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sábado, 20 de julho de 2019


‘Divino amor': filme futurista é uma crítica à hipocrisia do Brasil evangélico de Bolsonaro
Alexandre Gonçalves
18 de Julho de 2019, 0h03
Divino Amor (2019), dirigido por Gabriel Mascaro. Reprodução: Divulgação.


Alerta! O texto a seguir contém spoilers do filme “Divino amor”, de 2019.

Lançado em junho deste ano, o filme “Divino amor” é uma obra de ficção futurista e ao mesmo tempo escatológica do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro. O adjetivo futurista é bem óbvio para quem assistir ao filme, em cartaz nos cinemas. Mas o termo escatológico deve ser explicado.

Não sou crítico de cinema, mas sou pastor há 25 anos em uma denominação cristã evangélica tradicional. Acompanho há mais de 30 anos o movimento evangélico de dentro, sendo, em muitas vezes, uma voz dissonante às que detêm poder financeiro e midiático para impor um padrão que é visto de fora como monolítico. O que essas informações pessoais têm a ver com o filme? Para mim, tudo a ver.


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O filme é um retrato ficcional do Brasil em 2027. Veja, não é tão distante assim. Nesse futuro imaginado nosso país é predominantemente evangélico. Mas que tipo de evangélico? Um evangélico neopentecostal, triunfalista, individualista e adepto da teologia do domínio.

O filme inicia, sob a narração de uma voz infantil, em uma celebração tipicamente neopentecostal, com luzes, música moderna, dança, ambiente típico de uma rave. A voz infantil situa o tempo e explica que o carnaval não é mais a festa principal do país – foi substituída por uma festa gospel chamada de “festa do amor supremo”.

Essa mudança revela uma das bandeiras do neopentecostalismo histérico que apoia as heterodoxias defendidas pelo atual governo: a imposição de uma cultura cristã sobre qualquer outra cultura não-cristã. Essa é a base da teologia do domínio, uma doutrina de prática antiga, que começou nos primórdios do cristianismo e foi ressuscitada pelo movimento neopentecostal no século 20.


Cartaz brasileiro do filme Divino Amor (2019).

Reprodução: Divulgação.

Até mais ou menos o século 3, os cristãos eram duramente perseguidos pelo Império Romano. Com o imperador romano Constantino, o cristianismo se torna religião oficial do império, invertendo a perseguição para os adeptos de outras religiões, chamados indistintamente de “pagãos”. Com o cristianismo religião de estado, templos que outrora eram destinados aos cultos de outros deuses foram adaptados pelo estado a fim de serem usados para reuniões cristãs em uma espécie de sincretismo estatal. De maneira impositiva, uma cultura cristã, em substituição às culturas sobre as quais o império romano dominava, passou a ser dominante entre os povos.

Nesse momento, o cristianismo passou a ser uma religião de adesão e não de conversão. A diferença básica entre as duas definições é que o verdadeiro Evangelho de Cristo não é imposto a ninguém – os valores do Reino de Deus são aceitos de maneira voluntária por aqueles que recebem ou sofrem o que, na doutrina cristã, chamamos de “novo nascimento” ou “conversão”. A adesão é diferente. Ela ocorre por imposição moral, social ou política. Moral, pois se baseia em uma adesão aos aspectos exteriores do comportamento cristão; social, pois é provocada pela indução natural de se seguir a maioria ou aquilo que dá destaque no meio em que se vive; política, porque diz respeito a uma decisão que tem implicações verdadeiramente políticas ao posicionar o adepto no mesmo campo do status quo político. E foi isso que ocorreu naqueles tempos sombrios de perversa mistura entre religião e estado.

O Brasil já passou por algo parecido. Até 1977, por imposição de um domínio estatal cristão-católico, o país não tinha em seu arcabouço jurídico a possibilidade do divórcio. Quem não quisesse manter o relacionamento com seu marido ou mulher, teria de se “desquitar” e jamais poderia contrair novo casamento civil.

Bancadas religiosas argumentavam que a regulamentação do divórcio acabaria com a família.
Na época em que o deputado Nelson Carneiro, do então PMDB carioca, apresentou a emenda constitucional que criaria o divórcio houve forte alvoroço das bancadas religiosas que argumentavam que a medida acabaria com a instituição da família. Esse fato é um exemplo claro da imposição da cultura cristã em uma sociedade laica. E não somente isso: a demonstração inequívoca de imposição de uma doutrina considerada herética pela maioria dos teólogos: o teonomismo. O teonomismo advoga que as leis civis do Velho Testamento devem ser assimiladas por toda a sociedade, tornando-se lei para todos, independentemente de sua fé. Têm muitos pastores hoje, principalmente os mais jovens, que são teonomistas. Alguns nem sabem que são, mas os reflexos são claros nas posições de muitos apoiadores do atual governo.

