A vida não está fácil para os fumantes. Além de não poderem fumar em locais fechados, públicos ou privados, de uso coletivo e do aumento considerável do preço dos cigarros nas últimas décadas — decorrente do contrabando, responsável ainda pela perda do controle de qualidade e da alta tributação imposta como medida para desestimular o consumo — os fumantes agora estão correndo o risco de não poderem fumar dentro de sua própria casa. Embora a maioria das leis antifumo só proíba fumar em locais fechados de acesso ao público (África e China são os que menos controlam a questão), algumas restrições ao fumo dentro de quatro paredes começam a ser impostas pelos tribunais.
Na Alemanha, a população tem acompanhado e discutido o caso de Friedhelm Adolf, um simpático aposentado de 75 anos, fumante desde os 15, que está sob ameaça de despejo pela proprietária do apartamento onde mora de aluguel há 40 anos, em Düsseldorf. A locadora quer resolver o contrato por causa do mau cheiro de cigarro que sai do apartamento de Friedhelm Adolf e se espalha pelas escadas, incomodando demasiadamente seus vizinhos. Ela alega que o aposentado, que consome diariamente cerca de 15 cigarros, não ventila suficiente o imóvel e nem esvazia seus cinzeiros com regularidade, o que poderia minimizar o odor desagradável que exala do apartamento.
Isso configura, em sua visão, perturbação da paz local e grave violação do dever de consideração, surgido no bojo da relação contratual locatícia em razão da boa-fé objetiva, o que lhe permitiria lançar mão tanto do mecanismo da resolução regular do contrato, com base no parágrafo 573 I 1 do BGB (grave violação de deveres contratuais, inclusive os deveres anexos), como da resolução extraordinária por motivo justo (permanente perturbação do sossego), prevista no parágrafo 569 do BGB. E foi exatamente o que fez a proprietária: deu prazo para o fumante desocupar o imóvel.
O problema é que o aposentado se recusa a sair do local, onde vive há quase meio século. Ele alega que o fumo sempre foi tolerado pelos vizinhos e pela proprietária, que na verdade pretende despejá-lo para poder aumentar o valor do aluguel. Além disso, ele tem o direito de fumar dentro de sua própria casa, pois nenhuma lei o proíbe.
O caso tomou tamanha dimensão que o simpático aposentado já virou ícone entre simpatizantes sensibilizados com sua situação e entre os fumantes, que se sentem cada vez mais tolhidos com as restrições antifumo. E se, além disso, um fumante ainda puder ser expulso de seu próprio lar por causa do vício, então, dizem, não se pode mais falar em autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, direitos fundamentais previstos no artigo 2º I da Lei Fundamental (Grundgesetz – GG), que abrangem o direito do indivíduo de satisfazer suas necessidades individuais básicas (fumar) dentro dos já estreitos limites legais.
A proprietária ganhou em primeira e segunda instâncias ao argumento de que a conduta do aposentado representa grave violação de deveres laterais de conduta. O caso chegou ao Bundesgerichtshof (BGH) em fevereiro de 2015, que determinou o retorno dos autos ao Tribunal a quo por falhas processuais e materiais no julgamento. Segundo o BGH, o tribunal de Düsseldorf deveria ter examinado se o incômodo dos vizinhos em função do odor excessivo de cigarro — que pode ser evitado pelo inquilino através de medidas simples e razoáveis — pode ser considerado no caso concreto como perturbação da paz local ou violação do dever lateral de consideração, o que se configura principalmente quando tal incômodo atinge proporções insuportáveis ou põe em risco a saúde dos demais.
Dessa forma, o BGH, embora sem decidir o mérito da lide, sinalizou que apenas em casos excepcionalíssimos, nos quais os incômodos causados pelo fumo possam ser razoavelmente qualificados como insuportáveis ou lesivos à saúde dos vizinhos, justificar-se-ia uma restrição do direito de fumar dentro de quatro paredes. O tribunal de Düsseldorf ainda não se manifestou sobre o caso, de modo que o idoso fumante ainda pode permanecer em sua casa — ainda que sem sossego.
Colisão de direitos fundamentais
Em essência, tem-se aqui uma colisão de direitos fundamentais: de um lado, o direito do vizinho de usufruir seu imóvel sem ser incomodado por odores desagradáveis, inclusive de cigarro e, de outro, o direito do fumante de usar seu lar como ambiente existencial e inviolável para a realização e satisfação de suas necessidades mais íntimas, dentre as quais inclui-se para alguns também o fumo. Os especialistas ressaltam, com razão, que, a rigor, a questão central extrapola o problema do fumo, dizendo respeito a quaisquer odores exalados das residências.
