“EU MORO NA AMAZÔNIA. CRIEI A BRIGADA E AMO O QUE FAÇO. A GENTE SE DESGASTA E VAI AO LIMITE. É UM ATO DE AMOR. É UMA COISA DE OUTRO MUNDO. ESSA QUESTÃO POLÍTICA EU PREFIRO OBSERVAR”
O primeiro incêndio que vi foi mais assustador. Era julho de 2017, na Serra do Carauari, em Alter. Não tinha conhecimento, equipamento, nada. Não era incêndio florestal, mas eu tinha medo de que se tornasse. O medo ajuda a ter cautela no momento do incêndio. Nessa hora, os combatentes estão entrando em direção ao fogo — e os animais, como as cobras, estão fugindo dele. Você não consegue enxergar nada. Se pisar num buraco e tiver uma simples torção, pode comprometer toda uma operação. Então, o medo existe, tem de existir.
Esse primeiro incêndio que vivi era uma casa de madeira que queimou totalmente, ao lado de onde vivo atualmente. Foi uma cena muito forte. Na hora, organizei a comunidade para ajudar a apagar. A gente viu ali a organização comunitária nascendo. Daí surgiu o sentimento da necessidade de criação da brigada. Santarém está a 40 quilômetros de Alter do Chão, e a região é enorme. Como moradores, conseguimos passar, de uma forma mais precisa, a informação para o Corpo de Bombeiros. E a brigada entra com o papel de primeiro combate.
Passei por muita coisa junto com meus companheiros da brigada durante essa jornada. Coisas que nunca passariam por nossa cabeça. Fazemos um trabalho honesto, direito. É voluntário. Ninguém recebe. Uma brigada que já tinha dois anos no território, que vinha crescendo. Tinha acabado de formar 16 novos brigadistas. A gente não imaginava a prisão. Foi um choque. Foi um momento muito conturbado em minha vida. Tenho criança, família. Graças a Deus não fiquei preso os dez dias, como o juiz havia determinado, e soltaram a gente com três por causa de uma pressão nacional e internacional.
Desde o episódio, a brigada está suspensa. Infelizmente, ainda não acabou esse processo. Ele foi para o Ministério Público e umas duas ou três vezes o promotor pediu diligências e a polícia não cumpriu. Vivemos uma tortura jurídica. Uma espera, uma demora, com passaporte retido. Em junho, eu passei para um processo seletivo para chefe de brigada do ICMBio da Gerência Regional Norte, que cuida de todas as Unidades de Conservação da Amazônia. Mas para a brigada de Alter só volto quando esse processo acabar.João Romano (à esquerda) ao ser libertado ao lado de Daniel Govino, Gustavo Fernandes e Marcelo Aron Cwerver. Ele contou que as noites passadas na prisão foram as piores de sua vida. Foto: Marizilda Cruppe / Colabora
A situação das queimadas neste ano está bem diferente do ano passado. Estamos tendo chuva, o que é uma bênção. Sei de um incêndio que aconteceu em uma reserva extrativista aqui da frente, que é um território de gestão do ICMBio, e que foi controlado. Os bombeiros montaram uma força-tarefa para atender a essas ocorrências em Alter do Chão. Quando se tem uma queimada como houve no ano passado, é muito difícil ocorrer de novo na mesma proporção. Porque o material combustível já foi queimado. O que vimos no ano passado foi fruto de massa acumulada de quase cinco anos sem chuva. Neste ano houve alguns desses incidentes, inclusive muito próximos à mesma área do incêndio de 2019, mas nada igual ao que enfrentamos. Eu sei também que algumas pessoas foram presas fazendo loteamento irregular.
A gente tem de pensar positivo e aprender com o que a vida mostra. A gente tem de olhar e carregar a experiência dos momentos em que a vida nos coloca de cabeça para baixo. Aprender o que ela mostra para não cair nas mesmas armadilhas, para se proteger cada vez mais. Nós éramos uma instituição que tinha um ano, tinha CNPJ, estatuto, uma diretoria trabalhando, todos voluntários, mas focados nisso, no desenvolvimento sustentável para o território, nas soluções ecológicas. Brigadista é uma profissão com especialização. Não é todo mundo que faz. É uma causa muito nobre, muito árdua. Agora, não sei o que mudará no futuro, mesmo com a eleição do Joe Biden. Sobre essa questão política, eu não tenho o que falar. Só observo. Prefiro ver a mudança. Moro na Amazônia, criei a brigada e amo o que faço. A gente se desgasta e vai ao limite. É um ato de amor. É uma coisa de outro mundo. Essa questão política eu prefiro observar.
Fonte: https://epoca.globo.com/brasil/pago-por-algo-que-nao-fiz-diz-um-dos-brigadistas-presos-por-incendios-no-para-um-ano-depois-24757288
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