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sexta-feira, 26 de junho de 2015

CRENDICE CATÓLICA NO NÚMERO DA BESTA (666) - FUNDAMENTALISTAS BATERAM ÀS PORTAS DA JUSTIÇA, BUSCANDO TUTELA, SEM SUCESSO


Justiça mineira não muda CPF que termina em 666



O número com o final 666-11 pode ser apenas uma seqüência de um CPF comum. Assim, pensaria o mais desatento dos olhares. Mas para os pais de uma menina da cidade de Barbacena, em Minas Gerais, ele é mais que isso. Os últimos dígitos do documento remetem ao chamado número da Besta do Apocalipse. Segundo eles, é causa de constrangimento para a família “de católicos convictos e praticantes”.

Depois de tentativas para mudar a numeração do documento nos órgãos administrativos tradicionais, o casal decidiu entrar na Justiça. O pedido foi rejeitado pelo juiz da 16ª Vara da Justiça Federal de Minas Gerais, Marcelo Dolzany da Costa.

Os pais sustentam que a proteção da criança está em risco, em especial no campo emocional, e que se sentem “ameaçados a abandonar suas mais íntimas convicções, crenças e filosofias religiosas”. Uma das explicações para tal certeza foi por eles encontrada no ensinamento de Orlando Fedeli, doutor em História pela USP.

Por meio de diferentes cálculos, Fedeli defende que o número 666 significaria a suprema falsidade, aquele que se faz passar por Cristo, o Anticristo. Para chegar a tal resultado, ele admite que o número 6 representa a perfeição nas partes. É o primeiro número cujos componentes, quando somados ou multiplicados, resultam em 6 (1+2+3=6 e 1x2x3=6). Por isso, Deus fez o mundo em seis dias. Em contrapartida, o número 7 representa totalidade e o número 1, Deus. A perfeição menos Deus (7-1) significaria, assim, a falsidade e 666 seria falso, falso, falso.

O recurso aritmético usado pela defesa para tentar provar o significado da combinação numérica também foi utilizado pelo juiz. Por meio de cálculos com nomes letras e números do processo, ele afirmou que a seqüência que envolve o número 6 está em “qualquer lugar, desde que se esteja disposto a vê-la”. Segundo ele, “não é o número em si que surge, mas o olhar de cada intérprete nos dados que quiser manipular. Este é o risco dos fundamentalismos.”

Dolzany da Costa conclui que a preocupação dos pais da menina não “reflete matéria que sensibilize a intervenção do Estado-juiz”. Ele negou o pedidos do casal sem julgamento do mérito.

O pedido de mudança foi fundamentado com os dispositivos sobre a liberdade de culto e a proteção à família e ao adolescente na Constituição de 1988 (arts. 5º, VI e 227, parágrafo 7º), no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 16, III, e 15 a 18), na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18) e na Declaração da Organização das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as Forams de Intolerância e Discriminação fundada na Religião, de 25/11/1981 (art. 1º, 2º, 3º,5º, 7º e 8º).

Leia sentença na íntegra

Proc. nº 2004.38.00.011819-4 - JURIDISDIÇÃO VOLUNTÁRIA - ALVARÁ –CLASSE 5209

Requerentes: V. D. C. N., REPRESENTADA POR SEUS PAIS A. D. N. e M. L. C. N. (Adv.: A. M. C.)

Requerida: UNIÃO (MINISTÉRIO DA FAZENDA - SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL)

Juiz Federal: MARCELO DOLZANY DA COSTA

SENTENÇA

Se és alguém a quem são feitas petições, ouve com calma a fala do requerente. Não o rechaces antes que ele tenha aliviado suas angústias ou antes que tenha dito aquilo pelo que veio. Um requerente gosta mais da atenção dada a suas palavras do que do cumprimento daquilo pelo que veio. Quem ouve se alegra com isso mais do que o requerente, mesmo antes que aquilo que foi ouvido aconteça. Daquele que rechaça um requerente, se diz: "Por que ele faz isso?". Não é necessário que tudo o que ele pediu aconteça, mas um bom ouvido acalenta o coração. (Trecho das instruções do vizir Ptah-Hotep a seu filho, in Grandes Mestres -- Sabedoria Milenar Hoje -- Org. e trad. Julia Bárány. São Paulo : Mercuryo, 2002, p. 36)

