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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

PUBLICIDADE OPRESSIVA


Publicidade opressiva e o criminoso desequilíbrio processual

14 de outubro de 2022, 8h00

Por Luís Guilherme Vieira e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

A grande mídia tem viés punitivista. 

Afinal, o que gera audiência e publicidade: a narrativa acusatória ou a defensiva? 

É uma pergunta retórica; porém reveladora. De qualquer forma, para efetivar o direito de defesa —  e a própria democracia — há de se debater acerca das consequências legais, não só dos que vazam informações e documentos sigilosos – dos quais são guardiões — objetivando alimentar noticiários, mas, talqualmente, jornalistas que, sabedores, de antemão, da origem criminosa da informação ou documentação, utilizam-nas para alcançar seu intento, seja ele qual for. 

Deste debate não escapa o veículo que proporciona a publicação da matéria ou seus dirigentes etc., estes se cônscios do fato.

Advogado Luís Guilherme Vieira

Por evidente que se não pretende coatar direitos e garantias constitucionais petreamente assegurados às liberdades de imprensa e de expressão. Estes estão nas bases fundantes da democracia.

Entretanto, não existem garantias e direitos sem limites. Quanto mais limite houver, mais garantias e direitos haverá. Os meios de comunicação[1] são livres para noticiar e se expressar, no entanto, sabedores, por vezes até mesmo acumpliciados com agentes públicos ou privados, de que a procedência do que lhes é repassado advém de fonte criminosa, não podem, de jeito algum, dela se abeberar para divulgar suas matérias em nome daquelas garantias e direitos. Não existem inocentes nesta seara. Até as pedras das calçadas sabem como, por que, e por quem informações e documentos sigilosos vão ter às redações dos veículos.

Quando o noticiário sobre uma investigação ou processo fica tão massacrante que a situação do acusado resta prejudicada, quando não inviabilizada, está-se frente à publicidade opressiva, que "corresponde ao que o direito norte-americano denomina pretrial ou trial by media, significando, em última análise, o julgamento antecipado da causa, realizado pela imprensa, em regra com veredicto condenatório, seguido da tentativa de impingi-lo ao Judiciário. E sob esse rolo compressor, quase sempre procuram esmagar com o opróbrio, ao lado do réu, e à semelhança do que ocorria durante as trevas da ditadura militar, a pessoa de seu advogado, pelo crime de haver assumido o patrocínio de uma causa [dita] indigna" [2].

"Na atualidade, a imprensa, em vez do que fazia outrora, quando em cima do fato delituoso conjeturava sobre as provas e a ação dos advogados, trata de se colocar como operadora de todo o processo judicial (da investigação à decisão)" [3], ensejando a maior sequela da obsessão punitiva: a transferência do julgamento para outro "Poder": a imprensa [4], "estabelecendo o que Mazzuca intitula 'conflito di poteri', com a maciça 'penetrazione, nel mondo dellbiblioa giustizia, della stampa e degli altri mezzi d’informazione'" [5].

Sucede que, consoante anota Zuenir Ventura, o "poder da imprensa é arbitrário e seus danos irreparáveis. O desmentido nunca tem a força do mentido. Na Justiça, há pelo menos um código para dizer o que é crime; na imprensa não há norma nem para estabelecer o que é notícia, quanto mais ética. Mas a diferença é que no julgamento da imprensa as pessoas são culpadas até a prova em contrário" [6].

O conceito sobre a publicidade opressiva foi trazido para o Brasil — da Inglaterra —, em 1965, por Nelson Hungria, que o incorporou ao seu anteprojeto de Código Penal. Naquele país, entretanto — assim como em França e nos Estados Unidos —, há bem mais restrições ao uso abusivo de informações processuais pela imprensa. 

Em França, jornalistas publicizam o acontecimento, todavia lhes é proibido citar os nomes dos envolvidos ou publicarem suas fotos e as do julgamento. Isto também vale para os EUA. As sessões da Suprema Corte são ilustradas por desenhos.

Já no Brasil, os julgamentos do Supremo Tribunal Federal desde há muito são televisionados, pela TV Justiça, ao vivo e em cores, o que insufla os egos, tornam as decisões jurídicas mais políticas [7] e "quilométricas" [8]

De mais a mais, diante da pandemia da Covid-19, o Judiciário brasileiro passou a também transmitir, igualmente ao vivo e em cores, salvo honrosas exceções, suas sessões por intermédio do canal do YouTube, ou seja, a Justiça no Brasil, hoje, é um "programa televisivo".

O tempo mostrou, porém, que os resultados dessa prática não têm a eficácia que se esperava e se voltaram, por outro lado, contra o próprio STF, a ponto de ministros não poderem caminhar em paz pelo país e pelo mundo sem serem admoestados por cidadãos que se sentem vilipendiados por decisões que eles intuem ser contra a Constituição da República e as leis, ainda que não sejam profissionais do Direito.

