30 de Abril de 2020, 11h32
DOIS EX-COMANDANTES da Rota, a violenta tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, foram alçados pelo ministro Ricardo Salles para o comando da fiscalização ambiental doIbama. As nomeações atropelam a promessa de Jair Bolsonaro de montar o governo com “critérios técnicos” – a essa altura, algo em que só os apoiadores fanáticos acreditam – e foram vistas por servidores do Ibama como uma retaliação por operações recentes contra crimes ambientais na Amazônia.
Hoje, Salles exonerou o coordenador-geral de Fiscalização, um analista ambiental que está no Ibama há 15 anos, e nomeou para seu lugar um ex-PM, Walter Mendes Magalhães Junior.
A única experiência prévia de Magalhães Junior na área ambiental é ter comandado por sete meses a superintendência do próprio Ibama no Pará. Lá, autorizou exportações de madeira sem a licença emitida pelo órgão que comandava. A nomeação de uma figura como ele para um posto até então tocado por um servidor de carreira especializado na função é emblemática do que o governo Jair Bolsonaro quer para a Amazônia.
Um currículo melhor, aos olhos do governo, que o de Renê Luiz de Oliveira, a quem o PM substitui. Médico veterinário de formação, Oliveira está no Ibama desde 2005. Ele havia completado três anos na coordenação de Fiscalização no último dia 27. Antes, chefiara a superintendência do órgão em Rondônia. Em ofício enviado à presidência do instituto contra a substituição, 16 técnicos defenderam o trabalho de Oliveira à frente do setor. O presidente, o advogado Eduardo Bim, outro homem de confiança de Salles, fez que não viu.
O coordenador de Operações de Fiscalização – cargo imediatamente abaixo ao de Oliveira – Hugo Ferreira Netto Loss também foi exonerado hoje. Igualmente servidor de carreira, ele manifestou oficialmente o desejo de permanecer desenvolvendo “trabalhos ligados à fiscalização, conduzindo processo de investigação de crimes ambientais”.
O pedido foi negado pelo novo diretor de Proteção Ambiental, um coronel da reserva da PM de São Paulo chamado Olímpio Ferreira Magalhães. Ele foi alçado ao cargo no último dia 14, dias após uma ação de combate a desmatamento e garimpo ilegal em terras indígenas no Pará. Salles demitiu o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, o ex-tenente coronel Olivaldi Azevedo, e o substituiu por Olímpio Ferreira Magalhães, um coronel da reserva. Ambos fizeram carreira na PM paulista.
A nomeação de Olímpio Magalhães é investigada pelo Ministério Público Federal por suspeita de desvio de finalidade, mas nem isso impediu o ministro de fazer nova mudança e promover Magalhães Junior, conforme publicado na edição de hoje do Diário Oficial. Tampouco constrangeu o novo diretor a manter Loss na área de fiscalização. Laconicamente, o ex-PM negou o pedido o colocou “à disposição para fins de movimentação conforme critério e necessidades na gestão de pessoal”, numa aparente retaliação ao trabalho desenvolvido no sul do Pará.
Com as novas mudanças, Salles consolida um movimento que começou em janeiro de 2019, início do governo Bolsonaro. Lentamente, o ministro tem tirado servidores de carreira de posições de comando e instalado sua tropa de choque no lugar deles. Mais de 20 ex-PMs já foram nomeados.
Além do poder crescente sobre o Ibama, eles chefiam uma secretaria do ministério e controlam toda a diretoria doICMBio, órgão que faz a proteção das unidades de conservação federais brasileiras.
Sob Salles e seus PMs, caíram operações, multas e a destruição de equipamentos usados em crimes ambientais. O resultado: a devastação da Amazônia disparou. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, no primeiro trimestre de 2020 os alertas de desmatamento na região bateram o recorde histórico.
Em vez de técnicos, a turma do ‘circulando’
Assim como vários ex-policiais contratados pelo ministro, Olímpio Magalhães e Magalhães Junior construíram suas carreiras em batalhões de policiamento ostensivo e de repressão. O primeiro comandou uma tropa de elite que atuava na Baixada Santista e unidades como o Batalhão de Choque e o Comando de Operações Especiais. Já Walter foi comandante de pelotão na Rota e também esteve à frente do Batalhão de Choque.
O primeiro contato de ambos com a área ambiental foi em setembro passado, quando foram nomeados para as superintendências do Ibama no Amazonas e no Pará. No Amazonas, Olímpio Magalhães foi personagem de um episódio que demonstra como os policiais militares levam o corporativismo dos tempos da farda para o governo.
Em novembro passado, dois meses após assumir o cargo no Amazonas, o coronel pediu porte funcional de arma, sem esclarecer qual era a necessidade. De acordo com a legislação, inclusive um decreto do próprio governo Bolsonaro, apenas fiscais do Ibama, que atuam em campo, têm direito ao porte de arma na instituição. Isso foi apontado por técnicos do órgão em dois pareceres: do coordenador de logística e do coordenador-geral de fiscalização.
