A primeira coisa que fazemos, vamos matar todos os Advogados (The first thing we do, let’s kill all the lawyers) é uma das mais famosas frases de William Shakespeare, sendo atribuída ao personagem Dick Butcher, na peça King Henry VI. [1]
John Cade, logo após ouvir essa famosa frase, condena Emmanuel a ser enforcado com sua pena e tinteiro em volta do pescoço, por ter confessado crime hediondo: possuir uma educação formal, que o tornou capaz de ler, escrever e contar. As cenas seguintes contêm ainda mais carnificina protagonizada pela malta de John Cade e Dick Butcher.
Assim, a devida contextualização da sobredita frase do bardo inglês revela um elogio tácito aos Advogados, pois como eles compõem a principal linha de defesa contra abusos e excessos do poder punitivo, são considerados óbices a serem eliminados por personalidades autoritárias, e seus projetos políticos tirânicos. [2]
De fato, a guinada de um determinado sistema de administração da justiça criminal rumo ao autoritarismo tende a implicar tentativa de criminalização da advocacia.
David Rudovski relata que, à época do macartismo nos Estados Unidos da América, os defensores de acusados comunistas eram considerados tão perigosos quanto seus clientes. Via de consequência, o Departamento de Justiça e a Polícia Federal adotaram estratégia de desacreditar defensores e organizações legais atuantes nesses casos. [3]
Rudovski pontua que, na contemporaneidade norte-americana, essa estratégia de desacreditar defensores é implementada em três frentes: (i) restrição do dever de sigilo profissional, via notificações para que Advogados revelem segredos de clientes sob investigação; (ii) emprego de métodos ocultos de investigação (v.g. envio de informante ou colaborador para realizar captação ambiental de conversa presencial com Advogado etc.); (iii) limitação ao direito à livre escolha do defensor pela perda, em favor do Estado, dos ativos do acusado, com fundamento no Comprehensive Forfeiture Act de 1984.
Entre nós, ao que tudo indica a estratégia de criminalização da advocacia criminal também se desdobra em três frentes.
A primeira é heterodoxa interpretação e aplicação da norma que criminaliza o branqueamento de capitais (artigo 1º da Lei nº. 9.613/98), para fins de inclusão da conduta do defensor que aufere valores de origem supostamente maculada, a título de honorários advocatícios.
Nada obstante, no caso da assistência jurídica consistente em representação nos autos de investigação preliminar ou processo criminal, ou de consultoria sobre mitigação do risco de ajuizamento de ação penal, o ato de auferir honorários advocatícios consiste em ação cotidiana ou neutra.
Trata-se de conduta que o Advogado pratica regularmente, na qualidade de titular do direito fundamental ao livre exercício da sua profissão (artigo 5º, XIII do texto magno).
A doutrina moderna vem repudiando a tradicional concepção de cumplicidade, circunscrita à causação dolosa de injusto principal. Hoje se defende que o tipo objetivo da cumplicidade deve ser enriquecido pelos aportes conceituais da teoria da imputação objetiva de Claus Roxin.
Portanto, uma conduta só se amolda ao tipo objetivo da participação punível caso ela, cumulativamente: (i) crie ou incremente o risco ao bem jurídico-penal; (ii) gere ou aumente o risco juridicamente proibido ao sobredito bem; (iii) cause ou insufle o risco ao bem penalmente tutelado, que venha a realizar-se no resultado.
Logo, são objetivamente atípicas as chamadas ações cotidianas ou neutras. Cuidam-se de ações praticadas pelo agente no decorrer de atividades profissionais diárias e juridicamente permitidas, com finalidades próprias e independentes da vontade do autor principal do fato. [4]
Em suma: são ações realizadas dentro do marco normal da vida do sujeito e, por isso, desvinculadas da atividade-fim do autor do fato criminoso.
Assim, no caso do cumprimento dos regramentos da Lei nº. 8.906/94, do Código de Ética e Disciplina da OAB e das obrigações tributárias (principais e acessórias), o recebimento de honorários supostamente maculados não caracteriza crime de branqueamento de capitais. [5]
Ademais disso, hipotético dever advocatício de investigação sobre a origem dos honorários pagos pelo cliente seria disfuncional.
A uma, esse dever ensejaria violação do núcleo essencial da garantia da ampla defesa, ao seviciar os elementos de confiança e cooperação recíproca que caracterizam qualquer relação funcional entre Advogado e cliente, tornando-a adversarial e baseada em desconfiança.