A publicidade opressiva é, por evidente, maior no Brasil, diversamente do que nas nações com a democracia mais oxigenada. Em nossa terra, a imprensa não se preocupa muito com os impactos que pode causar e pratica "arbitrariedades e danos de difícil e até mesmo impossível reparação, a título de salvaguardar pseudo-interesses sociais" [9].

Não há ética nesse não-jornalismo porque ele, instrumentalizado por razões não republicanas, em certas ocasiões com reportagens montadas, em conformidade com suas conveniências [10] (ou por "conveniências" de outrem), intoxicam o noticiário para, prejulgando a pessoa humana cujos atos estão em julgamento, adube terreno capaz de levá-lo à condenação, sem que o Judiciário tenha proferido sentença transitada em julgado.

Há 20 anos, por exemplo, repórteres de jornal de larga circulação no Rio de Janeiro, na suposição de estarem investidos do poder da polícia, "foram desmascarados por colegas de profissão: haviam publicado matéria forjada em que mostravam um casal, dito evangélico e confessadamente miserável, simulando o consumo de cocaína em cima de uma bíblia e na presença do filho de oito anos. Segundo testemunhas, o pó seria 'maisena' e o casal teria sido pago para aquele fim" [11].

Outro fato antigo e que entrou para a história do mau jornalismo foi o da Escola Base, em São Paulo. Depois de duas mães acusarem os professores proprietários da instituição de abusarem sexualmente de seus filhos, crianças de quatro anos de idade, foi aberto inquérito policial e a imprensa passou a divulgar as imputações com manchetes sensacionalistas, o que incitou a revolta da população. Houve saques ao colégio, depredação das instalações, ameaças de morte contra os investigados. No entanto, o inquérito foi arquivado por falta de provas, e a escola fechou as portas [12]. "O tempo se passou, a justiça cível condenou, ainda que tardiamente, o estado de São Paulo a pagar indenização aos vitimados. Seja como for, ao que se noticia, a vida dos donos do extinto colégio passou a ser, parafraseando Vargas Llosa, uma expiação" [13].

Com o correr dos anos, atores da persecução penal perceberam como poderiam usar esta espúria influência a seu favor. A grande virada ocorreu nas investigações sobre as fraudes cometidas no extinto Banco Nacional [14]. Quando o Ministério Público Federal ofereceu a denúncia, entregou um press release aos jornalistas — só aos jornalistas. Sucede que, somente no momento em que a notícia era transmitida pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, os advogados, que se encontravam desde cedo nos corredores da Justiça Federal-RJ, tiveram acesso à petição acusatória. Precisa falar mais?

Pois bem, esse método foi elevado à enésima potência na chamada operação "lava jato"; antes dela, timidamente no processo do dizimado Banestado (PR), ambos conduzidos pela "República de Curitiba". Em toda nova operação judicial-ministerial-policial ostensiva — geralmente, numa sexta-feira, para inviabilizar o trabalho da defesa no fim de semana —, as equipes de jornalistas já estavam às 6h nos locais de cumprimento dos mandados, em alguns episódios até antes dos policiais chegarem.

Os danos e as vítimas são incontáveis. Por causa de uma prisão indevida e explorada na imprensa, Luiz Carlos Cancellier, então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, suicidou-se. O jornalista Mario Rosa acordou, em certa manhã de 2016, com a Polícia Federal e câmeras à sua porta. As cautelares alcançaram mais de dez empresas com as quais Rosa tinha negócios, mas não deram em nada. "Meu casamento acabou e perdi muitos dos meus contratos, tudo sem sequer ter sido julgado" [15]. A vida de ex-diretor de uma empreiteira foi arruinada por erro da "força-tarefa da lava jato" e do ex-juiz Sergio Moro. Seu encarceramento indevido fez com que perdesse o emprego, sua mulher o abandonasse e ele fosse privado de conviver com sua filha pequena por quase seis meses. Findo o processo, ele foi absolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região [16]. Em situações em que tais, bem como naqueloutros idênticos e não descritos por falta de espaço, as marcas n'alma nunca mais serão cicatrizada nas pessoas, seus familiares e amigos. A animalidade não se esvai com o passar dos anos.

Em 1999, em anteprojeto do Código Penal "apresentado ao Congresso, e posteriormente retirado pelo ministro da Justiça José Carlos Dias [governo Fernando Henrique Cardoso], constava tipo penal idêntico [publicidade opressiva], tendo sucedido que, antes de seu envio, o ministro da Justiça Renan Calheiros [governo Fernando Henrique Cardoso] vetou o referido artigo de lei, sob a pífia fundamentação de que se poderia, como de fato não se pode, censurar os órgãos de imprensa, amordaçando-os" [17].

Referido projeto previa pena de prisão de um a três anos para quem tentasse constranger autoridades, testemunhas ou alguma das partes de ação judicial antes que a decisão tivesse transitado em julgado [18]. Entretanto, a tipificação foi retirada da proposta — que não chegou a ser colocada em votação [19]. Mas este não representou a última tentativa de se criminalizar tal conduta; outros projetos legislativos, com final fecho, ou já tramitaram ou tramitam pelo Congresso.

