As doenças do cérebro dependem de três fatores: genes, idade e estilo de vida. Há cada vez mais evidência sobre o papel da alimentação na luta contra a demência
Sara Sá
Jornalista
“Inúteis”. Foi este o adjetivo que se colou às duas mais promissoras moléculas testadas para o tratamento da doença de Alzheimer. Ao fim de décadas de estudo e de uma grande expectativa, os resultados finais de dois grandes ensaios clínicos, já em fase III, foram inequívocos: as substâncias que tinham como alvo as placas da proteína beta amiloide (associadas à doença) eram incapazes de travar os sinais de demência. Enquanto não se encontra uma nova via que permita travar a evolução desta e de outras patologias semelhantes, que ganham cada vez mais relevância numa sociedade a envelhecer, podemos tentar evitar o seu aparecimento através da alimentação.
É sabido que comer fruta e legumes ajuda a prevenir o aparecimento de demência. Esta conclusão surgiu a partir de estudos observacionais, ao verificar-se que pessoas com uma alimentação mais saudável se mantinham operacionais até mais tarde. Nos últimos anos, os cientistas têm-se dedicado a descortinar quais os compostos destes alimentos que chegam ao cérebro, protegendo-o. “Há já algum tempo que existem dados sobre a utilização de pequenos frutos e o seu efeito benéfico em termos cognitivos. No entanto, as moléculas presentes nesses alimentos e que são responsáveis pelos efeitos ainda permanecem uma incógnita”, observa a investigadora do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC), Cláudia Nunes Santos.
A partir dos 40 anos, o cérebro começa a perder volume. A par do envelhecimento normal, vão surgindo patologias crónicas e progressivas – as doenças neurodegenerativas –, que resultam na falência do sistema nervoso, comprometendo o movimento e a função mental. A doença de Alzheimer é apenas a mais famosa destas patologias. Mas há outras como o Parkinson, a doença de Huntington, a esclerose lateral amiotrófica ou a epilepsia, que afetam distintas partes do cérebro. No entanto, há algo em comum a boa parte destes problemas, a inflamação, que tem um papel crucial na progressão da doença.
Num artigo publicado na revista Journal of Agricultural and Food Chemistry, Cláudia Nunes Santos, que recebeu um financiamento do European Research Council para estudar os compostos protetores, desvenda já alguns dos pormenores. “Durante muito tempo, a hipótese recaía unicamente numa classe de compostos chamados polifenois [substâncias encontradas nas plantas] que são bastante abundantes em determinados frutos. Nos últimos anos e graças a vários estudos de metabolismo, sabe-se agora que estes flavonoides são metabolizados [transformados] aquando do processo de ingestão. Esta transformação ocorre ao longo do trato gastrointestinal, sobretudo pela ação dos micro-organismos que aí vivem, os quais designamos de microbiota, e também através de reações metabólicas levadas a cabo pelo fígado”, avança a cientista.
Isto significa que o efeito dos alimentos protetores também dependerá destes organismos – que têm vindo a ganhar cada vez mais protagonismo, em praticamente todos os problemas de saúde. Depois de se transformarem em compostos de menor dimensão, torna-se mais fácil chegarem ao cérebro, em particular à microglia, as células de defesa do sistema nervoso central que, dependendo do estímulo, podem proteger de, ou promover, danos nos neurónios.
Uma questão de dose
“Há cada vez mais evidência de que a adesão à dieta mediterrânica, rica em polifenois, está associada a uma diminuição dos marcadores de inflamação”, escreve a autora no artigo de revisão, que abarca estudos feitos nos últimos dez anos. Em concreto, referem-se dois trabalhos em que se avaliou o efeito do consumo de frutos vermelhos em mulheres de idade avançada. Ficou demonstrado o sucesso na redução do declínio cognitivo, pelo que a suplementação com estes alimentos melhorou a irrigação cerebral, o cumprimento de tarefas e a função cognitiva em idosos. Graças à sua grande concentração de flavonoides, um dos tipos de polifenois, a investigadora está especialmente interessada no efeito dos frutos vermelhos, como framboesas, amoras e mirtilos. Outros grupos têm estudado o efeito anti-inflamatório destes compostos em doenças como a diabetes e os problemas cardiovasculares e gastrointestinais.