A duas, o dever em apreço causaria violação do núcleo essencial da cláusula da presunção de inocência, na sua dimensão de regra de tratamento, da qual decorre presunção de licitude dos ativos de propriedade do acusado.
A três, o dever em digressão ensejaria dispensa de tratamento discriminatório ao Advogado, comparado a outros profissionais liberais (v.g. arquitetos, contadores, dentistas, médicos etc.) que não têm dever ético ou legal de investigar a origem dos seus honorários profissionais.
A segunda estratégia de criminalização da advocacia criminal é heterodoxa interpretação e aplicação da norma que criminaliza a obstrução de justiça (artigo 2º, § 1º da Lei nº. 12.850/13), para fins de inclusão da conduta do defensor que se comunica com o defensor de corréu, com vistas ao alinhamento de estratégia e táticas processuais, ou mesmo concerto de versões sobre os fatos naturalísticos imputados.
Não obstante, o precitado tipo penal deve ser interpretado de forma acessória em relação ao legítimo exercício das faculdades e poderes que integram o direito fundamental à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Vale dizer: o defensor pode praticar quaisquer atos processualmente típicos ou atípicos, desde que eles não sejam ilegais. [6]
Portanto, a comunicação entre defensores, para fins de alinhamento de estratégia e táticas processuais, ou mesmo concerto de versões sobre os fatos naturalísticos imputados, não atrai a incidência da obstrução de justiça.
O Supremo Tribunal Federal enfrentou essa questão, de forma incidental, em pelo menos duas oportunidades.
Na primeira, em 2005, o Pleno decidiu pela concessão de ordem liminar em Habeas Corpus, para fins de revogação da prisão preventiva do paciente. Um dos fundamentos do decreto prisional era a necessidade de garantia da instrução criminal, pois o paciente teria concertado versões sobre os fatos naturalísticos investigados com coinvestigado, durante conversa telefônica interceptada.
O voto do ministro Carlos Velloso destacou que a conversa em questão foi com coinvestigado que já havia sido interrogado em juízo, e não com testemunha. Ainda que tal conversa pudesse caracterizar tentativa de aliciamento, em detrimento do interesse da justiça, seria oponível o direito de os corréus estabelecerem estratégia de defesa em comum. [7]
Na segunda, em 2017, decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes concedeu ordem liminar em Habeas Corupus, para fins de revogar a prisão preventiva do paciente. Um dos fundamentos do decreto de prisão era a necessidade de garantia da instrução criminal, devido a reuniões entre os investigados, na casa de Advogado, para concertar suas versões sobre os fatos naturalísticos imputados.
A decisão do ministro Gilmar Mendes foi no sentido da inexistência de posição firmada pela Suprema Corte, reconhecendo um direito absoluto de os coinvestigados influenciarem uns aos outros, e concertarem versões. Malgrado reconhecendo que remanesce pendente a definição dos limites da aplicação do crime de obstrução de justiça, o ministro relator sinalizou sua posição pessoal favorável à sua aplicabilidade desse delito aos casos de coação, ou tentativa de embaraçar postura colaborativa.
Ao final, a decisão em análise reafirmou que a resposta sobre a existência do direito de os coinvestigados se reunirem para concertar versões sobre os fatos naturalísticos apurados ainda está pendente. [8]
Tal indefinição por parte da Suprema Corte é indesejável, gerando insegurança jurídica para o exercício da advocacia criminal.
A interpretação mais alinhada à estrutura normativa e âmbito de proteção da cláusula da ampla defesa é pela atipicidade de comunicações entre defensores ou corréus, para fins de alinhamento de estratégia e táticas processuais, ou mesmo concerto de versões sobre os fatos naturalísticos imputados.
A terceira estratégia de criminalização da advocacia criminal é a devassa nas comunicações entre o defensor e seu cliente.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência atual é pela admissibilidade em juízo de conversas telefônicas entre Advogado e cliente interceptadas com autorização judicial.
O principal argumento invocado é que, como o alvo original dessa medida é o acusado, a eventual interceptação incidental de conversas telefônicas dele com seu Advogado caracteriza encontro fortuito, excludente de violação ao sigilo profissional (artigo 7º, II da Lei 8.906/94). [9]
Nada obstante, a inviolabilidade das comunicações entre Advogado e cliente se reveste de interesse público relevante e indisponível, por se tratar de meio indispensável para assegurar a própria efetividade da defesa técnica do acusado. [10]
O artigo 8.2.d da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) assegura a todo acusado o direito de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor.
