O indígena, o operário e o poder militar-religioso
As fragilidades democráticas de Bolívia e Brasil devem ser resolvidas pela via democrática
Debora Diniz|Giselle Carino
12 Nov 2019 - 18:09 BRTApoiadora de Evo Morales. AIZAR RALDES (AFP)
As democracias latino-americanas são frágeis e suas crises profundas. A Organização dos Estados Americanos não garante a lisura do processo eleitoral que levou Evo Morales à reeleição. O processo judicial da Lava Jato que terminou na prisão do ex-presidente Lula se mostrou repleto de irregularidades. Morales foi pressionado a renunciar e conseguiu asilo político no México. Lula, após 580 dias na prisão, planeja uma caravana de esperança pelo país. Nos dois países se fala em polarização da política.
Entre os dois líderes políticos há mais do que proximidades ideológicas: Morales foi o primeiro presidente aymara de uma nação majoritariamente indígena; Lula foi o primeiro presidente operário de um país de trabalhadores. Bolívia e Brasil estão entre os países mais desiguais e racistas da América Latina —buscam apagar a história da colonização e seus efeitos, imaginando para si próprios um país em que o capital estrangeiro pode trazer desenvolvimento e prosperidade. Morales e Lula provocaram os imaginários de branquitude e elite entranhados em nossos países pela colonização.
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Relembrar o rosto indígena de Morales e as mãos operárias de Lula não significa ignorar as misérias do populismo ou do clientelismo das políticas latino-americanas. Menos ainda ignorar que há fortes evidências de corrupção nos partidos que sustentaram Morales e Lula no poder. Porém, suas origens de raça e classe importam para compreender como as frágeis democracias responderam aos equívocos de governança de seus líderes de esquerda com cara de povo: não por coincidência, os dois países convocaram os poderes religioso e militar como alternativa, seja por eleições democráticas ou por tomada bruta do poder.
No Brasil, Jair Bolsonaro é um ex-militar, rodeado de generais da ativa, cujo filho anuncia possibilidades de medidas tirânicas se as ruas se rebelarem como ocorreu no Chile. Ao seu lado, estão pastores evangélicos no comando das políticas de direitos humanos para as mulheres e povos indígenas. A ordem não é governar o país à luz da Constituição, mas doutrinar, como faziam os evangelizadores do passado —ou pela fé, ou pela força. Tão parecidos aos evangelizadores do passado, a política se instaura pela arma e pela mentira. Se antes era a ameaça do inferno, agora é a mentira da polarização: “Eles querem destruir nosso país”. Para os bolsonaristas, o “eles” são todos aqueles que defendem a igualdade ou a justiça social.
Narrativa semelhante atravessa a Bolívia neste momento. Um tipo marginal à política, como sempre foi Bolsonaro no Brasil, emerge como alternativa a Morales. Luis Fernando Camacho é um representante da direita radical, com origens na cidade fronteiriça de Santa Cruz, terra de empresários e do capital global. Camacho não escondeu suas raízes na branquitude católica ao alcançar o palácio do Governo no domingo: depositou uma Bíblia, falou em nome da fé e pediu que Deus abençoasse a Bolívia. Diferentemente do Brasil, a presença de religiosos no poder político é ainda estranha na Bolívia, porém uma ameaça que se concretiza com a estratégica aliança militar para a acusação de fraude contra Morales.
As fragilidades democráticas dos países latino-americanos devem ser resolvidas pela via democrática. Para isso, é preciso promover a cultura política necessária para entender que oposição política não é o mesmo que polarização: a polarização é uma estratégia da ultradireita para impedir o confronto democrático das diferenças. Se houve corrupção nos governos de Lula ou Morales, há instituições para investigá-las. Se houve fraude na eleição de Morales, sua renúncia deve ser aceita e novas eleições com observadores internacionais convocadas. A rápida alternativa de retorno ao passado militar ditatorial é um resquício da cultura colonialista que jamais abandonou nossos países. É o patriarca que emerge com voz de salvador com arma na cintura e livro sagrado entre os braços para colonizar os selvagens que reclamam por direitos. E que não suporta a oposição ao poder que se quer instaurar como tirânico.
Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown. Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.
As fragilidades democráticas de Bolívia e Brasil devem ser resolvidas pela via democrática
Debora Diniz|Giselle Carino
12 Nov 2019 - 18:09 BRTApoiadora de Evo Morales. AIZAR RALDES (AFP)
As democracias latino-americanas são frágeis e suas crises profundas. A Organização dos Estados Americanos não garante a lisura do processo eleitoral que levou Evo Morales à reeleição. O processo judicial da Lava Jato que terminou na prisão do ex-presidente Lula se mostrou repleto de irregularidades. Morales foi pressionado a renunciar e conseguiu asilo político no México. Lula, após 580 dias na prisão, planeja uma caravana de esperança pelo país. Nos dois países se fala em polarização da política.
Entre os dois líderes políticos há mais do que proximidades ideológicas: Morales foi o primeiro presidente aymara de uma nação majoritariamente indígena; Lula foi o primeiro presidente operário de um país de trabalhadores. Bolívia e Brasil estão entre os países mais desiguais e racistas da América Latina —buscam apagar a história da colonização e seus efeitos, imaginando para si próprios um país em que o capital estrangeiro pode trazer desenvolvimento e prosperidade. Morales e Lula provocaram os imaginários de branquitude e elite entranhados em nossos países pela colonização.
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Relembrar o rosto indígena de Morales e as mãos operárias de Lula não significa ignorar as misérias do populismo ou do clientelismo das políticas latino-americanas. Menos ainda ignorar que há fortes evidências de corrupção nos partidos que sustentaram Morales e Lula no poder. Porém, suas origens de raça e classe importam para compreender como as frágeis democracias responderam aos equívocos de governança de seus líderes de esquerda com cara de povo: não por coincidência, os dois países convocaram os poderes religioso e militar como alternativa, seja por eleições democráticas ou por tomada bruta do poder.
No Brasil, Jair Bolsonaro é um ex-militar, rodeado de generais da ativa, cujo filho anuncia possibilidades de medidas tirânicas se as ruas se rebelarem como ocorreu no Chile. Ao seu lado, estão pastores evangélicos no comando das políticas de direitos humanos para as mulheres e povos indígenas. A ordem não é governar o país à luz da Constituição, mas doutrinar, como faziam os evangelizadores do passado —ou pela fé, ou pela força. Tão parecidos aos evangelizadores do passado, a política se instaura pela arma e pela mentira. Se antes era a ameaça do inferno, agora é a mentira da polarização: “Eles querem destruir nosso país”. Para os bolsonaristas, o “eles” são todos aqueles que defendem a igualdade ou a justiça social.
Narrativa semelhante atravessa a Bolívia neste momento. Um tipo marginal à política, como sempre foi Bolsonaro no Brasil, emerge como alternativa a Morales. Luis Fernando Camacho é um representante da direita radical, com origens na cidade fronteiriça de Santa Cruz, terra de empresários e do capital global. Camacho não escondeu suas raízes na branquitude católica ao alcançar o palácio do Governo no domingo: depositou uma Bíblia, falou em nome da fé e pediu que Deus abençoasse a Bolívia. Diferentemente do Brasil, a presença de religiosos no poder político é ainda estranha na Bolívia, porém uma ameaça que se concretiza com a estratégica aliança militar para a acusação de fraude contra Morales.
As fragilidades democráticas dos países latino-americanos devem ser resolvidas pela via democrática. Para isso, é preciso promover a cultura política necessária para entender que oposição política não é o mesmo que polarização: a polarização é uma estratégia da ultradireita para impedir o confronto democrático das diferenças. Se houve corrupção nos governos de Lula ou Morales, há instituições para investigá-las. Se houve fraude na eleição de Morales, sua renúncia deve ser aceita e novas eleições com observadores internacionais convocadas. A rápida alternativa de retorno ao passado militar ditatorial é um resquício da cultura colonialista que jamais abandonou nossos países. É o patriarca que emerge com voz de salvador com arma na cintura e livro sagrado entre os braços para colonizar os selvagens que reclamam por direitos. E que não suporta a oposição ao poder que se quer instaurar como tirânico.
Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown. Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.
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