Em mensagens para a irmã, a angústia de uma técnica de enfermagem contaminada após cuidar de pacientes com covid-19; no Brasil, mais de 500 profissionais de saúde foram infectados e 3,5 mil estão com suspeita da doença
AMANDA ROSSI
16abr2020_13h58
Intervenção de Paula Cardoso sobre ilustração de Oleksandra Bezverkha/Shutterstock
“Oi, mana, estou com muita dor nos pulmões.” A mensagem de Maria da Glória Souza, em 29 de março, frustrou as expectativas da irmã, Elisete Aguiar, que torcia por notícias positivas. Glorinha, como é conhecida pelos colegas, estava internada no Itaim Paulista, extremo da Zona Leste de São Paulo – e não dava sinais de melhora. Depois de quase vinte anos trabalhando como técnica de enfermagem, agora era ela quem precisava de cuidados. Seu principal sintoma era o mesmo de pacientes que atendera dias antes no Hospital Municipal Cidade Tiradentes, também na periferia da Zona Leste: dificuldade para respirar. A princípio, Maria da Glória e seus colegas não sabiam estar tratando de pacientes suspeitos. No caso dela, os médicos logo suspeitaram de covid-19 e proibiram visitas. O WhatsApp se tornou, então, a forma de se comunicar com o mundo – sobretudo as dezenas de mensagens de texto, já que falar exigia demais dos pulmões. Em 4 de abril, as mensagens cessaram. “Ela postou no status do WhatsApp que estava indo pra UTI. Escrevi: ‘Como você está? Vi sua postagem e fiquei muito preocupada.’ A última coisa que ela falou comigo foi ‘boa tarde’. Nunca mais falei com minha irmã”, diz Elisete.
Na UTI, Maria da Glória precisou ser entubada e colocada em um respirador artificial. No dia seguinte, saiu o resultado do teste para covid-19: positivo. Em 9 de abril, não resistiu. Suas conversas no WhatsApp com a família e os amigos são um registro do combate que travou contra a covid-19, seja cuidando de pacientes no SUS ou enfrentando a doença no próprio corpo. É uma história comum a outros profissionais de saúde. Até 16 de abril, 30 enfermeiros, técnicos ou auxiliares de enfermagem haviam morrido com suspeita ou confirmação de covid-19 no Brasil. Mais de quatro mil estão doentes – 536 com diagnóstico confirmado e 3,5 mil com suspeita. Não há um balanço oficial sobre médicos, faxineiros, recepcionistas ou seguranças de unidades de saúde. Em Pernambuco, estado mais transparente do Brasil na divulgação de dados de covid-19, uma de cada três pessoas com a doença trabalha na saúde. Paralelamente, milhares de denúncias de falta de equipamento e condições de proteção individual chegaram a entidades profissionais e sindicatos. “Minha irmã não vai voltar. Mas há outras pessoas dentro dos hospitais pedindo socorro. E, muitas vezes, não podem expor o que está acontecendo, porque precisam do trabalho”, fala Elisete.
O risco é inerente à àrea da saúde, mas os dados indicam que o Brasil cuida mal dos seus profissionais. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), o número brasileiro é maior do que o registrado em outros países. “A grande quantidade de mortes de profissionais de saúde no Brasil neste momento não é um sinal de alerta, é um luminoso inteiro, com vários painéis de led piscando. Algo está acontecendo no ambiente de trabalho que está colocando nossos profissionais em risco, mais do que em outros países”, diz o enfermeiro Walkirio Almeida, que coordena um comitê formado pelo Cofen para gerir a crise da covid-19. “A projeção do Ministério da Saúde é que a gente só atinja o pico em junho. Ou seja, temos cerca de setenta dias de muito trabalho pela frente”.
