Pierpaolo Cruz Bottini
Estratégias para dificultar o acesso a elementos colhidos em investigações não são raras e aparecem na prática com os mais variados disfarces. Sob o pano de entraves burocráticos muitas vezes se esconde a astúcia estatal para impedir o exercício da defesa.
Juntadas, carimbos e autos parecem detalhes de planície frente aos grandes temas do processo penal, mas é justamente neles que reside aquele senhor a quem alguns chamam de diabo. Todas as conquistas, súmulas e regras referentes ao contraditório e à transparência na investigação e no processo penal caem por terra diante de pequenas táticas que passam ao largo das grandes discussões.
No cotidiano, é comum que certas autoridades, sob a alegação de falta de tempo ou de estrutura, deixam de "acostar" aos autos depoimentos, perícias e documentos, muitas vezes apenas revelados — como que por encanto — durante oitivas, surpreendendo o investigado e seu defensor.
Em algum momento da história, o inquérito policial, ou os procedimentos investigatórios, eram espaços de discricionariedade da autoridade, nos quais as decisões sobre diligências, os rumos da investigação, as pessoas a ouvir e as perícias a efetuar cabiam apenas aos representantes do Estado. Ao investigado cedia-se, no máximo, o espaço do depoimento, para apresentar sua versão dos fatos, e, às vezes, o acesso a alguns documentos produzidos.
Há algum tempo, percebeu-se que tal situação compromete o objetivo em torno do qual deve se mover a investigação: conhecer e compreender o realmente ocorrido, ou o mais próximo disso possível. Ainda que a polícia e o Ministério Público se apresentem como agentes do Estado em busca da verdade dos fatos, em boa parte dos casos (com as sempre bem-vindas exceções) sua atuação pende para a busca de indícios ou provas que fundamentem ou reforcem uma tese acusatória, ainda que embrionária. Isso não significa que tais autoridades deixariam deliberadamente de apurar fatos que contradigam suspeitas iniciais, mas é natural que direcionem as atividades para determinados focos, reforçando suas premissas.
Por isso, a transparência das investigações é fundamental. O investigado precisa ter acesso aos autos, conhecer os elementos de prova colhidos, até para contribuir com o esclarecimento do ocorrido com sua versão dos fatos. Não pode haver segredo quando se trata da discussão da liberdade.
Nos Estados Unidos, foi iniciado, em 2011, o movimento "open file discovery" para que autoridades compartilhem com a defesa as provas obtidas durante as investigações. O estopim da demanda foi o caso Michael Morton, um gerente de supermercado no Texas condenado pelo suposto assassinato de sua esposa. Após 25 anos na prisão, ele foi libertado diante da revelação de exames de DNA que comprovavam sua inocência, conhecidas e ocultadas pelo promotor do caso desde o momento inicial.
No Brasil, desde 2009 o STF reconhece na Súmula Vinculante 14 o direito do investigado a acessar as provas já produzidas. No mesmo sentido, a Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB, art.7º, XIV)[1], a Resolução 058/2009 do CJF (art.3º §4º)[2], a Resolução 181/17 do CNMP e a Orientação 36 da Corregedoria Geral da Polícia Federal.
São inúmeros os precedentes da Suprema Corte que garantem o acesso pleno aos atos de investigação[3], sem o qual não há, inclusive, como o advogado promover qualquer ato de investigação defensiva, como autorizado pelo provimento 188/18 do Conselho Federal da OAB.
Em suma, o acesso aos autos do inquérito — e de qualquer investigação similar, como as levadas adiante pelo Ministério Público ou mesmo por Comissões Parlamentares de Inquérito — é regra, e sua violação caracteriza abuso de autoridade.
É evidente que nem todas as informações que integram a investigação podem ser compartilhadas com o investigado. A citada Súmula Vinculante 14 e o Estatuto da OAB (art.7º, §11) restringem o acesso às diligências em andamento e aos elementos de prova não documentados "quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências".
São hipóteses taxativas — e não exemplificativas, e cumulativas — não alternativas. A recusa ao acesso exige diligências em andamento, e risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências. É preciso que aquele ato específico seja prejudicado pelo acesso, e não a investigação em geral; do contrário, a autoridade poderia opor sigilo a qualquer diligência sob a justificativa de risco genérico às investigações.
Assim, por exemplo, é legítimo à autoridade não conceder acesso ao investigado a informações sobre a existência de escutas telefônicas em andamento, mas não sobre seu resultado ao final da medida. É possível ocultar dados sobre a preparação de uma de busca e apreensão, mas não sobre os bens apreendidos em decorrência da cautelar.
O simples fato da diligência estar em andamento não justifica a denegação de acesso, em especial quando tal ato não afetar a idoneidade da medida, como, por exemplo, um pedido de quebra de sigilo bancário ou fiscal ainda não respondido. A ciência pela defesa de tais requerimentos — ao contrário das escutas telefônicas e da busca e apreensão — não coloca em risco seu resultado.
Em suma, salvo diligências em andamento, cujo acesso comprometa sua realização eficaz, todos os documentos produzidos devem ser disponibilizados à defesa.
Todo esse arcabouço normativo cai por terra quando a autoridade se utiliza da estratégia de não acostar aos autos as informações obtidas durante a investigação. Como exposto, sob a justificativa de falta de tempo, estrutura ou pessoal, omite-se a juntada de depoimentos, documentos, planilhas ou diligências, armazenando-se tais elementos em mesas, gavetas ou armários, a salvo da transparência exigida por leis, súmulas e provimentos.
Trata-se de conduta ilegal, que implica responsabilidade criminal e funcional (Lei 8.906/94, art.7º, §12). Negar acesso a documentos, deixar de acostá-los aos autos, sob qualquer justificativa, para depois utilizá-los em momento conveniente, como estratégia de desmonte de teses defensivas, é atuação vedada ao agente estatal.
A astúcia processual e a deslealdade não são qualidades dos operadores da Justiça. Couture já afirmava, ao tratar da atuação do advogado: "Quanto à lealdade para com o adversário, pode ser traduzida nesta simples reflexão: se às astúcias da outra parte e às suas deslealdades respondêssemos com outras deslealdades e astúcias, a demanda já não seria uma luta de um homem honesto contra outro manhoso, mas a luta de dois desonestos." Se tais atributos não são louváveis na defesa privada, que dirá quando manejados por agentes públicos, na persecução penal.
A atuação do ente público requer transparência. A surpresa é estranha ao processo penal. A sonegação de dados e a utilização em pílulas dos elementos colhidos na investigação não são próprios de um Estado que se diz de Direito, que preza pelo equilíbrio entre acusação e defesa durante qualquer expediente público.
[1] É direito do advogado “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”.
[2] É garantido ao investigado, ao réu e a seus defensores acesso a todo material probatório já produzido na investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento, sob pena de sua frustração, situação em que a consulta de que trata o parágrafo anterior poderá ser indeferida pela autoridade judiciária competente, voltando a ser franqueada assim que concluídas as diligências determinadas
[3] HC 88190 (Relator(a): CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 29/08/2006, DJ 06-10-2006) da RCL 31.213, (Decisão Monocrática. Relator(a): MARCO AURÉLIO, julgado em 11/10/2018, Publicado em 16/10/2018) e da RCL 23.101 (Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 22/11/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-259 DIVULG 05-12-2016 PUBLIC 06-12-2016)
Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-fev-08/direito-defesa-sonegacao-provas-estado
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