Magalhães, no entanto, recebeu uma forcinha de Olivaldi Azevedo, ex-colega na PM paulista e chefe dos servidores que deram os pareceres contrários. Em fevereiro deste ano, o então diretor emitiu um despacho opinando que Magalhães tem, sim, direito a portar arma no cargo.
O pedido do coronel pode resultar na liberação para todos os servidores em situação semelhante. O caso está sob análise da Advocacia-geral da União, mas Olivaldi adiantou-se e já concedeu o porte funcional a Magalhães enquanto se espera pela avaliação jurídica.
Ironicamente, é para o lugar de Azevedo que o ministro promoveu Olímpio Magalhães.
No Pará, Walter Magalhães foi responsável por um afrouxamento de regras que revelamos em fevereiro. Por meio de despachos não previstos em lei, ele atuou para liberar, retroativamente, cargas de madeira que haviam sido exportadas sem autorização do Ibama.
Loteamento de órgãos ambientais entre ex-PMs busca tornar a área obediente às vontades de Bolsonaro e Salles.
Ao assumir a superintendência, o policial chegou a morar por alguns dias na sede do órgão em Belém. Em pouco tempo, ganhou fama de truculento pelo hábito de gritar com os subalternos. Na PM, ele havia sido acusado por um subordinado de perseguição, tortura e homofobia. Um processo foi aberto contra o coronel na corregedoria da corporação, mas quem acabou expulso foi o denunciante.
Segundo servidores consultados pelo Intercept, que falaram sob a condição de anonimato por temerem retaliações, o loteamento de órgãos ambientais entre ex-policiais militares cumpre a função de tornar a área obediente às vontades de Bolsonaro e Salles.
Mas nem mesmo eles escapam da guilhotina quando não entregam resultados. Olivaldi Azevedo fora indicação do próprio ministro e estava na função desde o início do governo Bolsonaro. Com o tempo, porém, ele perdeu respaldo por não conseguir limitar o trabalho dos fiscais do Ibama.
A gota d’água foi uma reportagem do Fantástico, da TV Globo, exibida no último domingo, 12, sobre a operação no Xingu. O governo não gostou da repercussão do assunto e das imagens de fiscais destruindo máquinas usadas por criminosos na floresta. A destruição é prevista na lei e recomendada por especialista, mas é repudiada por Bolsonaro.
No dia seguinte à reportagem, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, enviou um despacho a Olivaldi. Afirmou que soubera da operação pela imprensa e pediu “informações detalhadas”. No dia seguinte, a exoneração do diretor foi publicada no Diário Oficial da União.
Relação íntima começou em São Paulo
Salles foi secretário de Meio Ambiente do tucano Geraldo Alckmin por um ano, entre 2016 e 2017 – tempo suficiente para que ele mandasse adulterar mapas de forma a favorecer mineradoras. Não por coincidência, é da PM de São Paulo que saiu a maioria dos militares que hoje estão no governo.
A relação íntima entre o hoje ministro e os policiais começou quando Salles emplacou um nome de sua confiança, o coronel Alberto Mafi Sardilli, para o comando da polícia militar ambiental paulista. A partir daí, segundo pessoas ouvidas pelo Intercept que acompanharam a gestão de Salles na secretaria, os laços se estreitaram. No Ibama, onde militares comandam um terço das superintendências estaduais, nomes da PM paulista estão à frente de três das principais – as do Pará, São Paulo e Santa Catarina.
Dois diretores poderosos também saíram da corporação. Um é o recém-promovido Magalhães, enviado de Manaus a Brasília com a missão de controlar a fiscalização ambiental. O outro é Luis Carlos Hiromi Nagao, coronel da reserva que também não tinha experiência prévia na área. Atual diretor de Planejamento – controla o orçamento do órgão –, Nagao é descrito por servidores de carreira como um sujeito autoritário e costuma assumir a presidência interina nas ausências do titular, o advogado Eduardo Bim. Ele chegou a ser cotado para a vaga de Magalhães.
No ICMBio, ex-PMs controlam a presidência, todas as diretorias e quatro das cinco coordenações regionais.
O domínio de militares estaduais é ainda maior no ICMBio, órgão criado para cuidar das 334 unidades de conservação federais brasileiras. Desde o final de abril, a presidência e todas as quatro diretorias são ocupadas por ex-PMs de São Paulo. Mas uma mudança recente, ainda não oficializada, também centraliza nos militares as decisões locais sobre parques nacionais, estações ecológicas, florestas e reservas extrativistas do país.