Maria da Glória tinha 17 anos quando decidiu fazer o curso técnico de enfermagem. “Ajudei a comprar os primeiros livros de enfermagem. Ela era muito magrinha e baixinha e eu brincava que ela não ia conseguir, que ia ter medo. Mas ela falava: ‘Eu vou sim. Quero trabalhar nessa área, porque gosto de cuidar de pessoas’”, conta a irmã Elisete, que hoje vive em Luziânia, interior de Goiás. Agora, quase vinte anos depois de concluir o ensino técnico, Maria da Glória estava prestes a realizar o sonho de completar a faculdade de enfermagem. De noite, trabalhava no pronto-socorro adulto do Hospital Cidade Tiradentes. De dia, fazia faculdade. “Assim que ela chegava do serviço, descansava um pouco e já ia direto para o estágio da faculdade. Mal via as crianças. Era muito batalhadora”, conta a amiga, comadre e vizinha Zionete Reis, também enfermeira. Casada há cerca de dez anos, Maria da Glória tinha uma filha de nove anos e um menino de quatro.
Devido ao avanço do coronavírus, as aulas foram suspensas em São Paulo a partir de 16 de março. Desde então, Maria da Glória se restringiu ao trajeto hospital-casa-hospital. Em um primeiro momento, Cidade Tiradentes não tinha casos suspeitos de covid-19. A epidemia começou nos bairros mais ricos do centro expandido de São Paulo, em pacientes que foram atendidos em hospitais privados. No final de março, os números passaram a crescer na periferia e no SUS. Em 21 de março, três dias antes do fechamento da maior parte do comércio em São Paulo, Maria da Glória enviou um áudio para Elisete: “Hoje eu cheguei [em casa], tirei a roupa [de trabalho] da mochila, deixei tudo lá fora, no balde, deixei o sapato na sacola. Tomei banho, lavei o cabelo. Seja o que Deus quiser. Só Deus mesmo pra nos guardar. Quando a gente chega em casa, ouve como está o mundo. E fica com medo. No hospital, a gente tem sete pacientes [suspeitos com a doença].” Dia após dia, as mensagens demonstravam mais medo e preocupação. “Ela dizia direto: ‘Fiquem em casa. Vocês não têm noção do que está acontecendo.’ Ela estava indo aterrorizada para o hospital, porque todo dia morria gente por causa do coronavírus”, conta Elisete.
“A princípio, não existia um plano de ação [para covid-19] no Hospital Cidade Tiradentes. Então, todo mundo continuou os atendimentos da mesma forma”, diz uma colega de Maria da Glória no pronto-socorro do Hospital Cidade Tiradentes, que pediu para não ser identificada. “Quando já era regra usar máscara N95 [indicada para lidar com casos de covid-19], ainda usávamos a [máscara] tradicional branca. Nossa realidade mudou a partir do momento em que os casos começaram a aparecer na mídia. Então, começamos a cobrar orientações de como agir em relação aos pacientes e fomos todos atrás de máscaras N95.” Esse cenário não foi exclusivo ao Hospital Cidade Tiradentes. Pelo contrário, aconteceu em todo o país. Entre 13 de março e 13 de abril, o Conselho Federal de Enfermagem recebeu 3,7 mil denúncias sobre falta ou restrição de equipamentos de proteção individual. “Sabíamos que a pandemia ia chegar no Brasil. Mas, na prática, pegou as unidades de saúde de surpresa. Infelizmente, ações preventivas, que poderiam ter sido programadas há um tempo, não foram executadas de maneira apropriada. Agora estamos trocando o pneu com o carro andando”, afirma João Silvestre da Silva Junior, professor de Medicina do Trabalho do Centro Universitário São Camilo.
O afluxo de pacientes com sintomas de covid-19, sem que a equipe tivesse sido preparada, assustou Maria da Glória. “A Glorinha teve mais medo do que todos nós, os outros profissionais, porque ela era do grupo de risco”, diz a colega do Hospital Cidade Tiradentes. Segundo a família, no final de 2019, Maria da Glória perdeu temporariamente a visão e descobriu que a causa era diabetes – quadro que aumenta o risco de morte pelo novo coronavírus. Por isso, teve que se afastar do serviço por alguns dias. Porém, quando a pandemia chegou em São Paulo, já estava de volta ao pronto-socorro do hospital, porta de entrada para os pacientes com covid-19.
