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quarta-feira, 13 de maio de 2020

Escravo depois da abolição


Viver como escravo depois da abolição: “Pra quem nasceu preto, a escravidão continuava sendo normal”
Na década de 30, quase meio século após a assinatura da Lei Áurea, Vicente da Silva viveu anos escravizado no interior de Minas. Aos 18, rompeu o ciclo e prosperou com a expansão da capital Belo Horizonte
Tomado como escravo ainda criança, Vicente cuidava de animais e plantações em fazenda mineira. FOTO E VÍDEO: DOUGLAS MAGNO




Belo Horizonte - 12 MAY 2020 - 23:13 BRT


Vicente José da Silva não sabia o que era relógio. Entretanto, quando o sol virava para o outro lado do riacho, sabia que estava na hora de apartar as vacas dos bezerros e selar o animal de seu senhor. Do entardecer ao luar, caminhava descalço por até quatro horas puxando o cavalo que o patrão montava pelas estradas. Por aproximadamente 10 anos, essa foi parte de sua rotina de escravatura em Capela Nova, interior de Minas Gerais, ainda que, naquela época, a abolição, assinada em 13 de maio de 1888, já estivesse prestes a completar meio século no Brasil. “Meus pais sabiam que eu era escravo, mas a gente não tinha escolha”, conta Vicente, hoje aos 92 anos, sobre o período de servidão.

Nascido em 26 de julho de 1927, ele cresceu em casa de pau a pique erguida num pedaço de chão chamado Fartura. A realidade da família de oito rebentos, porém, era de fome e miséria. Os pais viviam e plantavam nas terras de um latifundiário conhecido como Capitão Justo. Em troca, eram obrigados a entregar metade da lavoura ao dono, além de ceder a força de trabalho dos filhos, muitos deles, como Vicente, que ainda eram criança.

Justo ostentava a patente de capitão, mas que foi comprada tal qual um título de nobreza. Quando o Capitão morreu, Jaci, um de seus herdeiros, tomou Vicente como seu criado na fazenda quando ele tinha apenas oito anos. “Pra quem nasceu preto, tipo eu, a escravidão continuava sendo normal. O patrão me levou pra lá e virei escravo dele, meio despistado, porque meus pais tinham medo de ser mandados embora da terra e a gente não ter mais o que comer.”


Vicente começou bem cedo a se encarregar do serviço braçal e aprendeu a fazer queijos. “Tirava leite das vacas todo dia e ficava com dois litros pra mim. Eu era escravo, mas não era bobo”, brinca. À medida que foi crescendo, desenvolveu artimanhas para ganhar uns trocados com sobras da fazenda e da partilha que sua família fornecia ao senhor. Na sede da propriedade, que preservava um tronco dos tempos de escravidão oficial, ele e outros empregados negros não podiam entrar pela porta da frente da casa. “Chamavam os negros de crioulo ou macaco”, lembra Vicente, que dormia no porão anexo ao estábulo, abrigado entre os arreios dos cavalos. “A gente tinha que passar pela cozinha pra pegar a gamela de comida.”

A refeição do dia servida na fazenda se resumia a um prato de mingau de couve ou canjiquinha. Vicente só comia carne quando algum boi morria por suspeita de contaminação. Repartia os restos com os empregados depois de tirar o couro do animal e entregar ao patrão. Certo dia, já adolescente, se desentendeu com o filho de Jaci, que tinha sua idade. Pressentiu que levaria uma surra dos senhores ao ver o garoto adentrar a sala para dedurá-lo. “Ô, pai, esse crioulo seu é valente”, ouviu do lado de fora da janela. O capataz ordenou, então, que Vicente fosse para os fundos da casa.

Precavido contra castigos, o jovem escravizado tinha comprado uma garrucha assim que conseguira juntar oito mil réis. Enquanto caminhava em direção ao terreiro, maquinou, com a arma na cintura, como daria um tiro na cabeça do patrão e outros dois na barriga do filho. “Queriam me meter o couro, mas antes ia mostrar o que acontece com quem ameaça um negro invocado”, diz Vicente, que foi obrigado a mudar de planos quando deu de cara com a viúva do Capitão Justo na porta da cozinha. “Ela me convidou pra entrar, me tratou bem e me serviu a janta. Como é que eu mato alguém depois disso?”.
Vicente passou quase uma década sob regime de servidão.DOUGLAS MAGNO

A convivência com a matriarca da fazenda o livrou do açoite e também o ajudou a entender a profusão do racismo depois da Lei Áurea, firmada pela Princesa Isabel no século XIX. Em noite fria à beira do fogão a lenha, deixou escapar uma pergunta indiscreta à viúva, que havia se casado novamente. “Se a senhora fosse mais nova, namoraria um crioulo como eu?”. Ela pensou por alguns instantes e devolveu sem pestanejar: “Podia até namorar, mas tinha que ser escondido, porque preto é pobre. Por isso que branco não gosta de preto.” Vicente percebeu que, para escapar da escravidão e não entrar para o rol dos escravos libertos, porém marginalizados, precisaria tanto de instrução quanto de dinheiro.