O que isso tem a ver com o filme “Divino amor”? A personagem principal, Joana (interpretada por Dira Paes), é uma funcionária de um cartório de registro civil. Ela é evangélica, sinceramente evangélica por adesão. Entende que o centro do evangelho é a família. Muito mais que Jesus, o autor do evangelho, e por que não dizer, o próprio evangelho encarnado, ela acredita que a família é o centro de tudo. Para preservar a família, vale tudo.

Apesar de ser advertida por seu chefe direto de que sua ações estavam erradas, visto o estado ser laico – o filme mostra um tipo sutil de imposição cultural sem religião oficial –, ela continuava aconselhando casais a não se divorciar. Ela obstaculizava o processo, criando impasses para que desse tempo de demover o casal de sua decisão. Ela entendia que estava imbuída de uma missão divina, mesmo agindo de maneira ilegal. Joana queria transformar o Brasil em um estado de fé. Ela também convidada o casal a participar de sua igreja, uma espécie de “ministério de casais” chamado Divino Amor. E é nesse ponto que o filme é agressivo e chocante.



Cenas de Divino Amor, dirigido por Gabriel Mascaro.Reprodução: Divulgação


Em sua sanha de defender a família a todo custo, Joana, juntamente com os membros dessa seita heterodoxa, promove, em nome da família, uma experiência que mistura leituras bíblicas descontextualizadas e sessões de autoajuda, orgia e troca de casais (o que conhecemos por swing).

A troca é precedida de um ritual onde os casais entendem estar se purificando com água abençoada para permanecer unidos. O objetivo, que suplanta os meios para alcançá-lo, é supremo na visão de Joana: manter o casal unido. Isso tudo é seguido do lema da seita, narrado com voz robótica de uma criança: “Quem ama não trai; quem ama divide”.

Pode parecer um grande exagero – e de certa forma, a intenção do autor do filme é chocar mesmo. Mas em meus 25 anos de pastor já vi coisas que poderiam também ser creditadas como exageros. Um caso emblemático que me recordo foi de uma mulher cujo marido, pastor de uma igreja pentecostal tradicional, abusava da filha do casal cotidianamente, e a esposa não se separou e nem o denunciou, pois seria pecado desfazer o casamento. Como pastor, tive de lidar com o resultado nefasto desse crime na vida da filha do casal. O que seria mais absurdo acreditar: na orgia gospel retratada no filme ou em uma mãe silente ante o abuso cometido contra a sua filha? E tudo pelo mesmo motivo: a família.

A ironia dessa história ficcional retratada no filme e desenrolada sem dar nenhum aspecto de chacota é que o marido de Joana, Danilo (interpretado por Júlio Machado), também participante das orgias da seita em prol da manutenção do casamento, se separa de Joana. E por qual motivo? Por que ela o traiu concebendo uma criança que não é dele. Veja que, mesmo ele participando de uma troca de casais, onde um entrega seu corpo a outro diante de seu par, isso em si não é considerado traição, visto que “quem ama, divide”. A paquiderme sutileza da crítica à hipocrisia religiosa daqueles que defendem a família no meio cristão moderno é muito bem descrita pelo autor do filme nessa situação.
Abortar, nesta visão tosca, é bem pior que abandonar.

O filme de Mascaro destaca que, nesse Brasil futurista, há instituições que funcionam como lares de filhos bastardos, ou seja, crianças abandonadas por serem fruto de relacionamentos fora do casamento tradicional – abortar, nesta visão tosca, é bem pior que abandonar. E é pra este lugar que vão as crianças filhas de evangélicos que se envergonham da consequência aparente de seu relacionamento fora do casamento.

Mais uma vez, o autor apela para um exagero. Será? Seria exagero se eu não fosse testemunha, como pastor, de vários casos em que a mulher ao engravidar de seu namorado, a fim de manterem a aparência de pureza cristã casta pré-nupcial, é forçada a abortar pelo seu namorado, seja por ele ser um líder em ascensão na igreja ou seja por ela mesma ser uma daquelas cantoras gospel promissoras.

No conflito gerado no coração de Joana com o descobrimento de sua gravidez e da ausência de traços genéticos de paternidade de Danilo, ocorre uma busca fervorosa à religião, a ponto de Joana acreditar que está grávida do próprio Deus.