“A recomendação é afastar todos os profissionais do grupo de risco. Se for inviável, que essas pessoas sejam, pelo menos, retiradas da linha de frente e mandadas para a retaguarda, ou seja, áreas onde não vai haver atendimento de casos de covid-19 ou suspeitos”, diz Walkirio Almeida, do Conselho Federal de Enfermagem. “Se ela estava no grupo de risco, tinha que ser poupada. Eu quero que seja feita justiça. Isso não vai trazer minha irmã de volta, mas pode ajudar famílias de outros profissionais de saúde”, diz Elisete. A Prefeitura de São Paulo, responsável pelo Hospital Cidade Tiradentes, foi procurada, mas não se pronunciou. Pesquisa do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo identificou mais de seiscentos profissionais em grupos de risco que não foram afastados do trabalho. Desses, 65% disseram ter contato com pacientes ou corpos com suspeita de covid-19.
Alguns dias depois da chegada dos primeiros pacientes suspeitos no Hospital Cidade Tiradentes, Maria da Glória começou a apresentar sintomas. Sentia a garganta ardendo e dores no peito e nas costas, na região do pulmão. Logo ela própria se tornou paciente. “O que você está sentindo?”, perguntou Elisete em 29 de março, quando a irmã já estava internada. “Muita dor nos pulmões.” Respirar estava ficando cada vez mais difícil. “Fiz uma tomografia, agora estou aguardando para colher o swab [exame que extrai material do nariz e da garganta para pesquisa de covid-19]”, escreveu para Elisete. No dia seguinte, digitou: “Não consigo falar.” A irmã respondeu com um áudio chorando – “eu preciso de você” – e perguntou dos sobrinhos. “Ele só me fica perguntando que dia eu vou voltar pra casa”, disse Maria da Glória, a respeito do filho mais novo. Mãe e filhos deixaram de se ver a partir do momento que ela foi para o hospital. Evangélica, Elisete gravou uma oração e compartilhou com a irmã: “Mana, eu gravei porque você pode ouvir quantas vezes você quiser, amo você.”
Em 1º de abril, uma boa notícia: “Agora estou melhor, mas passei muito mal, febre, muita dor”, escreveu para Elisete, que respondeu com uma nova oração. No dia seguinte, mais uma novidade positiva: “Estou bem melhor, graças a Deus. O médico falou que vai entrar com medicação específica [para covid-19] e daqui cinco dias vou ter alta. Estou muito em paz. Passou a agonia, a dor, o desespero.” O resultado do teste ainda não tinha saído, mas os médicos já haviam diagnosticado covid-19 a partir do resultado da tomografia do tórax. Em seguida, Maria da Glória fez uma revelação que surpreendeu a irmã: “Tô pensando em fazer outro curso. Não quero mais essa profissão. Quando a gente está do outro lado, é outra coisa, muito triste.” Elisete ainda lembrou a irmã de quanto gostava da profissão. Faltavam só dois anos para conquistar o sonho de concluir o ensino superior e se tornar enfermeira. Mas a técnica em enfermagem estava desesperançada. Naquele mesmo dia, Maria da Glória pediu a Elisete: “Não fala nada pra ninguém ainda [de covid-19], porque o povo fica falando que vou morrer. Fala que é só uma pneumonia mesmo.”
Em 4 de abril, Maria da Glória precisou ser transferida de hospital, porque o local onde estava não tinha UTI. O novo hospital ficava no outro extremo da cidade, no bairro do Butantã, Zona Oeste, a mais de quarenta quilômetros. Em São Paulo, com o aumento da taxa de ocupação dos leitos de UTI por casos de covid-19, são cada vez mais frequentes os relatos de transferência de pacientes para hospitais muito distantes do primeiro atendimento – e da residência da família. Os médicos autorizaram que Maria da Glória, impedida de receber visitas, fosse acompanhada pelo marido durante a transferência de hospital. Mas, ao chegar no Butantã, a técnica de enfermagem voltou a ficar isolada da família. Foi a fase mais difícil. “A gente ficava esperando receber uma boa notícia. Mas era sempre má notícia: piorou e médico está tentando reverter”, fala Elisete.