Ao se pronunciar, ainda que tangencialmente, sobre o caso Friedhelm Adolf, o BGH reafirmou entendimento esposado em decisão de 16 de janeiro de 2015, envolvendo uma briga de vizinhos: o inquilino do andar de cima reclamava do mau cheiro de cigarro exalado do andar abaixo, vez que o locatário fumava várias vezes na sacada, impedindo-o de usar a sua própria em vários horários do dia. Por isso, pediu que o juiz fixasse horários para que o vizinho fumasse na sacada, devendo o mesmo abster-se de lá fumar fora dos horários estabelecidos.
Em primeiro e segundo graus a ação foi julgada improcedente ao argumento de que a pretendida restrição de fumo não se harmonizava com o poder de autodeterminação do citado artigo 2 I da GG, que abrange, como demonstrado, a decisão de fumar em seu reduto particular, independentemente de prescrições judiciais, temporais ou quantitativas.
O caso foi parar em Karlsruhe, sede dos tribunais superiores alemães. Segundo o BGH, é bem verdade que todo inquilino tem, em princípio, umapretensão de abstenção (Unterlassungsanspruch) para fazer cessar interferências de toda ordem em sua posse, inclusive as decorrentes de imissões de ruídos, odores, gases e, naturalmente, (mau) cheiro de cigarro.
Essa pretensão, válida entre os inquilinos, não se afasta pelo fato do ato de fumar ser considerado inerente ao conceito de “uso do imóvel segundo o contrato”, de modo que o inquilino fumante usa regularmente o imóvel e não fica, em regra, por exemplo, obrigado a limpar portas, paredes e janelas impregnadas do cheiro de cigarro, como já decidiu o BGH em decisão de 28 de junho de 2006 (VIII ZR 124/05). Da mesma forma, o fato de ser permitido contratualmente ao locador fumar no imóvel, algo frequente na Alemanha, não prejudica o direito do vizinho de não ser molestado por interferências odoríficas durante o uso e gozo do imóvel.
Mas essa pretensão de defesa (Abwehranspruch) do vizinho não é absoluta e sofre limitações, principalmente em casos de cheiro decorrente do tabaco, afinal o fumante está satisfazendo seu vício em sua residência, vale dizer, em local permitido. E aqui fica claro o choque de posições jurídicas fundamentais acima mencionado, exigindo o sopesamento dos interesses envolvidos de acordo com as peculiaridades do caso concreto.
Segundo o tribunal, a pretensão de abstenção não tem espaço quando os incômodos decorrentes do odor do tabaco forem irrelevantes, o que deve ser apreciado sob a ótica do homem médio sensato e razoável que, colocado na mesma situação do vizinho incomodado, considere tolerável o odor exalado. Mas com isso o problema não está resolvido. Pode ser que, ainda quando irrelevante o incômodo, haja riscos para a saúde do fumante passivo e nessa hipótese o caso muda de figura.
O problema reside em comprovar os risco à saúde no caso concreto. E aqui o ônus é do incomodado, pois em princípio se presume que a fumaça exalada do fumo ao ar livre não representa risco concreto para a saúde de outrem. Por essa razão, a maioria das leis antifumo não proíbe fumar ao ar livre, mas apenas dentro de locais total ou parcialmente fechados, frequentado por várias pessoas. Dessa forma, apenas quando o incomodado efetivamente abalar essa presunção, demonstrando que há uma suspeita real e justificada de riscos para sua saúde, pode se caracterizar o relevante incômodolegitimador da restrição do fumo no caso concreto, que se dá via de regra por regulamentação judicial. Ou seja: o juiz fixa no caso concreto os horários em que o dependente pode fumar.
E aqui, salienta o BGH, a regulamentação deve ser feita de acordo com omandamento da consideração recíproca entre as partes. Vale dizer: com base nos parâmetros razoáveis exigidos pela boa-fé objetiva, cujo comando nuclear consiste em agir com lealdade e retidão, considerando os interesses legítimos da contraparte, como preconiza o parágrafo 241 II do BGB. Como o tribunal de Brandenburg, onde o caso se encontra, não analisou esses aspectos, os autos foram remetidos para reavaliação.
Postura cautelosa da corte alemã
Do exposto, percebe-se que o tribunal reafirmou ao fumante o direito fundamental de fumar entre quatro paredes, só admitindo restrições em casos excepcionalíssimos, devidamente fundamentados. Uma dessas hipóteses configura-se quando o odor oferece riscos sérios à saúde ou considerável incômodo para a vizinhança. A liberdade de fumar faz parte da autonomia privada do indivíduo, do seu poder de determinar livremente sua própria vida de acordo com suas crenças e seus valores — sem entrar aqui na discussão acerca da indução ao fumo e à dependência pela indústria do tabaco.
