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domingo, 29 de novembro de 2020

CUENCA INDO NA JUGULAR

 
LIBERDADE DE EXPRESSÃO - Avalanche de processos contra escritor acende debate sobre papel dos Juizados Especiais

29 de novembro de 2020, 7h54

Por Rafa Santos


João Paulo Cuenca é alvo de mais de uma centena de processos movidos por pastores da Igreja Universal em todo o país
Reprodução

O jornalista e escritor João Paulo Cuenca é, certamente, uma das pessoas físicas mais acionadas na Justiça brasileira na história recente. 

Decisão desta semana do juiz Ralph Machado Manhães Junior, da comarca de Campos de Goytacazes (RJ), mandou que o Twitter remova a conta dele por conta de uma postagem crítica ao governo Jair Bolsonaro e à Igreja Universal.

A frase que provocou a decisão e uma avalanche de processos movidos pelos pastores da igreja foi postada por Cuenca em junho deste ano. Ele citou a famosa frase de Jean Meslier (1664-1729) — erroneamente atribuída a Voltaire —, que disse, no século 18, que "o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre". Cuenca postou no Twitter que "o brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal".

O escritor é representado pelo advogado Fernando Hideo Lacerda. O caso chegou até ele por meio de um amigo em comum. "Achei esse caso totalmente atípico. Ele não tinha muitas informações, mas fizemos um levantamento em todos os estados do país e o número de processos já chega a 134", afirma.

Em entrevista à ConJur, Hideo explica que todos os processos seguem o mesmo padrão. "Eles entram em juizado especial e colocam o valor da causa de até 20 salários mínimos para não precisar de advogado. As petições apresentadas são claramente feitas pelos advogados e assinadas pelos pastores", diz. Para sustentar a hipótese, revela que já indicou ao menos sete modelos de petição que são idênticos e afirma as petições tem a formatação típica da usada por advogados e citam jurisprudência do tribunal.

Hideo comenta também que em um processo movido em Alagoas que foi rejeitado liminarmente teve um recurso assinado por uma advogada. "E você faz uma pesquisa rápida e descobre que essa profissional atua na maioria das vezes em processos ligados à Universal", explica.

Na maioria dos processos, os pastores alegam que tiveram dano moral e que a frase postada pelo escritor os ofendeu profundamente. "É uma tese jurídica completamente infundada. Eles já fizeram isso em 2007 com a jornalista Elvira Lobato, na Folha de S.Paulo", relembra.

Hideo explica que a linha de atuação da defesa do escritor é trabalhar com a tese do assédio processual. Um instituto levantado pelo STJ em 2019. "É basicamente a manipulação do processo como máquina de guerra e não um instrumento de Justiça. Estamos trabalhando para comprovar essa tese e vamos tomar medidas contra todos que colaboraram com esse assédio processual", afirma.

Ao todo, todos os processos movidos contra o escritor já somam pedidos de indenizações que somam mais de R$ 2 milhões. "É importante deixar registrado que o sistema de Justiça não pode deixar que se pratique esse atentado contra o próprio sistema de Justiça. Esses modelos que encontramos mostra que todo o aparato do Judiciário está sendo mobilizado não em busca de justiça, mas para causar dano a alguém. Imagine se todo jornalista que escrever algo que desagrade uma instituição poderosa for alvo desse tipo de assédio. Imagine o dano que isso causaria a liberdade de expressão e de imprensa", argumenta.

A Igreja Universal tem negado sistematicamente que é parte de uma ação orquestrada contra o escritor sob a alegação de que os pastores "têm autonomia para tomar as suas próprias decisões quanto à sua vida privada".

O jurista Lenio Streck, colunista da ConJur, diz acreditar que o caso afeta diretamente o direito de expressão dos escritores brasileiros. "Em primeiro lugar, o sistema jurídico veda 'guerrilha processual' ou 'foquismo Judiciario'. Há decisão do STF em caso do Paraná envolvendo jornalistas processador por juízes", afirma.

No caso citado por Lenio, juízes do Paraná se articularam para processar A Gazeta do Povo e seus jornalistas. O caso ganhou bastante repercussão, pois foi uma ação coordenada dos juízes, depois de o jornal de Curitiba publicar notícias mostrando os vencimentos dos magistrados.

As reportagens foram publicadas em fevereiro deste de 2016. Todas as petições juízes eram idênticas, pedindo direito de resposta e indenizações por danos morais. As demandas eram sempre no teto do limite do juizado especial, de 40 salários mínimos. Os processos foram suspensos por decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal. 

Sobre o caso de Cuenca, Lenio cita trecho do posicionamento da União Brasileira dos Escritores:

"Se um dos lados se manifesta livremente apoiando um torturador, como fez o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, não tem sentido punir um escritor que faz uma paráfrase de um texto do século 18, adaptado aos tempos atuais."