Apesar de serem claros os benefícios, ainda não foi possível determinar a dose adequada. “As quantidades a ingerir para atingir estes efeitos constituem um tópico um pouco mais complexo”, admite a investigadora. Até porque, como já vimos, o processo depende da composição da flora intestinal, que é única e exclusiva de cada indivíduo. A título de exemplo, a cientista refere um estudo de intervenção feito no laboratório em que após a ingestão de um batido de 500 ml de uma mistura de amoras, framboesas, mirtilos, medronhos e camarinhas, se registou a presença dos compostos no sangue, “em concentrações bastante relevantes.” A seguir, os investigadores testaram estes compostos, nas mesmas concentrações, em células neuronais e verificaram que havia proteção dos neurónios e diminuição do processo inflamatório das células imunitárias. No entanto, a permanência dos produtos no sangue é breve. “O ideal seria a ingestão diária de alimentos ricos nestes compostos, como a fruta, os legumes ou o chá.”
O projeto irá continuar, sendo que o próximo objetivo do grupo é avaliar o impacto destes compostos na doença de Parkinson. Noutro trabalho, da Universidade Estadual do Arizona, mostrou-se que um nutriente presente nos ovos, no fígado de galinha e nos cereais integrais, denominado colina, é capaz de prevenir o aparecimento da doença de Alzheimer, atuando em duas vias: ao bloquear a formação das placas de beta amiloide e ao regular a atividade da microglia. Num ensaio feito em ratinhos fêmea – a doença é mais comum nas mulheres – verificou-se que a suplementação com colina, ao longo da vida, em animais geneticamente modificados para sofrerem da doença, tinha efeitos positivos ao nível da memória espacial. O impacto positivo também se registara em animais cujas mães tinham recebido o suplemento durante a gravidez.
As doenças do cérebro são um problema complexo e difícil de combater, até porque dependem de diversos fatores como a idade, os genes que herdamos e o estilo de vida, em particular a alimentação, a prática de exercício físico e as interações sociais. Se quanto aos dois primeiros nada há a fazer, torna-se cada vez mais evidente que uma alimentação adequada pode ajudar a manter a saúde da nossa cabeça.
Sara Sá
Jornalista
“Inúteis”. Foi este o adjetivo que se colou às duas mais promissoras moléculas testadas para o tratamento da doença de Alzheimer. Ao fim de décadas de estudo e de uma grande expectativa, os resultados finais de dois grandes ensaios clínicos, já em fase III, foram inequívocos: as substâncias que tinham como alvo as placas da proteína beta amiloide (associadas à doença) eram incapazes de travar os sinais de demência. Enquanto não se encontra uma nova via que permita travar a evolução desta e de outras patologias semelhantes, que ganham cada vez mais relevância numa sociedade a envelhecer, podemos tentar evitar o seu aparecimento através da alimentação.
É sabido que comer fruta e legumes ajuda a prevenir o aparecimento de demência. Esta conclusão surgiu a partir de estudos observacionais, ao verificar-se que pessoas com uma alimentação mais saudável se mantinham operacionais até mais tarde. Nos últimos anos, os cientistas têm-se dedicado a descortinar quais os compostos destes alimentos que chegam ao cérebro, protegendo-o. “Há já algum tempo que existem dados sobre a utilização de pequenos frutos e o seu efeito benéfico em termos cognitivos. No entanto, as moléculas presentes nesses alimentos e que são responsáveis pelos efeitos ainda permanecem uma incógnita”, observa a investigadora do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC), Cláudia Nunes Santos.
A partir dos 40 anos, o cérebro começa a perder volume. A par do envelhecimento normal, vão surgindo patologias crónicas e progressivas – as doenças neurodegenerativas –, que resultam na falência do sistema nervoso, comprometendo o movimento e a função mental. A doença de Alzheimer é apenas a mais famosa destas patologias. Mas há outras como o Parkinson, a doença de Huntington, a esclerose lateral amiotrófica ou a epilepsia, que afetam distintas partes do cérebro. No entanto, há algo em comum a boa parte destes problemas, a inflamação, que tem um papel crucial na progressão da doença.