1 – Relatório

A autora é menor impúbere nascida em 23 de fevereiro de 1991 e residente na cidade de Barbacena (MG). Seus pais, na condição de seus representantes legais, vêm a juízo pedir alvará para que a Secretaria da Receita Federal altere o número de seu registro no Cadastro de Pessoas as Físicas - CPF, que lhe foi conferido como 070.818.666-11. Segundo a petição inicial, os pais tiveram "o constrangimento de que os três últimos números [do CPF de sua filha], antes do dígito final, são "666", o que lhes repugna a crença religiosa de "família de católicos convictos e praticantes". Frustrados nas vias administrativas em obter a alteração daquele registro, sentiram-se "ameaçados a abandonar suas mais íntimas convicções, crenças e filosofias religiosas". Por isso, sustentam que está em risco a proteção de sua criança, especialmente no campo emocional, para eles "abrigo e fonte da sabedoria humana". É que aquela trinca de dígitos os remete à seguinte passagem bíblica do Livro do Apocalipse:

(...) O Número da Besta: Ai de vocês todos sobre a terra e o mar, pois o demônio enviou a besta com ódio, porque ele sabe que o tempo é curto ... Aqueles que tenham o entendimento conheçam o número da Besta; Mas é um número humano, É o número seiscentos e sessenta e seis." (Apocalipse, cap. XIII, versículo 18)

Em seguida, invoca-se trecho de artigo de autoridade católica romana que define a trinca 666 como "falso, falso, falso, a suprema falsidade, aquele que se põe como Cristo sem o ser: o Anticristo" (f. 7). Para fundamentar juridicamente seu pedido, a autora transcreve os dispositivos sobre a liberdade de culto e a proteção à família e ao adolescente na Constituição de 1988 (arts .5º, VI, e e 227, § 7º), no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 16, III, e 15 a 18), na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18) e na Declaração da Organização das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação fundadas na Religião, de 25/11/1981 (art. 1º, 2º, 3º, 5º, 7º e 8º).

O pedido tramitou originariamente na comarca de Barbacena. Declinada a competência em favor da Justiça Federal, os autos foram inicialmente distribuído a um dos Juizados Especiais Federais de Belo Horizonte, onde também se declinou a competência em razão da matéria. Por livre distribuição, a causa para cá foi remetida na semana passada. Anteontem, 26, vieram ao gabinete.

É o relatório.

2 - Fundamentos

As custas iniciais foram recolhidas apenas na comarca de origem. Antevejo, entretanto, que falta à autora pelo menos uma das condições para agir - a possibilidade jurídica do pedido. Portanto, dispensável por ora a complementação do recolhimento das custas aqui na Justiça Federal. A autora, na pessoa de seus pais, invoca a convicção religiosa como mote para que o juiz determine à autoridade administrativa a alteração do número de seu CPF.

Segundo sua advogada, os pais "após dias de intensa reflexão e constrangimento, próprios de todos os que encontram-se ameaçados a abandonar suas mais íntimas convicções, crenças e filosofias religiosas, enfim, a cultura na qual emoldura-se a alma, desde as primeiras lições da vida, nada mais lhes resta qual o presente proclamo" (f. 6). Para eles, vale o ensinamento de Orlando Fedeli, doutor em História pela USP e presidente da Associação Cultural Montfort, cuja exegese da passagem bíblica extraída do Livro da Revelação assim transcreveram:

A Igreja Católica não tem pronunciamento oficial sobre o que significa o sinal da besta, que o Apocalipse afirma será usado para marcar a fronte e as mãos dos sequazes do Anticristo. Entretanto, muitos padres da Igreja, teólogos, exegetas, e outros especialistas em Sagra Escritura trataram desse tema, lançando alguma luz sobre ele. Hoje, muitas pessoas julgam que esse sinal -- o famoso 666 -- será uma marca material posta na mão e na testa dos adoradores do Anticristo. Ora, muito mais provável é que este sinal indique que os adoradores do anticristo terão seu pensamento, suas idéias (fronte) e suas obras (mãos). Isto é, os adoradores do Anticristo serão conhecidos pelo fato de aceitarem sua doutrina e por praticarem as obras que ele recomendar.