Com o fim da Primeira República e o início da Era Vargas, o ensino básico obrigatório passou a contemplar negros e pobres no país. Juntamente com o irmão mais velho, que serviu o Exército, Vicente encabeçou a primeira geração da família a frequentar a escola, mas apenas por três anos. O suficiente para aprender a ler e escrever. Aos 18 anos, vislumbrou a chance de romper o ciclo de escravidão a partir da crise que atingiu boa parte das fazendas de feijão e milho na região. Plantou sozinho em um pedaço de terra vizinho ao latifúndio e vendeu a colheita a seu próprio senhor por 50 mil réis. “Só pensava em ir pra bem longe”, recorda. O único pagamento que recebeu depois de uma década de serviços prestados equivaleu a sua carta de alforria.
De escravizado a proprietário

Como já não tinha tantas atribuições na lida da fazenda, Vicente usou o dinheiro para arriscar a independência. Trabalhou por dois anos em lavouras de batata de Ouro Branco, a 70 quilômetros de Capela Nova. Torrou todas as economias bancando uma passagem de trem para Belo Horizonte, onde foi morar com a irmã. De tão acostumado a trabalhar de graça, se ofereceu como servente de pedreiro a um conhecido, disposto a não receber até dominar a profissão. Arrumou bicos dos mais diversos e foi pegando jeito na nova atividade. Depois de ajudar a instalar redes de saneamento no centro da capital mineira, Vicente viu a vida na cidade grande prosperar quando entrou para o ramo da construção civil. Aos 21 anos, adquiriu o primeiro par de sapatos e, mais adiante, viria o primeiro casamento.

No entanto, um acidente de trabalho por pouco não o deixou paraplégico. Vicente despencou do andaime do sexto andar na obra de um prédio. A queda lhe rendeu uma fratura na coluna e a perda de movimentos do cotovelo esquerdo. “Fiquei 53 dias no hospital, num morre-não-morre. Escapei, mas até hoje não me recuperei”, conta. Ainda viveria outra tragédia, dessa vez familiar: a morte da mulher por complicações de um aborto espontâneo. Com dois filhos para sustentar, precisou retornar ao batente apesar das limitações físicas. Comprou um terreno nos primórdios do bairro Santa Mônica, zona norte de BH, e construiu sua primeira casa própria. Entrou para a igreja, livrou-se do vício em cachaça e casou-se pela segunda vez com Hilda. Tiveram mais cinco filhos.

Atualmente Vicente abriga familiares e vive da renda de aluguel dos imóveis que construiu na periferia. Se orgulha de ter proporcionado oportunidades de estudo aos filhos. O mais velho, Antonio José da Silva, 58, formou-se em pedagogia, praticamente ao mesmo tempo que a filha Jéssica, 24, engenheira de produção. Foi a neta quem contou a história de Vicente em uma thread que viralizou no Twitter. Ao saber do pai sobre o passado de servidão do avô, ela se emocionou pela descoberta do grau de parentesco tão estreito com um negro escravizado vivo. “A escravidão está mais próxima de mim do que eu poderia imaginar”, diz Jéssica. “Esse tipo de superação, da família preta que venceu e está vencendo cada dia mais, é o que dói na Casa-grande.”
Antonio, Vicente e Jéssica, três gerações da família Silva.ARQUIVO PESSOAL

Por causa da corrida pelo ouro e, em seguida, das plantações de café, Minas Gerais chegou a ter a maior população de escravos do país. Desde 2013, o Estado lidera o ranking anual de vítimas resgatadas em condições análogas à escravidão. Em novembro, por exemplo, uma batida do Governo Federal encontrou 13 trabalhadores explorados em carvoarias do Alto Paranaíba. Em janeiro, completaram-se 16 anos da Chacina de Unaí, em que três auditores-fiscais e um motorista foram assassinados durante investigações em fazendas no noroeste mineiro. Embora condenados em segunda instância, os mandantes do crime permanecem em liberdade enquanto aguardam análise de recursos na Justiça.

Debilitado pelas sequelas do acidente na coluna, Vicente nega guardar mágoas de quem o escravizou e só se ressente pela incapacidade de andar. “Estou velho e cansado, sem poder sair de casa, mas não tenho raiva de ninguém”, afirma, deslizando a mão sobre a pele lisa que o faz parecer bem mais jovem. O pedreiro aposentado nunca voltou a Capela Nova, em que pese o desejo de reencontrar seus antigos senhores para gabar-se da fartura que esbanja em sua casa. “Se não tivessem morrido, ia colocar aqueles malvados na minha mesa, servir do bom e do melhor. Queria mostrar pra eles como se faz as coisas direito. Que agora o preto ficou rico.”

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