Lamenta-se a falta da devida atenção que lhes são dadas pelos parlamentares ao longo das décadas. Apesar de se reconhecer que o Direito Penal só deva ser usado em ultima ratio, o crime de publicidade opressiva [20], diante dos nefastos malefícios que causam à sociedade civil, por certo fosse uma daquelas raríssimas tipificações que já deveriam estar encartadas em nosso ordenamento jurídico. A imprensa, enfim, tem de retomar a discussão sobre o conceito de ética, garantindo-se, por óbvio, a sua liberdade.

Em suma, a publicidade opressiva, principalmente quando arquitetada pela polícia, pelo Ministério Público e pelo Judiciário, com ou sem a colaboração de agentes públicos e pessoas da sociedade civil, põe os acusados em covarde e criminoso desequilíbrio processual penal. Para nivelá-lo, tem de se considerar nulas as provas derivadas de informações vazadas ilegalmente aos veículos de imprensa.

–=-=-==

 [1] Doravante será utilizado tão somente o termo "imprensa" para referir todos os "meios de comunicação", inclusive os produzidos por meio de plataformas digitais, como as comunitárias, por exemplo, conforme tem sido a praxe.

[2] MORAES FILHO, Antonio Evaristo de. Prefácio. In: BARANDIER, Antonio Carlos. As Garantias Fundamentais e a Prova (e outros temas). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1997, p. 3.

[3] VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais. O fenômeno opressivo da mídia: uma abordagem acerca das provas ilícitas. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 48.

[4] VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais..., cit., p. 48.

[5] TITTA, Mazzuca. Anatomia dell'Errore Giudiziario. Latina: Bucalo, 1978, p. 212.

[6] Ventura, Zuenir. Apud: BARANDIER, Antonio Carlos. As Garantias Fundamentais..., cit., p. 3.

[7] LOPES, Felipe de Mendonça. Television and Judicial Behavior: Lessons from the Brazilian Supreme Court. Economic Analysis of Law Review, v. 9, nº 1, pp. 41-71, Jan-Abr, 2018.

[8] BEZARRA, Elton. Acórdãos do STF aumentam de tamanho após TV Justiça. Consultor Jurídico, 20/5/2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-mai-20/acordaos-stf-adis-aumentam-producao-cai-tv-justica. Acesso em: 6/10/2022.

[9] VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais..., cit., p. 48.

[10] VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais..., cit., p. 47.

[11] VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais..., p. 49.

[12] CRUZ, Maria Teresa. Livro-reportagem esmiúça o 'Caso Escola Base', um dos maiores erros da imprensa no Brasil. Ponte, 5/4/2017. Disponível em: https://ponte.org/livro-reportagem-esmiuca-o-caso-escola-base-um-dos-maiores-erros-da-imprensa-no-brasil/. Acesso em: 6/10/2022.

[13] VIEIRA, Luís Guilherme. A lei não amordaça. Migalhas, informativo nº 583, 16/12/2002. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/amanhecidas/850/migalhas-n--583. Acesso em: 12/10/2022.

[14] Entenda o caso Nacional. O Globo, 3/7/2013. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/entenda-caso-nacional-9809140. Acesso em: 6/10/2022.

[15] MARTINES, Fernando. Suicídio de reitor da UFSC mostra face da cruzada cega "contra a corrupção". Consultor Jurídico, Trial by media, 2/10/2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-out-02/morte-reitor-ufsc-mostra-face-cruzada-corrupcao. Acesso em: 6/10/2022.

[16] Prisão indevida na "lava jato" custa casamento, emprego e reputação. Consultor Jurídico, 27/11/2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-27/prisao-indevida-lava-jato-custa-casamento-emprego-reputacao. Acesso em: 6/10/2022.

[17] VIEIRA, Luís Guilherme. A lei não amordaça. Migalhas, cit.

[18] Projeto cria crime de 'publicidade opressiva'. Folha de São Paulo, 9/4/1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff09049924.htm. Acesso em: 6/10/2022.

[19] FHC recebe anteprojeto do Código sem 'publicidade opressiva'. Diário do Grande ABC, 24/5/1999. Disponível em: https://www.dgabc.com.br/Noticia/313611/fhc-recebe-anteprojeto-do-codigo-sem-publicidade-opressiva-. Acesso em: 6/10/2022.

[20] Em algumas hipóteses é possível pensar inclusive em Lawfare.

Luís Guilherme Vieira é advogado criminal, cofundador e conselheiro dos Conselhos Deliberativos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro (Sacerj), membro da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ex-membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e ex-secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu — como também na OAB-RJ — a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (aposentado), professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professor do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade Damas (Recife), professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel), especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR), mestre (UFPR), doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza"), presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória, advogado e membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

Revista Consultor Jurídico, 14 de outubro de 2022, 8h00


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