Trata-se de norma de cariz supralegal, portanto hierarquicamente superior à Lei de Interceptações Telefônicas (Lei nº. 9.296/96). [11]
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso Tristán Donoso vs. Panamá em 2009, reconheceu que os fluxos comunicacionais entre Advogado e cliente têm natureza privada, devendo contar com um maior grau de proteção do direito à intangibilidade da vida privada (artigo 11 da CADH), devido ao sigilo profissional. [12]
Em sentido semelhante, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no julgamento do caso Kopp vs. Suíça em 1998, decidiu que as comunicações telefônicas cuja origem ou destino sejam escritórios de advocacia estão protegidas pelo conceito de proteção da vida privada e correspondência (artigo 8.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos).
Mais especificamente, as legislações domésticas dos Estados Membros devem reconhecer o sigilo das comunicações entre Advogado e cliente e discriminar como, sob quais condições e por quem deve ser feita a distinção entre as comunicações relacionadas à representação do cliente pelo Advogado e as demais, prevendo a supervisão por Juiz imparcial. [13]
Como a interceptação de comunicações telefônicas é meio de investigação sujeito a regime de legalidade estrita (nulla coatio sine lege scripta, stricta et praevia), quaisquer conhecimentos fortuitos que impliquem violação ao sigilo profissional advocatício são inadmissíveis em juízo. [14]
Logo, a sobredita posição jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça está a merecer reavaliação, pois o fundamento constitucional da inviolabilidade dos fluxos comunicacionais entre Advogado e cliente independe de quem é o alvo original da interceptação de comunicações telefônicas.
O sistema de administração da justiça criminal, máxime em tempos de discursos de emergência (anticorrupção, anticrime organizado etc.) e práticas judiciárias de exceção, tende a considerar o direito de defesa disfuncional, sendo recebido com intolerância, ou mesmo hostilidade, pelo acusador e julgador partidários. [15]
Nessa conjuntura, há grave risco de descumprimento do item 18 dos Princípios básicos sobre o papel dos Advogados da Organização das Nações Unidas (ONU), em textual: Advogados não deverão ser identificados com seus clientes, ou com as causas de seus clientes, como resultado do cumprimento de suas funções (Lawyers shall not be identified with their clients or their clients’ causes as a result of discharging their functions). [16]
Assim, é imprescindível que haja constante vigilância, por parte dos teóricos e praticantes do Direito comprometidos com os valores democráticos, sobre personalidades autoritárias, e seus projetos políticos tirânicos de criminalização da advocacia.
[1] SHAKESPEARE, William. The complete works of William Shakespeare, p. 579. New York: Gramercy Books, 1990.
[2] BOYARSKY, Saul. “Let’s kill all the lawyers”: What did Shakespeare mean?, In: Journal of Legal Medicine, n. 12, pp. 571-574, 1991.
[3] RUDOVSKY, David. The right to counsel under attack, In: University of Pennsylvania Law Review, v. 136, n. 06, pp. 1.965-1.973, 1988.
[4] GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras: A imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
[5] SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro, pp. 151 e ss. São Paulo: Saraiva, 2010.
[6] FELDENS, Luciano; TEIXEIRA, Adriano. O crime de obstrução de justiça, pp. 38-42. São Paulo: Marcial Pons, 2020.
[7] STF, Pleno, HC 86.864-SP MC, Rel. Min. Carlos Velloso, DJe 16.12.2005.
[8] STF, 2ª Turma, HC 114.478-RJ MC, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 06.04.2017.
[9] STJ, 6ª Turma, RMS 58.898-SE, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 23.11.2018; STJ, 5ª Turma, HC 66.368-PA, Rel. Min. Gilson Dipp, DJe 29.06.2007.
[10] LÓPEZ YAGÜES, Verónica. La inviolabilidad de las comunicaciones con el abogado defensor, pp. 55-57. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2003.
[11] STF, Pleno, RE 349.703-RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 05.06.2009.
[12] CIDH, caso Tristán Donoso vs. Panamá, sentença de 27 de janeiro de 2009, §§ 75-76.
[13] TEDH, caso Kopp vs. Suíça, sentença de 25 de março de 1998, §§ 50-76.
[14] ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal, pp. 286-287. Coimbra: Coimbra Editora, 1992.
[15] MALAN, Diogo. Megaprocessos criminais e direito de defesa, In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 159, pp. 45-67, set. 2019.
[16] https://www.un.org/ruleoflaw/blog/document/basic-principles-on-the-role-of-lawyers/
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