Num artigo publicado na revista Journal of Agricultural and Food Chemistry, Cláudia Nunes Santos, que recebeu um financiamento do European Research Council para estudar os compostos protetores, desvenda já alguns dos pormenores. “Durante muito tempo, a hipótese recaía unicamente numa classe de compostos chamados polifenois [substâncias encontradas nas plantas] que são bastante abundantes em determinados frutos. Nos últimos anos e graças a vários estudos de metabolismo, sabe-se agora que estes flavonoides são metabolizados [transformados] aquando do processo de ingestão. Esta transformação ocorre ao longo do trato gastrointestinal, sobretudo pela ação dos micro-organismos que aí vivem, os quais designamos de microbiota, e também através de reações metabólicas levadas a cabo pelo fígado”, avança a cientista.
Isto significa que o efeito dos alimentos protetores também dependerá destes organismos – que têm vindo a ganhar cada vez mais protagonismo, em praticamente todos os problemas de saúde. Depois de se transformarem em compostos de menor dimensão, torna-se mais fácil chegarem ao cérebro, em particular à microglia, as células de defesa do sistema nervoso central que, dependendo do estímulo, podem proteger de, ou promover, danos nos neurónios.
Uma questão de dose
“Há cada vez mais evidência de que a adesão à dieta mediterrânica, rica em polifenois, está associada a uma diminuição dos marcadores de inflamação”, escreve a autora no artigo de revisão, que abarca estudos feitos nos últimos dez anos. Em concreto, referem-se dois trabalhos em que se avaliou o efeito do consumo de frutos vermelhos em mulheres de idade avançada. Ficou demonstrado o sucesso na redução do declínio cognitivo, pelo que a suplementação com estes alimentos melhorou a irrigação cerebral, o cumprimento de tarefas e a função cognitiva em idosos. Graças à sua grande concentração de flavonoides, um dos tipos de polifenois, a investigadora está especialmente interessada no efeito dos frutos vermelhos, como framboesas, amoras e mirtilos. Outros grupos têm estudado o efeito anti-inflamatório destes compostos em doenças como a diabetes e os problemas cardiovasculares e gastrointestinais.
Apesar de serem claros os benefícios, ainda não foi possível determinar a dose adequada. “As quantidades a ingerir para atingir estes efeitos constituem um tópico um pouco mais complexo”, admite a investigadora. Até porque, como já vimos, o processo depende da composição da flora intestinal, que é única e exclusiva de cada indivíduo. A título de exemplo, a cientista refere um estudo de intervenção feito no laboratório em que após a ingestão de um batido de 500 ml de uma mistura de amoras, framboesas, mirtilos, medronhos e camarinhas, se registou a presença dos compostos no sangue, “em concentrações bastante relevantes.” A seguir, os investigadores testaram estes compostos, nas mesmas concentrações, em células neuronais e verificaram que havia proteção dos neurónios e diminuição do processo inflamatório das células imunitárias. No entanto, a permanência dos produtos no sangue é breve. “O ideal seria a ingestão diária de alimentos ricos nestes compostos, como a fruta, os legumes ou o chá.”
O projeto irá continuar, sendo que o próximo objetivo do grupo é avaliar o impacto destes compostos na doença de Parkinson. Noutro trabalho, da Universidade Estadual do Arizona, mostrou-se que um nutriente presente nos ovos, no fígado de galinha e nos cereais integrais, denominado colina, é capaz de prevenir o aparecimento da doença de Alzheimer, atuando em duas vias: ao bloquear a formação das placas de beta amiloide e ao regular a atividade da microglia. Num ensaio feito em ratinhos fêmea – a doença é mais comum nas mulheres – verificou-se que a suplementação com colina, ao longo da vida, em animais geneticamente modificados para sofrerem da doença, tinha efeitos positivos ao nível da memória espacial. O impacto positivo também se registara em animais cujas mães tinham recebido o suplemento durante a gravidez.
As doenças do cérebro são um problema complexo e difícil de combater, até porque dependem de diversos fatores como a idade, os genes que herdamos e o estilo de vida, em particular a alimentação, a prática de exercício físico e as interações sociais. Se quanto aos dois primeiros nada há a fazer, torna-se cada vez mais evidente que uma alimentação adequada pode ajudar a manter a saúde da nossa cabeça.
Fonte: http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2019-11-09-Demencia-como-escolher-os-alimentos-certos-pode-ajudar-a-retardar-a-destruicao-dos-neuronios
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