EFEITOS DA POLITIZAÇÃO
"Atual Suprema Corte dos EUA é mais prejudicial do que nunca ao país"
18 de agosto de 2022, 9h40
Atualmente, a Suprema Corte dos EUA é a mais perigosa e prejudicial ao país do que em qualquer outro tempo, desde Dred Scott — a corte que, em 1857, negou cidadania e direitos dos cidadãos a descendentes de africanos, fossem escravos ou não. A atual Suprema Corte está levando o país de volta a tempos terríveis.
A opinião é de uma das maiores autoridades em Direito Constitucional dos EUA, Laurence Tribe, 80, professor emérito da Universidade de Harvard, onde teve estudantes como o ex-presidente Barack Obama, os ministros John Roberts e Elena Kagan, o procurador-geral dos EUA Merrick Garland e diversas outras celebridades jurídicas e políticas. Integrou também a Comissão de Reforma da Suprema Corte, criada pelo presidente Joe Biden.
Tribe analisou o que considera uma "crise" que a Suprema Corte está vivendo em entrevista à Washington Post Magazine.
Para ele, uma das principais razões por que a corte chegou a esse ponto é a de que cinco dos seis ministros conservadores — Thomas Clarence, Samuel Alito, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Barett [John Roberts à parte] — seguem uma orientação política de extrema direita e se sustentam no fato de que têm votos suficientes para aprovar o que quiserem, sem necessidade de uma sustentação jurídica convincente.
Atualmente, a Suprema Corte é chamada de a "corte de Roberts", porque os americanos costumam se referir a cada período como a corte do presidente que está no comando. Mas, para Tribe, essa é, na verdade, a "corte de Thomas", porque ele lidera o grupo dos cinco e é quem está efetivamente no comando da corte.
Ele acredita que a corte chegou a essa situação de desequilíbrio por uma sequência de fatos favoráveis aos republicanos: o ex-ministro Thurgood Marshall se aposentou antes do tempo e Clarence Thomas foi nomeado em seu lugar; Ruth Ginsburg não quis se aposentar, morreu e deu lugar a Amy Barrett; Antonin Scalia morreu, Obama indicou Merrich Garland para substitui-lo, mas os republicanos no Senado se recusaram a sabatiná-lo, de forma que Neil Gorsuch acabou ocupando o cargo.
Thomas já deixou claro em suas decisões que a corte poderá restringir, depois de ter acabado com o direito ao aborto, proteções ao controle da natalidade, o uso de contraceptivos, o sexo que não seja para fins de procriação e o casamento gay, com base no significado original da Constituição. Não mencionou a proibição ao casamento interracial, que existia naquele tempo, porque ele mesmo está em um, disse Tribe.
Politização e imparcialidade
A corte sempre foi mais ou menos politizada, segundo Tribe. "Não espero que alguém chegue a um tribunal federal com uma tábula rasa — sem ideias ou preferências preconcebidas — ou uma mente aberta e um coração vazio, porque todo mundo viveu suas próprias experiências e tem suas próprias ideias. Mas, pelo menos, deve ter uma mente um tanto aberta. Mas esse não é o caso de muitos ministros: eles sabem exatamente que posições vão tomar [antes que um caso seja julgado]", diz Tribe.
"A Suprema Corte, no maior tempo de sua história, viveu sob o domínio de grupos economicamente e politicamente poderosos. Assim, não tenho qualquer ilusão de que a corte tenha, alguma vez, sido realmente neutra, nem que possa definir um ponto de neutralidade. A ideia de que juízes podem ser apolíticos não faz sentido. Mas, pelo menos, podem ser justos, podem ouvir e não ter pontos de vista predeterminados ou você poderá ter algoritmos substituindo um grupo de humanos", ele diz.
Precedentes e independência do judiciário
Perguntado sobre a revogação de precedentes, como o que legalizou o aborto em todo o país (Roe v. Wade), Tribe disse que, obviamente, precedentes no universo constitucional não são sacrossantos. Decisões terríveis, como em Plessy v. Ferguson [em que a corte decidiu que leis de segregação racial não violavam a Constituição], devem ser revogadas.
No entanto, essa é a primeira vez na história que a corte acaba com um direito individual, que era considerado fundamental para as pessoas decidirem sobre a própria vida. "A mulher foi relegada à condição de procriadora e forçada a um trabalho de parto como uma forma de servidão involuntária", ele diz.
Segundo Tribe, a corte chegou a um ponto em que pode anular o que a maioria quiser, simplesmente porque tem os votos para fazê-lo. E se pode revogar o que quiser, precedentes não significam coisa alguma. E se precedentes não têm valor, não há mais uma diferença significativa entre o Judiciário e os poderes políticos. Decide-se pelos votos apenas.
"Quando esse é o caso, a independência do Judiciário é uma ilusão. E quando é apenas uma ilusão, não temos mais o terceiro poder, que serve de proteção à sociedade. E quando não temos mais essa proteção, caímos no fascismo ou na anarquia. Essa é uma trajetória que precisamos desesperadamente evitar."
Tirania da minoria
Perguntado se a atual composição da corte não é resultado da vontade do povo, Tribe disse que não. A grande maioria dos americanos era favorável à legalização do aborto, garantida por Roe v. Wade, como era favorável ao controle de armas, que a corte anulou.
"Também é preciso considerar que muitos dos juízes federais foram nomeados por presidentes que perderam o voto popular, por um número muito grande de votos, mas foram eleitos pelo Colégio Eleitoral. E os senadores que confirmaram a indicação desses ministros representam, coletivamente, uma minoria distinta do eleitorado americano."
"Assim, isso não é a vontade da maioria dos eleitores, nem a função tradicional e ideal da corte de impedir a tirania majoritária. A corte não está impedindo a tirania. Está instalando a tirania da minoria."
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2022, 9h40
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