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sábado, 20 de junho de 2015

Lança-perfume ressurge entre jovens da periferia e deixa rastro de mortes


A droga dos carnavais do século passado volta à moda, em versões caseiras mais destrutivas

GRAZIELE OLIVEIRA

O perfil de Dayane Almeida no Facebook tem mais de 12 mil seguidores. Musa de rolezinhos – encontros de jovens organizados pela internet –, aestudante de 16 anos arrebanhou fãs com frases sobre sua vida de adolescente no Itaim Paulista, bairro pobre de São Paulo, salpicadas de exclamações e carinhas, além de imagens em que aparece fazendo biquinho – a pose consagrada pela socialite americana Kim Kardashian. Há um mês, porém, a página trocou o clima festivo por avisos sobre data e local de um velório. Filha única, Dayane morreu no Dia das Mães. Segundo o atestado de óbito, de parada respiratória. A família diz que a jovem passou a noite em um baile funk de rua, inalando lança-perfume – droga cuja popularidade caiu ao longo do século passado e que ressurgiu, nos últimos anos, nas periferias.
 
NUNCA MAIS
Keli Braga com uma foto da afilhada, Dayane Almeida. A adolescente inalou lança- perfume a noite toda e morreu (Foto: Marcelo Min/Fotogarrafa/Época)

Uma estimativa do grupo Rolezinho – A Voz do Brasil, feita por contato com hospitais, sugere que, de cada 100 jovens que dão entrada em hospitais públicos de periferia da capital paulista nos fins de semana, 20 apresentam algum quadro clínico decorrente do uso do lança-perfume – e quatro morrem. “Antigamente, nos bailes de rua, de cada dez jovens, três usavam lança. Hoje, na mesma rodinha de amigos, oito usam a droga”, diz Darlan Mendes, diretor da associação e idealizador da campanha “Lança mata”. Segundo a Polícia Federal, a apreensão de lança-perfume mais que dobrou entre 2010 e 2014 (leia o quadro abaixo). Parte do material apreendido é de lotes contrabandeados de países onde a venda é permitida, como Argentina, Paraguai e Uruguai. Mas a maior parte é produzida em fábricas de fundo de quintal, pelos próprios jovens, com receitas encontradas na internet.

As fórmulas incluem substâncias baratas e de fácil acesso, impróprias para o uso humano (ao fim da matéria leia algumas delas). “A mistura caseira é tão agressiva que vem envasada em latinhas de alumínio e frascos de uso hospitalar. As garrafas de refrigerante derretem”, diz Mendes. A produção caseira dificilmente é percebida pelas autoridades policiais e, por isso, especialistas dizem que o mercado de lança-perfume é muito maior e mais silencioso do que as apreensões revelam. “No fim de semana da morte de Dayane, outros três jovens morreram no bairro, por causa de lança-perfume”, diz Keli Braga, madrinha da estudante.

Para profissionais de saúde da rede pública de São Paulo, a dimensão do problema se tornou facilmente perceptível. Os atendimentos de emergência por causa dessa droga vêm superando a de entorpecentes como a cocaína. “É uma droga barata que se espalhou pelo bairro. Há três anos, eu atendia, em média, um caso por fim de semana. Agora, são pelo menos quatro”, diz uma enfermeira, sob a condição de anonimato. Ela é responsável pelo atendimento em um pronto-socorro municipal na Zona Leste de São Paulo. “Atendo a até oito pacientes por fim de semana”, diz Fabiano Lautenschlaeger, clínico geral e cardiologista. Apesar do relato de profissionais que lidam com o problema diariamente, as secretarias de Saúde e Segurança Pública não têm dados precisos sobre o avanço da droga. Isso dificulta a elaboração de políticas de combate.

Apesar de matar, o lança-perfume não tem contra si o estigma que cerca outras drogas. O produto chegou ao Brasil no início do século passado como um spray aerossol para perfumar ambientes – daí o nome. O jato gelado e levemente entorpecente ficou popular em bailes de Carnaval. Foi proibido no Brasil em 1961, mas já estava incorporado aos hábitos da sociedade. A cantora Rita Lee fez muito sucesso nas rádios, em 1980, com a música “Lança perfume”: Lança menina/Lança todo esse perfume/Desbaratina/Não dá pra ficar imune. “O lança-perfume sempre foi aceito e, de cinco anos para cá, tornou-se uma substância de uso abusivo e regular nas periferias”, diz Paulo Malvasi, antropólogo e doutor em saúde pública. “É visto como algo corriqueiro, apesar da alta toxidade e do risco”, diz. Em sua nova encarnação, o lança-perfume saiu dos bailes de Carnaval para chegar a micaretas, festas de música eletrônica e, mais recentemente, aos encontros de jovens na periferia.

Jovens e adolescentes passam a noite aspirando “lança” em garrafinhas e latinhas pelos bailes. O efeito é intenso – uma breve vertigem acompanhada de um zumbido intenso, apelidado pelo usuários de "tuim" – e pode ser obtido a preço baixo. A ampola com 5 mililitros custa R$ 5. Com R$ 15, é possível inalar a noite toda. Se estiverem em grupo, os jovens fazem vaquinha e a droga fica ainda mais barata. Mas isso nem é necessário. Os vendedores estão usando componentes piores e mais baratos, para oferecer uma dose de lança-perfume a R$ 1. Nas festas de rua, os fluxos, a droga é vendida aos berros, como numa feira livre: “Olha o lança! Olha o lança!”. Algumas letras de funk falam sobre o uso da substância, como “É o lança de coco, baforou ficou louco”, do funkeiro MC Bin Laden.
 
NUNCA MAIS
O produtor musical Luiz Alberto Camargo, ex-usuário de lança-perfume. Após desmaiar na rua, ele decidiu largar a droga (Foto: Marcelo Min/Fotogarrafa/Época)

O lança-perfume age rapidamente, de cinco a dez segundos após a inalação. Até 30 minutos depois, é possível sentir seus efeitos: zumbidos no ouvido, vertigens e alucinações. Segundo Cláudia Camargo, especialista em dependência química do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o lança-perfume reduz as atividades do sistema nervoso central e pode levar à depressão. Sonolência, tremores, falta de apetite e lentidão são sintomas que podem permanecer de três a cinco dias depois do “rolê” (como os jovens chamam as festas). “Assim como maconha e álcool, o lança-perfume abre portas para substâncias mais problemáticas”, diz Cláudia.

Seis meses atrás, a curiosidade sobre os efeitos do lança-perfume quase matou o produtor musical Luiz Alberto Camargo, conhecido como Dudamel, morador do bairro Jardim Lajeado. “Eu queria saber o que era o tal do ‘tuim’”, diz o jovem, de 26 anos. Dudamel quase morreu. “Era uma festa grande, umas 4 mil pessoas estavam lá, e havia vendedores de lança-perfume por todos os lados”, diz. O jovem conta que depois de inalar sentiu formigamento pelos braços, falta de ar e calafrios, até que desmaiou. Bateu forte com a cabeça no chão. Socorrido por amigos, acordou no hospital. “Parei e hoje vejo que é possível curtir sem usar drogas”, diz.

Dayane não teve a mesma sorte. Brigou com a mãe, que queria a companhia da filha numa visita à casa de parentes. Saiu com as amigas rumo à favela de Heliópolis, uma das maiores de São Paulo, onde haveria uma festa. Naquela noite, mãe e filha não se despediram como de costume. Não houve beijo ou abraço. Quando a mãe se deu conta, Dayane já tinha batido a porta e saído. Não voltou mais.

Fonte: ÉPOCA

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