Ituzaingó: a história do hino brasileiro que teria sido roubado por argentinos
Música foi levada como trofeu após batalha do Passo do Rosário, em 1827
Pesquisadores buscam vestígios de batalha, travada em 1827, quando o Brasil perdeu marchaFoto: Félix Zucco / Agencia RBS
Nilson Mariano
Os arqueólogos com detectores de metais que esquadrinham o ventre do pampa, emRosário do Sul, na fronteira gaúcha, não buscam apenas vestígios da maior batalha já travada em solo brasileiro, há longínquos 186 anos.
Cada peça que estão desencavando — bala de canhão, cabo de espada, projetis, estribos, pistolas, uma fivela que seja — ajuda a revelar um episódio que até hoje intriga, surpreende e pode reacender antigas pendências.
Tudo começou durante o combate do Passo do Rosário, em 20 de fevereiro de 1827, entre os exércitos do Império do Brasil e das Províncias Unidas do Rio da Prata (Argentina). Para comemorar o sucesso brasileiro, o qual dava como favas contadas, dom Pedro I teria mandado compor a Marcha da Vitória. Mas o plano de Sua Majestade Real falhou: em um confronto cujo resultado é motivo de discórdia até agora, os castelhanos levaram a música como troféu.
Além de cantar vitória, os argentinos rebatizaram a melodia de Marcha de Ituzaingó — a versão castelhana para o nome Passo do Rosário. Foram além: anunciaram que o próprio Pedro I criara a obra. E foram mais adiante ainda: desde então, tocam a música nos quartéis e nos rapapés ao presidente do país. No momento, os três minutos e 57 segundos de acordes vibrantes homenageiam Cristina Kirchner.
Nos últimos dias de abril, ZH acompanhou as investigações arqueológicas em Rosário do Sul, onde 7,5 mil argentinos e uruguaios se bateram contra 5,1 mil brasileiros quase dois séculos atrás. As pesquisas são feitas pela entidade Campos de Honra, do Uruguai, que reúne cientistas, militares e especialistas em diversas áreas — desde a prospecção no subsolo à conservação dos objetos em museus.
O projeto está em andamento, a conclusão dependerá do volume das descobertas e da vontade dos governos em permitir desencovar um passado constrangedor. Nenhuma nação tolera perder os símbolos pátrios. Recentemente, o Paraguai insistiu para que o Brasil devolva o canhão El Cristiano (o cristão é referência ao fato de ter sido construído a partir do metal fundido de sinos das igrejas de Assunção), tomado durante a Guerra da Tríplice Aliança (1864-70).
Pesquisa une os três países
É remota a chance de que a equipe do Campos de Honra (Campos de Honor) localize algum fragmento da Marcha da Vitória, como um pedaço de clarinete, uma corneta ou um parafuso borboleta de tambor. No entanto, as mais de 40 peças encontradas no final de abril — a maioria de armamentos — podem indicar em quais circunstâncias os generais castelhanos se apropriaram da música.
— Cada material tem uma cédula de identidade, traz uma informação valiosa — ressalta o investigador histórico de campos de batalha, argentino Diego Lascano.
Se os mandatários de 1827 eram adversários, reproduzindo nos confins da América do Sul a eterna disputa entre Portugal e Espanha, os historiadores atuais compartilham suas pesquisas. Trocam conhecimentos para elucidar o mistério.
No Rio Grande do Sul, Carlos Fonttes vasculhou relatos de combatentes do Passo do Rosário, como o do argentino José María Todd, que atestam a subtração da marcha. Porém, é cauteloso quanto à autoria dela.
— Não há provas de que seja de dom Pedro I, porque a partitura não está assinada — observa Fonttes, delegado da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (Ahimtb), em Uruguaiana.
No lado da Argentina, o historiador Luis Furlan confirma a existência da marcha, executada pela primeira vez em 25 de maio de 1827 — três meses após a batalha. Furlan diz que a partitura está registrada no Instituto Universitário Nacional de Arte — Departamento de Artes Musicais, de Buenos Aires, sob o número CP41-1293.
Há versões sobre como a música foi apreendida. Uma delas é de que estava num baú, abandonado por soldados da banda imperial durante a retirada. Outra é de que foi achada na mochila de um oficial morto. Para Furlan, o incontestável é que o seu país adotou oficialmente a marcha surrupiada do Brasil:
— É evidente que se respeitou e valorizou, e até se concedeu um lugar de distinção, como demonstram as solenidades em que é executada.
Resquícios de batalha
A equipe arqueológica Campos de Honra tenta reconstituir, a partir da descoberta de armas e objetos, uma batalha que envolveu as elites militares europeia e sul-americana.
Veteranos das guerras prussianas e napoleônicas combateram com astutos caudilhos do pampa, exímios cavaleiros guaranis do Rio Grande do Sul e esquadrões de lanceiros formados por escravos libertos do Uruguai. Uma mistura de estratégias, raças e valentias. De 24 a 28 de abril, os integrantes do Campos de Honra perscrutaram uma área de 20 hectares, em Rosário Sul, onde os exércitos se enfrentaram há 186 anos. Foram localizados fragmentos de granadas, balas de canhão, gatilhos e balins, mais varetas de socar canos de carabinas, estribos e pederneiras.
As pesquisas se baseiam em documentos da época. Na varredura com detectores de metais, os arqueólogos se guiaram por um mapa feito em 1827 pelo capitão-engenheiro Adolph Friedrich von Seweloh, alemão que era o ajudante do Marquês de Barbacena, o comandante do exército imperial no Passo do Rosário (Ituzaingó).
– Os objetos revelam os movimentos da guerra, a posição das artilharias, os ataques das cavalarias, a direção dos tiros – informa o diretor do Campos de Honra, Diego Lascano.
Não é a primeira prospecção feita no lugar. Em 1957 (130 anos depois), foram exumados os despojos dos combatentes. Armas inteiras – rifles, sabres e espadas – estão nos acervos do Regimento Passo do Rosário (4º RCC) e do Museu Honório Lemes, em Rosário do Sul. Moradores da região também encontraram peças, as quais guardam em casa.
Em infográfico, entenda a batalha do Passo do Rosário:
Empate técnico ou vitória inconclusa?
Mas quem ganhou o confronto no verão de 1827, de aproximadamente seis horas de duração? Historiadores argentinos garantem que foi uma vitória castelhana, pois o Brasil tomara a iniciativa da retirada.
Contrapondo-se, estudiosos daqui argumentam que a manobra foi necessária, porque o vento soprava um incêndio (causado pelas granadas no capim seco) contra as tropas imperiais.
Com 1.913 cavaleiros e 500 infantes a menos, o Exército Brasileiro escapou de um desastre graças à pontaria dos artilheiros. Aquele que viria a ser a mira do Império, Emilio Mallet, comandava a 1ª Bateria. Os quadrados de infantaria – soldados atirando de fuzil, de pé e ajoelhados – repeliram a cavalaria inimiga durante a retirada. Por fim, ambas as forças recuaram aos acampamentos, a soldadesca exausta e sedenta com o calor de fevereiro.
– Os dois exércitos ficaram inertes, sem condições de luta. Não houve uma vitória conclusiva – avalia o coordenador do Campos de Honra, o uruguaio Marcelo Díaz Buschiazzo, professor de História Militar.
O maior vitorioso foi o Uruguai, que conseguiu sua independência, deixando de pertencer ao Império do Brasil. Depois de Passo do Rosário ou Ituzaingó, Dom Pedro I desistiu de anexar a província rebelde.
Fonte: ZERO HORA
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