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Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

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segunda-feira, 11 de maio de 2020

UM TRECHO DO "DECAMERON", DE BOCCACCIO

(...) Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter. 
Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. E podiam assim agir estouvadamente porque os outros, como se já não precisassem viver, tinham abandonado suas coisas e a si mesmos; de modo que as casas, em sua maioria, tinham se tornado comuns e eram usadas pelos estranhos que porventura chegassem, tal como teriam sido usadas por seus próprios donos; e, apesar desse comportamento animalesco, fugiam dos doentes sempre que podiam. 
E, em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse. 
Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios. 
Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; e, convencidos disso, não se preocupando com nada a não ser consigo, vários homens e mulheres abandonaram sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias, como se com aquela peste a ira de Deus não tencionasse punir as iniquidades dos homens onde quer que eles estivessem, mas só afligisse aqueles que ficassem dentro dos muros de sua cidade, ou como se achassem que ninguém deveria ficar nela, chegada que era a sua hora derradeira. 
E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. 
E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. 
Por todas essas coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos, se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para velar a sua morte; 
(...) 
Era uso (tal como ainda hoje se vê) as parentes e vizinhas do morto se reunirem em casa deste para chorar com as mulheres que lhe fossem mais chegadas; por outro lado, em frente à casa do morto, os vizinhos e muitos outros cidadãos reuniam-se com seus parentes, e o clero comparecia em conformidade com a posição social do morto; e, sobre os ombros de seus pares, com pompa fúnebre, círios e cantos, este era levado à igreja escolhida por ele mesmo antes da morte. 
Essas coisas, depois do aumento da ferocidade da peste, acabaram-se de todo ou na maior parte, surgindo outras em seu lugar. Por isso, não só as pessoas morriam sem muitas mulheres ao redor, como também havia muitos que saíam desta vida sem testemunho de ninguém; e a pouquíssimos foram concedidos o pranto piedoso e as lágrimas amargas dos cônjuges; em vez disso, na maioria dos casos era costume rir, gracejar e festejar entre amigos; e as mulheres, abandonando em grande parte a piedade feminina, aprenderam muitíssimo bem esses usos em nome de sua própria saúde. 
E eram raros aqueles cujos corpos fossem acompanhados à igreja por mais de dez ou doze vizinhos; seu ataúde não era levado sobre os ombros de honrados e prezados cidadãos, mas alçado aos ombros de uma espécie de sepultureiros surgidos na arraia miúda, que eram chamados coveiros e prestavam serviços mediante pagamento; estes, com passos apressados, na maioria das vezes não o levavam à igreja escolhida antes da morte, e sim à mais próxima, atrás de quatro ou seis clérigos com pouco lume, e em certas ocasiões até sem nenhum; e estes, com a ajuda dos referidos coveiros, sem se afadigarem em ofícios longos ou solenes, metiam o corpo na primeira sepultura que encontrassem vaga. 
Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte. 
Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respectivas casas e os punham diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). 
Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante. 
E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. 
E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto, que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. 
Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora (principalmente se se quisesse dar a cada um seu lugar próprio, segundo o antigo costume), abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda. 
E, deixando de lado todas as particularidades das passadas misérias sofridas pela cidade, direi que aqueles tempos tão adversos que a devastavam nem por isso pouparam os campos circundantes, onde (sem mencionarmos os castelos, que eram cidades em miniatura), nas aldeias esparsas e nas plantações, os lavradores miseráveis e pobres e suas famílias, sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, morriam nas ruas, nas lavouras e nas casas, de dia e de noite, indiferentemente, não como homens, mas quase como animais. 
Em vista disso, tornando-se dissolutos como os citadinos em seus costumes, eles não cuidavam de suas coisas nem de seus afazeres; ao contrário, como se esperassem a chegada da morte para aquele mesmo dia, não se preocupavam com os futuros frutos da criação, das terras e do trabalho já realizado, e esforçavam-se com todo o empenho em consumir tudo o que tivessem no presente. 
Com isso, bois, asnos, ovelhas, cabras, porcos, frangos e até os fidelíssimos cães, expulsos de suas próprias casas, saíam andando a esmo pelos campos (onde a messe ainda estava abandonada, sem ser ceifada, para não dizer colhida). E muitos, como se fossem racionais, depois de terem se apascentado bem durante o dia, voltavam saciados à noite para casa, sem serem tangidos por pastores. 
Que mais se pode dizer (deixando os campos e voltando à cidade), senão que foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho (por força da doença pestífera e porque muitos doentes foram mal atendidos ou abandonados em suas necessidades, devido ao medo que os sãos sentiam) mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? 
Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados!
(...) 

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