Deixar de ter filhos para responder à sobrepopulação do planeta e à crise climática é uma tendência que conquista adeptos e coexiste com a de conceber um projeto de vida sem parentalidade
Clara Soares
Jornalista
À primeira vista parece uma moda com os dias contados. Um capricho, um gesto de afirmação de alguns jovens, à boleia da ativista grevista sueca Greta Thunberg, rosto da luta pelo combate às alterações climáticas. Relutam em trazer mais gente ao mundo, sendo nós, humanos, já tantos e tão sombrio o prognóstico da vida na Terra nos próximos anos. Não admira, pois, que uma imensa minoria em idade fértil comece a ganhar terreno e, embora zelosa da sua privacidade, não tenha complexos em admitir as suas preferências e escolhas conjuntas. Ana Rita Vicente, 33 anos, inclui-se neste grupo: “Achei que um dia ia querer, mas não, a minha preferência é partilhada com a do meu companheiro, três anos mais velho, e decidimos não ser pais há um ano.” Ele submeteu-se a uma vasectomia e o casal não teve problemas de aceitação no seu núcleo próximo, embora a profissional de saúde reconheça que “ainda se vê o ter filhos como parte de um projeto de vida completo”.
Num país envelhecido como o nosso, ser saudável e ter relacionamento estável para procriar é um paradigma que se sobrepõe a considerações ambientais ou outras, como a sobrepopulação. No círculo de amigos do casal não há militantes nem ativistas, “antes pessoas conscientes” de que a gravidez e a parentalidade não são um mar de rosas e do imperativo de respeitar as opções, próprias e dos outros, sem por em causa aquilo que os une. Tal significou, por exemplo, aceitar “o afastamento temporário daqueles que foram pais durante os primeiros anos de vida dos bebés”.
Alexia Fernandes, realizadora e argumentista
D.R.
Minimalismo reprodutivo
O berço dos chamados movimentos antinatalistas por imperativos ideológicos - evitar ser mais um a contribuir para o aumento demográfico global, por exemplo - parece ter mais expressão no Reino Unido. Em entrevista à Vogue (edição editada pela mulher, Meghan, a convite da revista), o Príncipe Harry fez saber que o casal não ia ultrapassar o teto máximo dos dois filhos em abono do planeta e o movimento global #BirthStrike, que caminha para o meio milhão de membros, liderado pela música e ativista britânica Blythe Pepino, defende o lema “sem filhos” no atual cenário, de crise ambiental.
Embora a causa não tenha um rosto no universo português, existem simpatizantes. É o caso da realizadora e argumentista Alexia Fernandes, 29 anos, que cresceu entre França e Portugal e vive em Berlim. Ela aderiu ao grupo, no Facebook, numa fase de “dúvida e reflexão”, em que sentiu vontade de conhecer a experiência de outras pessoas da sua geração. “Com pouco mais de uma década para nos salvarmos a nós e outras criaturas vivas do planeta, questiono-me se estou a ser responsável ou egoísta ao continuar o modelo familiar e reprodutivo dos meus pais e avós”, revela Alexia.
Assim nasceu o argumento da curta metragem Mon haricot à moi (O meu feijão): “Manon descobre estar grávida no momento em que percebe a dimensão sinistra em que a sua descendência terá de (sobre)viver”. A intenção foi “criar um espaço de troca e união para refletir sobre o papel das mulheres num futuro tão instável e explorar os sentimentos mistos que as acompanham”.
Corinne Maier, autora do best seller No KID 40 Razões Para Não Ter Filhos
D.R.
No outro lado do Atlântico, a jovem performer Miley Cyrus, que caminha para os 30 anos de idade, deu um toque de dramatismo à questão, ao passar a mensagem à imprensa de que os millennials não queriam perpetuar a espécie porque a Terra “pode não aguentar”. A Terra? A espécie? Por razões políticas, morais ou, até, por medo existencial, o debate volta a fazer-se, uma década depois da escritora suíça Corinne Maier, mãe por duas vezes (os filhos têm hoje 23 e 25 anos), ter dado que falar por causa do controverso livro No KID 40 Razões Para Não Ter Filhos (Guerra & Paz), onde referia que a obsessão social em torno das crianças estava a atingir dimensões perversas.