E a autonomia é pressuposto para o livre desenvolvimento da personalidade humana, direito fundamental do ser humano. Mas, como todo direito fundamental, a autodeterminação sofre limitações legais na defesa dos não fumantes, que não desejam sofrer danos à saúde em decorrência do fumo passivo. A proibição legal de fumar em locais fechados encontra na proteção dos não fumantes sua justificativa. Isso vale ainda quando se possa com boas razões afirmar que, nestes casos concretos, o problema central ultrapasse o fumo e diga respeito ao problema de efusões exaladas de residências.
Na Alemanha, contudo, a proibição de fumar em locais de acesso ao público não é absoluta, havendo locais como feiras, pequenos restaurantes, bares e botequins onde o fumo é permitido — os famosos Kneipen. Em estabelecimentos maiores, há obrigatoriedade de fumódromos, onde, a rigor, a proteção dos não fumantes não se dá de forma plena. Basta-se pensar nos funcionários desses estabelecimentos que adentram os fumódromos para servir os ali presentes. A opção do legislador alemão por não vedar totalmente o fumo tem diversas razões, passando, sem dúvida, pelo respeito à autonomia fundamental do indivíduo e pela primazia, em determinados casos, do direito fundamental ao livre exercício profissional dos donos de bares e restaurantes, que restaria restringido — ou quiçá aniquilado, no caso dos pequenos — com a vedação total ao fumo.
Decisão do Tribunal Constitucional Alemão
Essa colisão de posições jurídicas fundamentais, bem como a constitucionalidade da opção legislativa pela restrição parcial ao fumo, foi detalhadamente exposta e analisada pelo Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfG) em queixa constitucional movida por um dono de um botequim e de uma boate contra leis estaduais de Baden-Wüttemberg e Berlim, que impunham a proibição de fumar nesses locais.
Nesse caso paradigmático, o BVerfG firmou o entendimento de que o problema possui inúmeras nuances, sendo evidente o conflito de posições fundamentais: de um lado, o direito ao livre exercício profissional dos empresários do ramo gastronômico e, do outro, a autodeterminação do fumante e o direito à vida e saúde de fumantes passivos, dentre os quais acompanhantes (por exemplo: familiares, amigos ou simples by stander) e funcionários de bares e restaurantes, que se expõem aos efeitos nocivos do cigarro no exercício de seu ofício.
Segundo o BVerfG, o legislador pode optar pela tutela absoluta de um dos grupos (não fumantes) ou optar por uma tutela relativa, baseada nacomposição de interesses, balanceando todos os interesses em conflito ao regulamentar a questão. Decidindo-se, contudo, por um modelo baseado na ponderação de interesses, deve o legislador sopesar e ponderar corretamente os interesses em jogo.
Isso pode, por vezes, levar ao reconhecimento da primazia dos interesses dos donos de bares e restaurantes, principalmente quando se tratar de pequena ou microempresa, cuja sobrevivência financeira seria seriamente posta em risco pela vedação total ao fumo em seus estabelecimentos, tendo em vista a impossibilidade, por falta de espaço, de criar fumódromos, como fazem os grandes bares e restaurantes, que dispõem de espaço físico suficiente para isolar e abrigar fumantes em suas dependências.
No caso concreto, o BVerfG entendeu que não seria razoável vedar o fumo em pequenos bares e botequins, que não dispõem de área para fumódromo e cujo público principal consiste exatamente em fumantes que, impedidos de lá fumar, migrariam para os grandes estabelecimentos gastronômicos, levando os pequenos à falência. Seria desproporcional atribuir-lhes tão pesado encargo, ainda que em prol da proteção de bem jurídico de elevado status constitucional, como a proteção da vida e da saúde de não fumantes, que, por outro lado, não sofreriam restrições na vida em sociedade se simplesmente se abstivessem de frequentar tais locais.
A situação no Brasil
No Brasil, a Lei federal 9.294/1996 proibia fumar em locais fechados de uso coletivo, mas assegurava espaço reservado a não fumantes, destinando-se em primeira linha a espaços públicos e privados, especialmente bares e restaurantes. Algumas leis estaduais, como a paulista (Lei 13.541/2009), vieram posteriormente disciplinar a matéria e inovaram, vedando a criação dos fumódromos, razão pela qual sua constitucionalidade foi questionada no Supremo Tribunal Federal em ação movida pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel).