Um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em fevereiro, que entrará em vigor no dia 12 de maio, extinguiu as atuais 11 coordenações regionais do ICMBio e as trocou por apenas cinco “gerências”, que vão administrar as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Quatro delas, à exceção da região Norte, serão entregues a ex-policiais militares. Os nomes estão numa tabela apresentada numa reunião da cúpula do ICMBio, feita após a assinatura do decreto, à qual tivemos acesso.
Pessoas que acompanham as nomeações nos órgãos ambientais afirmam que os PMs em posições de comando em Brasília são escolhas de Salles ou recomendadas a ele por militares de confiança. Já cargos regionais, como as superintendências do Ibama nos estados ou as chefias de unidades de conservação, são mais sujeitos a indicações políticas locais.
Transição sem diálogo
Salles não iniciou sua gestão assessorado por militares. Último dos 22 ministros a ser anunciado para o governo Bolsonaro, ele caiu de paraquedas nos trabalhos do governo de transição, em dezembro de 2018.
Nas semanas anteriores, os gestores ambientais do governo Temer vinham passando as informações da área a uma equipe de 15 pessoas nomeada pelo então coordenador do gabinete de transição, Onyx Lorenzoni, para cuidar das políticas de “desenvolvimento sustentável” do novo governo.
Esta equipe, liderada pelo pesquisador Ismael Nobre, tinha bom diálogo com o grupo de Temer. Quando Salles assumiu a transição, porém, cortou toda a comunicação com os antecessores, segundo participantes daquelas discussões. “Só recebemos um recado deles [do grupo de Salles] para não passar mais nada ao pessoal do Ismael. Mas nunca nos chamaram para uma reunião”, diz um ex-funcionário do ministério do meio ambiente no governo Temer.
Antes da posse de Bolsonaro, os braços direito e esquerdo de Salles eram o ruralista Evaristo de Miranda, hoje chefe da Embrapa Territorial, e Gilson Machado, atual presidente da Embratur.
Fontes da pasta ouvidas pelo Intercept afirmam que ambos tinham influência no início da gestão de Salles – especialmente Miranda, que chegou a ser convidado para ser ministro e chancelava as principais decisões. Com o passar do tempo, contudo, eles foram progressivamente afastados do núcleo de tomada de decisões na área.
No ICMBio, a militarização começou pelo topo – e com barulho. O ambientalista Adalberto Eberhard, que ocupava a presidência do instituto desde o início do governo Bolsonaro, pediu demissão em abril do ano passado dias após Salles ter ameaçado abrir processo contra servidores que não o acompanharam num evento em Tavares, Rio Grande do Sul.
Em 2019, oficiais de PMs de todo o país receberam mensagem com pedidos de indicações para chefiar unidades de conservação.
No mesmo dia em que anunciou o coronel Cerqueira para substituir Eberhard, Salles informou em seu Twitter a exoneração de todos os quatro diretores do instituto e a nomeação de quatro membros da PM paulista para os cargos. Todos estão em seus postos até hoje.
Cerqueira, um bolsonarista que imita o estilo do chefe e ataca ONGs ambientais em suas redes sociais, começou a militarizar os escalões mais baixos nos meses seguintes. Após um encontro nacional de policiais militares ambientais em Iperó, São Paulo, em junho de 2019, o presidente do ICMBio mandou enviar uma mensagem a comandantes de Polícia Militar de todo o país, pedindo indicações de agentes inativos interessados em assumir chefias de unidades de conservação.
Algumas nomeações feitas depois dessa convocação deixaram digitais dos grupos que influenciam o governo. O tenente Wenderson Viana Guilherme, que assumiu em outubro a chefia da Área de Proteção Ambiental da Costa dos Corais, em Tamandaré, Pernambuco, entrou no lugar do biólogo Iran Campello Normande, que foi transferido à revelia pelo presidente do ICMBio.
Em 2016, Normande havia multado Gilson Machado, atual presidente da Embratur e que auxiliou Salles na transição, pela construção de bângalos na APA da Costa dos Corais. O Estado de S. Paulo noticiou que Machado teve essa multa cancelada, há menos de um mês, por ordem do chefe do ICMBio em Pernambuco, Ronei Alcântara, um major do Corpo de Bombeiros que está no órgão ambiental desde outubro. Quando Machado assumiu a Embratur, em maio, Cerqueira desejou sucesso ao “amigo” e publicou uma foto dos dois.
Questionamos ao ministério do meio ambiente o que qualifica Magalhães para ocupar a diretoria e qual foi o motivo da demissão de Olivaldi. O contato foi feito por e-mail, já que todos os telefones da assessoria de imprensa, fixos ou celulares, não deram retorno apesar de várias tentativas. A secretaria do gabinete de Salles, no entanto, confirmou que o pedido foi recebido, mas não houve resposta até a publicação deste texto.
Também procuramos os dois ex-policiais para comentarem o assunto, mas nenhum quis se pronunciar.
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