“A evolução foi muito rápida, assustadora. [A doença] começou no final de março, com sintomas leves. Em sete dias, evoluiu muito rápido. Mesmo nós, profissionais de saúde, ficamos sem saber como lidar com isso”, diz o amigo e enfermeiro Wueslley Ferreira, marido de Zionete. “A Glorinha falava que estava com muito medo. Quando foi transferida de hospital, falou que se fosse entubada não ia mais conseguir voltar para casa. O último dia em que viu os filhos foi quando foi internada, em 29 de março. Depois, só por foto e vídeo no celular”, afirma Zionete. “Na madrugada de domingo [5 de abril], ela foi entubada. De manhã, sem saber de nada, o marido ligou no celular dela, mas já estava desligado. Depois, o hospital informou o que havia acontecido”, conta Ferreira. Em 9 de abril, os rins pararam de funcionar. Na noite daquele dia, Maria da Glória morreu. “Acho que a Glorinha já sabia o que tinha e o que ia acontecer, desde o primeiro dia [em que ficou internada]. Quem lida com a medicina já sabe. Ela estava com muito medo”, conta a irmã.
Após receber a notícia da morte da colega Maria da Glória, na manhã do dia 10 de abril, Vivian Cristina fez uma pausa e ligou a câmera do celular: “Meu nome é Vivian, eu sou enfermeira do Hospital Cidade Tiradentes. Ontem à noite, perdemos uma companheira de trabalho, mãe, filha, esposa, pra essa doença. Ela lutou até onde deu pra ela. E o pior de tudo isso é ver que as pessoas não estão tendo um pingo de consciência na Cohab Cidade Tiradentes. Eu moro aqui, eu vivi minha vida aqui, quarenta anos aqui. E as pessoas estão tratando essa doença como se fosse uma gripezinha qualquer. Eu não sei mais o que falar.” Vivian vestia o jaleco branco da enfermagem e chorava. O vídeo, postado no seu Facebook, já foi assistido mais de 200 mil vezes. “Vocês não têm noção do que é perder uma pessoa para essa doença. Então fiquem em casa. E a gente continua aqui, batalhando, todo dia, todos os profissionais da saúde, desde a limpeza até os médicos.”
Os amigos não puderam se despedir. O velório, com caixão fechado, durou poucos minutos. “O povo está saindo às ruas, achando que é uma gripezinha. Gripezinha? Uma pessoa com 35 anos vem a óbito em duas semanas. Não entenderam ainda a gravidade da situação. As UTIs da Zona Leste estão lotadas. A pessoa sai na rua e vira vetor, coloca a vida dela em risco e a dos outros também”, diz Wueslley Ferreira. A irmã de Glória, Elisete, também se revolta com quem pede o fim da quarentena. Dona de uma pequena confecção em Goiás, ela decidiu se manifestar em um grupo de WhatsApp formado por empresários locais. “A partir do momento que falaram que era pra fechar tudo, eu estou fechada. Mas os outros empresários estavam reclamando. Quando minha irmã faleceu, minha indignidade com aqueles empresários foi tão grande, que eu peguei a foto da Glorinha, publiquei no grupo e falei: ‘Não adianta a gente querer ficar milionário e morrer. O que vai adiantar a pessoa ganhar todo o dinheiro do mundo e morrer lá na frente? Fora que você está colocando em risco a vida de outras pessoas. Pra vocês terem noção de que não é uma doencinha, minha irmã morreu.’ O povo se apavorou. Tinha gente que estava querendo abrir e agora resolveu fechar”, conta Elisete. “Minha irmã amava o que fazia. Ela tinha uma vida toda pela frente. A forma como tudo aconteceu é desesperadora.”
AMANDA ROSSI
Jornalista, trabalhou na BBC, TV Globo e Estadão, e é autora do livro Moçambique, o Brasil é aqui
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