Paulo Moreira Leite
Desde janeiro de 2013, é diretor da ISTOÉ em Brasília. Dirigiu a Época e foi redator chefe da VEJA, correspondente em Paris e em Washington. É autor dos livros A Mulher que era o General da Casa e O Outro Lado do Mensalão.
Em crise prolongada desde 2010, quando a recusa de criar estímulos ao crescimento jogou o Velho Mundo em recessão - quebrando os elos mais fracos, como Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha -, a Europa acaba de anunciar duas notícias.
A primeira, é que o desemprego subiu mais um pouco. A média, agora, é de 12,2%, contra 12,1% apenas um mês antes. Entre os jovens, o desemprego passou de 50% na Espanha e de 60% na Grécia.
A segunda notícia é que nada vai ser feito para diminuir o desemprego e enfrentar a recessão. A alegação é que a inflação na zona do euro subiu de 1,2% para 1,4%.
Em seu abismo, desnecessário, a Europa dá uma nova demonstração de que não há limite para a crueldade política e que a expressão “fundo do poço” é uma imagem retórica – na vida real, não há fronteira para a decadência econômica nem para o retrocesso social. É sempre possível piorar um pouco mais e até muito mais.
O limite é definido, na prática, pela capacidade de resistência dos trabalhadores e das camadas empobrecidas da sociedade e pela competência de seus líderes para impor um outro ponto de vista.
Nenhum governo europeu resistiu ao teste das urnas até agora. Todos foram derrubados pelo eleitorado. Mas nenhum governo novo teve forças – alguns nem sequer tentaram ampliar a musculatura – para realizar mudanças que a população esperava. A maioria abandonou qualquer compromisso assim que os votos foram contados.
Seu desgaste foi tão simples e rápido como a derrota de seus adversários.
Mesmo os anti-políticos italianos, que despertaram tanta sociologia interesseira ao impedir a vitória da centro-esquerda, já enfrentam sinais de velhice precoce.
O saldo é que a Europa assiste hoje à emergência – previsível – de movimentos fascistas.
Esta é uma lição que o Velho Continente, outrora tão rico e civilizado, utopia de tantos estudiosos e viajantes de tantas ideologias, tem a oferecer ao mundo.
Acredite: o Banco Central Europeu continua evitando qualquer medida efetiva de estimulo à economia – nem as soluções moderadas e nem sempre coerentes de Barack Obama – que poderiam dar um alívio, temporário, parcial, a uma situação de tragédia.
Nem a Alemanha, que já foi vista como a fortaleza do pensamento conservador, consegue ficar longe da tormenta. Todos os dados econômicos estão em queda, o que ajuda a explicar o crescimento de protestos até mesmo naquele país.
O atual retrocesso europeu é muito mais grave e preocupante do que se poderia pensar. O Velho Mundo já passou por outras experiências recessivas. Mas elas tiveram curta duração e permitiram retomadas, ainda que temporárias. Agora não. O desmanche econômico virou um programa, uma meta. Ninguém ousa dizer quando poderá terminar.
Isso porque ninguém ousa imaginar como estará a civilização europeia quando isso acontecer.
A destruição de riquezas e o empobrecimento da população cumprem a finalidade de realizar, pelo desemprego, pela falta de futuro, aquilo que outros projetos conservadores não foram capazes de conduzir: a destruição do Estado de Bem-Estar Social, a mais civilizada experiência que o capitalismo se permitiu em séculos de história.
Este é o processo.
A reorganização conservadora foi produzida por economistas instalados no comando do Banco Central Europeu.
Teve início fora da Eurozona, a partir da vitória de James Cameron nas eleições britânicas, que inaugurou um programa de cortes de estímulos e de políticas sociais que os trabalhistas haviam colocado de pé.
A partir de 2011, o Banco Central Europeu começou a elevar as taxas de juros, levando os estados mais pobres à falência. Num esforço que só contribuiu para esconder as responsabilidades reais, os pobres passaram a ser responsabilizados pela própria pobreza, esperteza ideológica que deixou de fazer sentido depois que a crise saiu da Grécia e de Portugal para se instalar na França, na Itália e na Holanda.
(Fora da Eurozona, nem a Suécia escapou, como se sabe. Seriam preguiçosos nossos calvinistas nórdicos?)
Qual foi o slogan dessa mudança de curso? Paul Krugman recorda: a obsessão com a austeridade, aplicada a ferro e fogo ainda que a “economia da Eurozona se encontrasse em estado de profunda depressão e sem nenhuma ameaça inflacionária convincente”.
Outros economistas, como Martin Wolf, principal analista do Financial Times, têm uma visão crítica semelhante. Em determinado momento da crise, a Economist também assumiu um ponto de vista parecida.
Este é o ponto.
No comando da austeridade europeia, em 2010, os dirigentes do BCE, com seu presidente Jean-Claude Trichet à frente, diziam que uma ameaça de depressão econômica era desprezível e o perigo a se evitar era a ameaça de um surto inflacionário.
O risco, dizia Trichet, situava-se na faixa de uma inflação de 2%, lembra Krguman, na página 201 do livro “!Acabemos ya com esta crisis!”
Exemplo de crueldade: após cinco anos de genocídio econômico, as políticas de estimulo não podem ser aplicadas porque a inflação segue no horizonte – numa taxa de 1,4%.
Essa situação demonstra que a austeridade não é uma opção conjuntural, um conjunto de medidas que podem ser tomadas em qualquer lugar, conforme a conjuntura.
É um projeto de longo curso, que se tornou possível a partir da União Europeia, governo que tem a palavra final sobre a economia, por cima de qualquer estado nacional, permitindo que a primeira ministra alemã, Angela Merkel, imponha uma política por cima da vontade dos eleitores vizinhos.
Muitas pessoas imaginam que foi a hiperinflação que levou Adolf Hitler ao governo. Esta é a história que Ingmar Bergman contou no Ovo da Serpente, um belo exercício de cinema – como esquecer a imagem de cidadãos desolados carregando dinheiro em carrinhos? --, mas uma aula menos competente de economia política.
A hiperinflação explodia no início dos anos 1920, quando o nazismo era pouco mais do que um movimento exótico nas cervejarias de Munique. Hitler chegou ao poder uma década depois. Neste período, ocorreu a crise de 1929, aquela que todos dizem que foi a única maior que a de 2008.
Antes e depois, os partidos políticos alemães tiveram várias oportunidades para mudar o curso da economia e oferecer saídas para a situação. Nenhum teve luzes – outros não tiveram força política – para oferecer a saída necessária.
Sendo bastante esquemático, mas nem por isso falso. A falta de respostas adequadas ao emprego e ao colapso do crescimento criou um ambiente social desesperado e insuportável, que permitiu o nazismo.
Nos Estados Unidos, evitou-se o pior graças ao New Deal de Franklin Roosevelt, um programa de investimentos e estímulos continuados que se prolongou por mais de uma década.
Uma interrupção desastrada ocorrida em 1937, quando os conservadores convenceram Roosevelt de que a inflação tornara-se um risco, quase pôs tudo a perder. Diziam que a crise de 1929 fora superada e que era possível interromper as políticas de estimulo ao crescimento.
A austeridade voltou, a economia desabou e só foi se recuperar em plena Segunda Guerra Mundial.
Este é o ponto.
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