A ação apontou vícios de constitucionalidade formal, por usurpação de competência, e material, por desrespeito aos princípio da liberdade individual dos fumantes, da livre iniciativa e da razoabilidade e proporcionalidade da vedação total do fumo. A relatora do caso, Min. Ellen Gracie, arquivou a ADI 4.239/2009 por ilegitimidade ativa da associação para propor a ação no STF.
Em seguida, a Confederação Nacional do Turismo (CNTUR) ajuizou a ADI 4.249/2009 pelos mesmos fundamentos, sob a relatoria do ministro Celso de Mello. Houve parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) pela inconstitucionalidade da lei antifumo, vez que a Assembleia Legislativa teria invadido a competência da União ao estabelecer regras gerais sobre o fumo em clara oposição ao disposto na legislação federal. A ação encontra-se atualmente aguardando julgamento no STF.
Nesse interregno, entrou em vigor a Lei federal 12.546/2011, regulamentada pelo Decreto federal 8.262/2014, em vigor desde 3 de dezembro de 2014. Com a nova lei, o fumo foi totalmente proibido em locais total ou parcialmente fechados, públicos ou privados, como ambientes de trabalho, escolas e universidades, bares, boates e restaurantes, veículos públicos ou privados de transportes coletivos, taxis e viaturas oficiais, áreas comuns de condomínios, etc. Os chamados fumódromos foram abolidos.
É permitido fumar apenas em áreas ao ar livre como parques, praças, áreas abertas de estádios de futebol, vias públicas e tabacarias voltadas especificamente para esse fim. Também é permitido fumar em casa e em cultos religiosos, desde que parte do ritual. A publicidade do cigarro foi totalmente vedada, inclusive nos pontos de venda, onde antes se permitia a publicidade em displays. Os avisos sobre danos causados pelo tabaco deverão ocupar 100% da face posterior das embalagens e uma de suas laterais e os produtos só podem ser expostos no interior dos estabelecimentos, devendo 20% do mostruário ser ocupado por mensagens de advertência. A lei impõe ainda multas pesadas aos proprietários dos estabelecimentos por infrações, ficando sua fiscalização a cargo das agências de vigilância sanitárias dos estados e municípios.
No que tange especificamente à questão discutida no casos concretos aqui mencionados, percebe-se que no Brasil também é permitido fumar em casa. Para quem mora em condomínios, embora muito seja regulado nas normas condominiais, como a proibição de usar churrasqueira na sacada, só é proibido fumar nas áreas comuns, de modo que a casa ainda é, nesse sentido, o abrigo inviolável do fumante.
Mas pode ser que, tal como na Alemanha, surjam questionamentos quanto a isso em função das corriqueiras brigas de vizinhos. A solução do conflito de direitos fundamentais, como visto, nem sempre é simples no caso concreto — ao contrário do que fazem crer os defensores da aplicação imediata da Constituição no Direito Privado e dos “princípios” da proporcionalidade e razoabilidade como varinha de condão, que tudo soluciona com facilidade, via de regra amparado em argumentações ricas em subjetivismos e pobres em racionalidade e cientificidade.
O recurso ao já banalizado princípio da dignidade humana nesse caso é um tiro no pé, pois em ambos os polos há dignidade a ser tutelada. E — é razoável argumentar — pode ser que, no caso concreto, haja uma necessidade maior de se proteger o próprio fumante, cujo poder de autodeterminação é minado de factum pela dependência química decorrente do próprio produto e, no caso de Friedhelm Adolf e de muitos, pela indução ao consumo através das massivas publicidades de outrora.
Por isso, deve o julgador ponderar adequadamente os valores em jogo, justificando racionalmente sua decisão, demonstrando a relação do caso com a norma ou princípio empregado, como aliás ordena o artigo 489 do novo CPC, o que permite não apenas o controle da decisão pelas partes em litígio, mas também pela comunidade científica.
Quanto aos fumantes alemães, como os autos retornaram aos respectivos tribunais de origem, só resta aguardar as cenas dos próximos capítulos. Enquanto isso, Friedhelm Adolf segue angariando aliados com sua simpatia e bom humor: os jornais dão conta de doações para cobrir os custos da mudança, de ofertas de proprietários que o querem como inquilino e, ao que dizem, até de nova namorada. No dia do julgamento em Karlsruhe, ele posou para fotos todo prosa com um cigarro na boca na entrada do tribunal. Mas, independentemente do desfecho final, uma coisa é certa: fumar está cada dia mais perigoso.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
Karina Nunes Fritz é professora da FGV Rio. Doutoranda na Humboldt Universidade de Berlim.
Revista Consultor Jurídico, 31 de agosto de 2015, 9h50
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