aguento. Se nem três cancros me derrubaram até hoje claro que aguento, já aguentei tanta coisa. Quando amanhecer não quero que me encontrem no chão. Só depois de vocês se irem embora começo a escorregar, mas tão devagarinho que ninguém dá por nada. Até parece que continuo em pé, não parece? E direito, já repararam? Enfim, mais ou menos direito. Se não usarem uma linha de prumo parece mesmo que direito. E depois de vocês desaparecerem de mim o cavalo que faça o que quiser: seja o que for que encontrem não é a mim que encontram: eu estarei muito longe, onde se vê o mar, em gritos de gaivota pequenina. Depois levanto voo até um penedo qualquer de onde a minha avó me chama

– Filho

e eu, todo contente, ao seu colo, a mostrar-lhe a minha coleção de capicuas.

(Crónica publicada na VISÃO 1348 de 3 de janeiro de 2019)

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