A melhor explicação que já ouvi do número 666 - SEM PRETENDER QUE ESTA EXPLICAÇÃO SEJA A VERDADEIRA E A ÚNICA - é que o número seis simboliza a perfeição nas partes, porque ele é o primeiro número cujos componentes, quando somados ou multiplicados, dão 6 como resultado:

1 + 2 + 3 = 6

1 x 2 x 3 = 6

Por isso, Deus fez o mundo em seis dias, e ao fazer cada parte Ele a declarava boa. Por outro lado, o número 7 simboliza totalidade, perfeição em si. E o número 1 simboliza Deus. Logo, o número 6 + 1 = 7, isto é, a perfeição nas partes com Deus. Sendo assim, o número 6 pode ser obtido pela subtração do 7 - 1 = 6. O que significaria que a perfeição total menos Deus seria a falsidade completa. Logo, o número 666 significaria FALSO, FALSO, FALSO. A suprema falsidade, aquele que se põe como Cristo sem o ser: o Anticristo.(cf. f. 7 - a advogada omite a fonte)

A separação entre a Igreja e o Estado é princípio unânime no constitucionalismo ocidental marcantemente desde a Revolução Francesa. Entre nós brasileiros, a Constituição de 1824 ainda consagrava o imperador como chefe do catolicismo local, previsão legislativa que sabidamente levou à eclosão de cismas no clero brasileiro.

A Questão Maçônica encabeçada por Dom Vital em Pernambuco e Dom Macedo Costa no Grão-Pará é episódio envolvente à resistência do episcopado a aceitar a autoridade de Pedro I como representante do papado. O Brasil veio a conhecer a separação formal entre Igreja e Estado com a República. Com o Decreto 119-A, de 7/1/1890, o Governo Provisório consolidou a medida, mais tarde ampliada na Constituição de 1891, para afirmar os princípios básicos da liberdade religiosa.

O art. 19, nº I, da atual Constituição proíbe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estabeleçam cultos religiosos ou igrejas, embaracem-lhes o funcionamento ou com eles ou seus representantes mantenham relações de dependência ou aliança, salvo a colaboração de interesse público, assunto a ser disciplinado em lei. O constituinte quis vedar a vinculação entre Estado e religiões ou igrejas. José Afonso da Silva cita antigo julgado do Supremo Tribunal Federal que assegurou ao ex-bispo de Maura a constituição de uma igreja nacional, sob os mesmos ritos da católica, porém desvinculada de Roma (1).

A autora invoca a liberdade de crença; seus pais, a liberdade e responsabilidade primária pela formação religiosa de sua filha. Para eles, o Estado interfere em tais liberdades quando impõe à menor um número de CPF cujos algarismos coincidem em parte com uma seqüência em texto bíblico tida como anátema. Antes de ferir se há, em tal caso, gestão indevida dos negócios do Estado na liberdade de culto e na proteção familiar, valho-me de tradução atualizada da Edição Pastoral da Bíblia recomendada pelas autoridades católicas brasileiras a que se referem os pais da autora:

(...) Aqui é preciso entender: quem é esperto, calcule o número da Besta; é um número de homem; o número é seiscentos e sessenta e seis. (Ap. XIII, v. 18) (Ed. Paulinas, 1990, p. 1603-4)

Os tradutores Ivo Storniolo e Euclides Martins Balacin lançam em nota de rodapé sua exegese sobre o controvertido excerto:

O autor identifica a primeira Besta com o imperador romano da época. O número seiscentos e sessenta e seis, conforme o valor numérico das letras em hebraico, corresponde ao nome de César Nero. O imperador Domiciano é visto como a ressurreição de Nero e da sua crueldade. O número seiscentos e sessenta e seis, contudo, pode também significar o máximo de imperfeição, pois seis não atinge sete e é metade de doze. Indicaria, assim, a relatividade e fraqueza dos poderes totalitários. (ibidem, nota 18)

O versículo se insere em seção do texto que os tradutores rotularam de "a ideologia a serviço do poder". Por aí logo se vê quão salutar a conquista das revoluções liberais do século XVIII em manter o Estado afastado das questões religiosas. O absolutismo teocrático se contrapunha às idéias iluministas de que a Razão deve ser o primado da liberdade e da igualdade.

Era preciso afastar a idéia de que todo o Poder se justifica pela autoridade divina, seguindo-se daí que aos súditos restava a cega obediência ao monarca, que, sob a unção papal, era o representante de Deus aqui na Terra. Imagine-se, então, que este magistrado agora se ponha a questionar as metodologias e as conclusões de pelo menos três exegetas até aqui citados.