"Alguém foi ler o texto parafraseado? Seria bom. Sempre é bom ler e reler textos históricos. Alguém leu o Extrait des sentiments? Meslier fez um tratado sobre o ateísmo. Ele que era um padre católico. E denunciou a hipocrisia da igreja na época. 
A igreja universal não crítica à umbanda? Não chuta santa? Pois. Pau que bate no santo x, bate no presbítero y!", complementa.

Caso Reinaldo Azevedo

Outro caso em que os Juizados Especiais foram o meio encontrado para atacar jornalistas foi movido pelo ex-coordenador da "lava jato" Deltan Dallagnol. O colunista da Folha de S.Paulo e âncora da Band News FM, Reinaldo Azevedo, foi condenado indenizar o procurador na quantia de R$ 35 mil. A juíza que assina a decisão é Sibele Lustosa Coimbra, mulher de Daniel Holzman Coimbra, amigo de Deltan Dallagnol e colega dele na "força tarefa" de Curitiba. Veja a certidão de casamento de Sibele e Daniel. 

O Juizado Especial também foi o meio encontrado por Deltan para condenar a União por supostas ofensas do ministro Gilmar Mendes.

Qual o papel dos Juizados Especiais?

Criados há 25 anos pela Lei 9.099/1995, para desburocratizar o acesso à Justiça, os Juizados Especiais enfrentam um dilema. Os princípios da simplicidade, informalidade, oralidade, economia processual e celeridade que envolvem esses órgãos passaram a ser priorizados para resolver problemas cotidianos de qualquer cidadão, de forma rápida, eficiente e gratuita.

Mas a procura excessiva a esse instrumento da Justiça tem prejudicado o seu funcionamento. O caso da avalanche de processos movidos contra Cuenca reacende o debate em torno do desvirtuamento do conceito dos juizados especiais.
Cuenca parafraseou frase de Jean Meslier (1664-1729) e se tornou alvo de uma avalanche de processos nos JECs
Wikipedia

Outra figura pública que, de certa maneira contribuiu para reavivar o debate, foi procurador da República Ailton Benedito. O representante do MPF acionou judicialmente a agência de checagem de informações Aos Fatos. Ele foi classificado pelo corpo editorial do veículo de informação como um dos principais propagadores de informações incorretas a respeito da cloroquina, remédio apontado por membros do alto escalão da República como importante droga no combate a Covid-19, apesar da falta de evidências científicas.

O servidor público também incentivou seus seguidores nas redes sociais a seguirem o mesmo caminho contra veículos de comunicação.

"Segundo garantem a Constituição Federal e as leis brasileiras, nos Juizados Especiais (Lei 9.099), não precisa de advogado. É o que devem fazer todas as vítimas que sofrem violações a seus direitos fundamentais praticadas por autodeclaradas 'agências de checagem de fatos' (sic)", escreveu.

Sobre a estratégia de se utilizar dos juizados especiais no caso de Cuenca, Hideo levanta alguns pontos. "Primeiro temos que pensar no aspecto da competência. Se fosse, por exemplo, pelo código de processo civil eles deveriam entrar no foro do réu. O segundo ponto é que o Juizado Especial permite que uma parte demande a outra sem nenhum custo. Se fosse pela via da Justiça comum a maioria das causas seria julgada improcedente. E isso teria custo", explica.

Para Hideo, o fato de os processos serem movidos no Juizados Especiais indica, nesse contexto, que as ações são infundadas. "O objetivo é escuso. Visa causar danos pelo processo", argumenta.

Para Alexandre Fidalgo, advogado especialista em casos envolvendo liberdade de expressão, é absolutamente reprovável o uso dos Juizados Especiais em processos que visam impugnar conteúdo jornalístico. "Ao discutir demandas de liberdade de expressão em JEC, tem-se a possibilidade de, nessa justiça criada para conflitos de baixa complexidade, haver decisão de cunho constitucional, o que impede, ao final, acesso à Corte Especial", explica.

O especialista também aponta que se utilizar de uma ferramenta sem para atos persecutórios e intimidatórios pode caracterizar abuso de direito, assédio processual. "Exemplo disso, recente, é também uma série de ações ajuizadas contra o historiador Marco Antonio Villa, crítico do governo Bolsonaro. Houve uma mobilização na internet para que fossem ajuizadas ações em todo o Brasil em seu desfavor. Meu escritório está trabalhando no caso e conseguimos sentenças de improcedência em todos os casos até hoje julgados. No dia de ontem [26/11], por coincidência, a juíza Thais Migliorança Munhoz, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível da Comarca de Campinas, condenou um dos autores em litigância de má-fé", comenta.

Atualmente existem 1.494 juizados especiais autônomos no Brasil, além de 2.700 varas que funcionam com juizado especial adjunto, computados nesse número as varas de juízo único (localidades em que uma vara lida com todas as demandas de determinado segmento da Justiça).

Criados com o intuito de promover um rito processual mais célere e de facilitar o acesso à justiça, hoje a demanda dos juizados já corresponde a 35% da demanda de primeiro grau, de acordo com dados do Relatório Justiça em Números.



Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 29 de novembro de 2020, 7h54

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