3 de agosto de 2022, 21h38
No dia 3 de agosto de 1988, a jovem democracia brasileira deu mais um passo na direção da liberdade e da igualdade. O Congresso Constituinte aprovou destaques a 27 itens do artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos. Foram vetadas, na forma da lei, a tortura e a censura. Foi aprovada a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza aos brasileiros e estrangeiros, e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade.
Número de casos de tortura de presos cresceu bastante nos últimos anos
No entanto, passados 34 anos de tão importante conquista, a situação vivida pelos brasileiros no dia a dia não condiz com o que assegura a lei máxima nacional.
De 2019 até julho de 2022, portanto na gestão de Jair Bolsonaro, os relatos de tortura de presos feitos a juízes mais do que dobraram, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). São pelo menos 44,2 mil denúncias sobre tortura e maus tratos feitas a magistrados durante audiências de custódia, incluindo os meses da epidemia da Covid-19.
Nos três anos anteriores — entre 2016 e 2018, nas gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer —, foram registrados 20,9 mil casos de denúncias de tortura e abuso no momento da detenção. Esses casos estão registrados no CNJ como tortura e/ou maus tratos.
A tortura no Brasil
Ano Número de casos 2016 4,3 mil
2017 8,4 mil
2018 8,2 mil
2019 13,9 mil
2020 6,6 mil
2021 12,4 mil
2022* 11,2 mil
Fonte: CNJ * De janeiro a julho de 2022
De acordo com Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJ-SP, colunista da ConJur e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), esses direitos são frequentemente violados pelo próprio Estado.
"Infelizmente a violação desses direitos são frequentes. Basta lembrar o que disse o atual presidente do Brasil, que louva a tortura, que campeia nas prisões e fora delas. Algumas vezes a olhos vistos, mas nem sempre".
Para Kenarik, um passado não resolvido, com muitos pontos ainda a serem esclarecidos, leva ao desrespeito. "Em 1988, o país fez a opção pelo Estado democrático de Direito, que abraça os direitos fundamentais como sua coluna vertebral. Penso que é herança do passado de escravidão, do qual ainda não conseguimos nos libertar", diz a desembargadora aposentada, afirmando que "a tortura não acabou com o fim da ditadura civil militar".
Utopia brasileira
O advogado, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos Ariel de Castro Alves classifica como utopia o fim da tortura no Brasil. Ele destaca a constante violação dos direitos humanos garantidos pela Constituição Federal, decorrente da impunidade dos perpetradores desses crimes de tortura.
"A Constituição de 1988 aboliu a prática de tortura e as condições cruéis, desumanas e degradantes. Porém, na prática, a erradicação da tortura e, ainda mais, das condições cruéis, desumanas e degradantes é utopia no Brasil. O fim dessas práticas está cada dia mais distante nos tempos atuais, já que temos um presidente que incita e faz apologia da tortura e de torturadores".
Neves concorda com Kenarik ao apontar que a tortura no Brasil "é herança maldita da escravidão e da ditadura militar. Continua sendo praticada sistematicamente como resultado da impunidade dos torturadores do passado e do presente".
A tortura é praticada hoje, "em larga escala", nas abordagens policiais contra jovens, negros e pobres, segundo o presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. Contudo, ele diz que os casos dentro das delegacias diminuíram. "Hoje nas delegacias são mais comuns as extorsões do que as torturas. Porém, as pessoas são torturadas antes de chegarem às delegacias, nas abordagens dos policiais militares".
O advogado denuncia ainda que quando esses maus tratos são denunciados, as vítimas "sofrem com o desdém de muitos juízes e promotores, que tratam como se fosse um artifício de defesa dos suspeitos de crimes". Ele também aponta a conivência e omissão social e institucional com as torturas no Brasil.
O aumento do número de registros de tortura durante a gestão de Jair Bolsonaro na Presidência da República é decorrente de narrativas e ações do político, o que está levando o país para longe das garantias sociais estabelecidas no pacto social criado na Constituição Federal de 1988, de acordo com o criminalista e pesquisador Fernando Augusto Fernandes.
"A Constituição de 88 é carta fundante da democracia brasileira, nascida em momento de um pacto social que direciona o fim do regime de exceção. Momento lindo de união nacional de todos os brasileiros, trabalhadores, indígenas, empresários e políticos. E esse pacto ficou sob risco a partir do momento que um presidente que fez homenagens a um torturador foi eleito", alega Fernandes.
"Trinta e quatro anos se passaram e os crimes de tortura, tratamento cruel e degradante, seja nos cárceres ou nas investigações policiais, continuam com dados alarmantes e crescentes. A censura aos meios de comunicação persiste, agora sob outras formas, especialmente a economica, mediante o corte de financiamento e apoio aos que tentam criticar governantes", afirma Ivete Caribé da Rocha, do Comitê da Memória, Verdade e Justiça do Paraná.
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