O juiz, autoridade pela qual fala o Estado, não está autorizado a emitir qualquer juízo sobre a interpretação que se dá ao trecho bíblico. Cabe-lhe, sim, tão-só ponderar se a atuação do Estado, neste caso, põe em risco a liberdade de crença e as convicções da menor autora e sua família. O Cadastro de Pessoas Físicas está recentemente normatizado na Instrução Normativa SRF-190, de 9/8/2002 (DOU-12/8/2002). O registro de menores de dezoito anos é admitido (art. 14, § 1º, I), e art. 16, III e § 2º).

É que estes podem estar obrigados, por exemplo, à apresentação de declaração de rendimentos, ser titulares de contas bancárias e participar de outras operações descritas no art. 2º daquela IN. Porque relativa ou absolutamente incapazes, podem praticar atos por seus assistentes ou representantes, respectivamente. O cadastramento de contribuintes, considerado como forma de alistamento de seus súditos, reflete a eminência do poder estatal na tarefa de executar a política de fiscalização e arrecadação de tributos.

É tradução de soberania, um dos fundamentos da República, e meio de alcance da construção de uma sociedade livre, justa e solidária e da garantia do desenvolvimento nacional, dois dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro (art. 1º, I, e art. 3º, I e II). Os pais da autora se dizem como ofendidos em sua liberdade de crença religiosa tão-só porque, em sua exegese pessoal, se vêem constrangidos porque o CPF da menor contém uma seqüência de algarismos execrados na revelação narrada pelo apóstolo João. A aritmética descrita na citação da petição inicial considera alternativamente as operações de adição e multiplicação para se chegar ao número seis. Também efetuei as mesmas operações em nomes, letras e números destes autos. Em pelo menos quatro oportunidades vejo que o algarismo seis está presente em série.

Primeira:

O termo de autuação de f. 2 contém os seguintes elementos: Proc. 2004.38.00.011819-4 - Classe 5209 - 16ª Vara Federal - Requerente: A. D. N. CPF: XXXXXXXXX-XX. O número de registro do processo pode ser assim decomposto:

2 + 0 + 0 + 4 = 6

3 x 8 = 24 = 2+4 = 6

0 + 0 + 0 + 1 + 1 + 8 + 1 + 9 + 4 = 24 = 2 + 4 = 6

Segunda:

O CPF do pai da autora também contém igual seqüência após o mesmo processo de fatoração:

3 + 8 + 3 + 1 = 15 = 1 + 5 = 6

4 + 3 + 2 + 0 + 6 = 15 = 1 + 5 = 6

6 x 8 = 48 = 4 x 8 = 32 = 3 x 2 = 6

Terceira:

A petição inicial está dividida em seis itens. O nome do pai da menor - A. D. N. - contém dezesseis letras, que, decompostas, resultam seis (1 x 6 = 6). Juntas, as letras do nome do pai e da mãe – M. L. C. N. - formam 36, que é o produto de seis multiplicado por seis.

A mesma petição data de 23 de setembro de 2002, o que nos mostra o seis pela quinta vez (2 x 3 = 6). A menor nasceu num dia 23. A cópia de seu cartão de CPF foi autenticada também num dia 23 (2 x 3 = 6). Por fim, a inscrição da advogada. O número 61904 contém a mesma seqüência de seis:

6 = 6

1 x 9 x (+ 0) x 4 = 36 = 6 x 6

A demonstração acima teve o singelo propósito de mostrar que se pode ver a seqüência de algarismos em qualquer lugar, desde que se esteja disposto a vê-la. Basta escolher a operação aritmética e sair contando letras e números em cada uma das páginas.

Por aí se conclui que não é o número em si que surge, mas o olhar de cada intérprete nos dados que quiser manipular. Este é o risco dos fundamentalismos.

O político e literato inglês Thomas B. Macauley, designado para servir no Conselho Supremo na Índia do século XIX, viajava por terra a caminho das montanhas de Ootacamund, onde o governador o esperava. Durante a viagem, um inglês de Misore o adverte que Napoleão Bonaparte era a Besta do Apocalipse porque, mudando uma letra ou outra, encontrara em seu nome a seqüência 666.