Nesse ponto, entra em cena o drive thru de aconselhamento pastoral. Essa é uma caricatura tosca da religião individualista, onde um pastor atende uma pessoa individualmente e literalmente em um sistema de drive thru, com direito a música gospel, frases de efeito e sem nenhum sentido bíblico do tipo “fé é toda certeza que dispensa prova” ou a mais perigosa de todas proferida pelo pastor e que alcança de maneira certeira o coração de Joana e de milhões de evangélicos modernos: “Nenhum ato a serviço do Senhor pode ser chamado de pecado”.

Esta frase justifica em si todo tipo de absurdo. Vale mentir pela causa do Senhor; vale xingar os outros pela causa do Senhor; vale roubar pela causa do Senhor; e por último, vale matar pela causa do Senhor. A escatologia teológica que o filme sugere é a parte mais triste para mim.


Cena de Divino Amor.

Reprodução: Divulgação.

Em seu enredo hermético, em que parece que o Brasil se restringe a um mundo somente de evangélicos, o futuro desenhado parece triste, sem cor, semelhante às roupas usadas por Joana. Semelhante também à vida de Danilo, seu marido, que vive de fazer arranjo de flores para funerais cristãos. Tudo isso retratado por um autor que vê o mundo evangélico de fora. É um mundo triste, com pessoas tristes e sem a empatia desse mesmo povo de fora.

Desde a minha mais tenra fé, aprendi que os cristãos primitivos eram odiados pelo estado e amados pelo povo. Isso é revelado nas Escrituras Sagradas, quando Lucas descreve no livro de Atos que a Igreja “(…) contava com a simpatia de todo povo” (Atos 2:47) e ao mesmo tempo relata que da parte do estado “(…) levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém (…)” (Atos 8:1). Ou seja, a igreja era bem vista pela população e odiada pelos poderosos, àqueles que detinham o poder político e religioso.

Hoje vejo uma inversão dessa realidade: a igreja é amada pelos poderosos e cada dia mais antipatizada pelo povo. E essa antipatia não advém de um sentimento gratuito. Há razão de ser. Não é por que os cristãos têm uma vida piedosa, humilde, de serviço e que, por sua justa luta, angariam a antipatia daqueles que se sentem constrangidos com tamanho altruísmo. Nada que se pareça à perseguição que os puritanos sofreram na Europa, muito menos parecida com a fúria sofrida pelos missionários moravianos. Nada disso.
Essa mesma fé alçou o então candidato a presidente Jair Bolsonaro a uma posição de Messias

A antipatia advém das posições arrogantes, hegemônicas e do discurso cada vez mais antagônico e paradoxal ao Evangelho de Cristo. E é bem óbvio para qualquer um que o povo se insurja contra aquilo que representa o poder. Foi essa fé cristã pós-moderna que ajudou a eleger os novos representantes de nosso atual governo. Essa mesma fé alçou o então candidato a presidente Jair Bolsonaro a uma posição de Messias, fazendo jus ao seu nome do meio. Em uma aura sebastianista, onde os evangélicos neopentecostais e até setores de igrejas tradicionais advogam que o Brasil precisava se tornar uma nação cristã, com uma cultura cristã, um governo cristão com leis cristãs, que o atual governo foi eleito.

Qualquer acerto desse governo será creditado aos cristãos. E os erros, de maneira igual e mais intensa, pois são os erros que sempre serão mais vistos, também serão creditados aos cristãos.

Esse é o motivo pelo qual os reformadores protestantes, em seus variados fundamentos, defenderam que a igreja jamais deveria se misturar ao estado e que este deve ser um estado laico em que o cidadão possa ter a liberdade de exercer sua fé ou sua ausência de fé em paz e segurança.

A triste escatologia teológica que o filme “Divino amor” me fez lembrar que a perseguição virá de maneira furiosa contra os cristãos. Mas não pelos motivos que eu achava. Virá como resposta à intolerância, hipocrisia, indolência e a ausência total de amor, aquele amor retratado pelo apóstolo Paulo na primeira epístola aos Coríntios: paciente, bondoso, sem inveja, sem orgulho, que não maltrata, não procura seus próprios interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. É amor que tudo sofre, tudo crê e tudo espera. Esse, sim, é o verdadeiro Divino Amor.
 
Fonte: https://theintercept.com/2019/07/17/divino-amor-critica-evangelico-bolsonaro/

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