O recém-chegado Macauley discordou. Para ele, a Besta era na verdade a Câmara dos Comuns, pois seus 658 membros, mais seus principais funcionário, seu capelão e seu porteiro totalizavam exatamente o número 666. Ainda assim, o estranho insistia. Macauley reflete com tristeza: seu interlocutor deve ter convertido seu nome na língua tâmil e, após acrescer ou tirar alguma letra,"deve ter concluído que sou eu a Besta" (2).

O fundamentalismo religioso sempre esteve ligado a interpretações literais. Para ele, tudo no mundo pode ser explicado à uma simples leitura de texto tido como sagrado. É clara sua oposição ao pensamento secular pós-1789, para quem é inadmissível a religião imiscuir-se nas questões do Estado ocidental, que é tipicamente laico.

É neste ponto que penso que deva parar.

Embora reconheça resquícios da linguagem religiosa em numerosas atividades do Estado, vejo que o fenômeno está mais ligado à tradição ainda necessária para provar que a separação (ainda) é meramente formal. Todos reconhecemos, por ilustração, os símbolos religiosos nas leis, nos tribunais e nos julgamentos. O constituinte brasileiro registrou no preâmbulo da Carta de 1988 que seus trabalhos estavam "sob a proteção de Deus".

Nos Estados Unidos, talvez o Estado laico mais representativo do pensamento liberal pós-1789, a ninguém choca que uma testemunha num tribunal secular coloque as mãos sobre uma Bíblia antes de seu depoimento e invoque a divindade em ajuda a suas declarações.

Em contrapartida, um tribunal francês recentemente determinou que muçulmanas não poderiam ostentar o véu nas escolas públicas porque via intromissão da religião nos negócios do Estado. Tais fenômenos, reitero, confirmam muito mais o processo de contínua separação entre religião e Estado no Ocidente.

Concluo que o temor dos pais da autora não reflete matéria que sensibilize a intervenção do Estado-juiz. Convicções religiosas são matéria impermeáveis ao controle estatal porque traduzem essencialmente questão de cunho axiológico transcendentes ao mundo jurídico.

Suas preocupações são relevantes sob o ângulo da moralidade que a religião lhes dita, mas não a ponto de autorizar que o Estado avalie se são fundadas ou não. Admitindo-se, por absurdo, que o Estado se autorize a conferir a seus súditos uma seqüência de algarismos de acordo com as convicções religiosas individuais, por extensão se permitirá que o mesmo Estado, através de seus juízes, avalie outros valores religiosos para estabelecer distinções entre contribuintes.

Como exemplo, vejo a hipótese de estabelecer seqüência de números de acordo com o credo de cada contribuinte para evitar dubiedades ou má exegese: contribuintes seriam divididos entre cristãos e não-cristãos, com a impossibilidade de utilização de numerais que representem valores religiosos (trindade, unidade, perfeição, divindade).

O exame do pedido reflete, assim, tema juridicamente impossível – a análise de questão de fundo estritamente vinculada à convicção religiosa dos autores. Sobre o assunto, viu-se, é vedado ao Estado imiscuir-se.

3 – Dispositivo

Conclusivamente, INDEFIRO a petição inicial porque tenho como juridicamente impossível o pedido (art. 267, incisos I e VI, do Código de Processo Civil - CPC).

Sentença proferida sem julgamento de mérito e não sujeita a reexame necessário. Retificar o registro e distribuição para que conste como autora apenas a menor V. D. C. N., com a ressalva de que está representada por seus pais A. D. N. e M. L. C. N..

Aguardar eventual recurso voluntário da autora (15 dias). Se inerte, arquivar com baixa. Registrar, publicar e intimar.

Belo Horizonte (MG), 30 de março de 2004.

MARCELO DOLZANY DA COSTA

Juiz Federal da 16ª Vara - SJ/MG

Notas

(1) Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo : Malheiros, 15ª ed., 1998, p. 253, nota 51. Cf. a respectiva ementa: "Compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir a questão sobre as normas da confissão religiosa, que devem ser respeitadas por uma associação constituída para o culto." (RE-31179-DF, Hannemann Guimarães, dec. 8/4/58, RTJ-5-01/429).

(2) O episódio é descrito por Sérgio Paulo Rouanet em seu excelente Os Dez Amigos de Freud (São Paulo: Companhia das Letras, 2002, vol. 2, p. 18).


Luciana Nanci é repórter da revista Consultor Jurídico.


Revista Consultor Jurídico, 30 de março de 2004, 19h22

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