Contactada pela VISÃO, Corinne começa por dizer que “um novo membro na família envolve aumento do consumo, casa, carro, escola privada… e se queremos ter futuro temos de consumir e de reproduzir menos.” No panorama atual, ter descendência “continua a ser um símbolo de prosperidade e uma forma de competir com amigos e vizinhos”, mas em face da crise climática “revela-se um ato de egoísmo em relação a outros e à criança, que terá de enfrentar as consequências dessa crise”.
O êxodo das cegonhas
Aquele que nunca pensou nas consequências da pegada ecológica no futuro do planeta que atire a primeira fralda (idealmente, de material biodegradável). Até ao século passado, pesava sobre as mulheres a obrigação tácita de cumprir a função para a qual a biologia as programou. Hoje, acrescente-se a consciência ecológica e uma maior complexidade. Imagine-se um jovem casal a avaliar riscos e cenários futuros, com a prole a pedir-lhes contas: “Porque me fizeram vir a este mundo?” Onde vão reciclar a “culpa” por “condenarem” as gerações por nascer às agruras de um lugar inabitável? Será ético pedir a uma família com dois filhos que não tenha mais um ou olhar de lado as famílias numerosas?
Segundo as previsões das Nações Unidas, seremos mais de dez mil milhões no planeta em 2050. Um estudo divulgado em 2014 na revista oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos explorou vários cenários e concluiu que a redução da natalidade, as catástrofes e as doenças não seriam suficientes para diminuir a população global até 2100.
Partindo dos dados e projeções das Nações Unidas e do Pew Research Center, o site inglês Carbon Brief estimou que limitar o aquecimento global a 1,5 graus até esse ano pressupõe uma redução drástica das emissões de CO2. Os cálculos realizados para uma esperança de vida de 85 anos sugerem que os Baby Boomers (sobretudo os nascidos entre 1940 e 50) são os “vilões” da história, com 333 toneladas de emissões. A cumprir-se o Acordo de Paris, uma criança nascida em 2017 não poderá exceder as 43 toneladas na sua pegada ecológica, oito vezes inferior à dos avós.
Curiosamente, os maiores poluidores são os Estados Unidos e a Europa, com taxas de natalidade inferiores à média do crescimento demográfico global (2,5 filhos ao ano), com 1,9 e 1,6 respetivamente. Com que moral podem impor um limite de filhos aos países em vias de desenvolvimento e população muito jovem (o Níger, na África subsaariana, tem a taxa de natalidade mais elevada do mundo e uma média de 7,6 nascimentos por mulher)?
Medidas de controlo demográfico a favor do ambiente também podem comprometer a sustentabilidade de outras formas: a política do filho único, na China, deixou de vigorar há três anos por causa do envelhecimento demográfico. Conclusão: o problema está menos no número de habitantes do planeta e mais nos estilos de vida que adotam (de forma não natural) e aumentam a vil pegada: viagens aéreas, deslocações de carro, combustíveis fósseis, consumo com desperdício (roupa, comida processada, uso de plásticos).
Isto não impede que se celebrem as baixas taxas de natalidade com vista a “encolher em direção à abundância”, campanha internacional da organização holandesa “The Great Decrease”. Portugal, além de Singapura e da Holanda, pela estatística exemplar neste campo, foi igualmente brindado com um cartaz, na Praia das Maçãs, em Sintra, no verão passado.
Aquele que nunca pensou nas consequências da pegada ecológica no futuro do planeta que atire a primeira fralda (idealmente, de material biodegradável). Até ao século passado, pesava sobre as mulheres a obrigação tácita de cumprir a função para a qual a biologia as programou. Hoje, acrescente-se a consciência ecológica e uma maior complexidade. Imagine-se um jovem casal a avaliar riscos e cenários futuros, com a prole a pedir-lhes contas: “Porque me fizeram vir a este mundo?” Onde vão reciclar a “culpa” por “condenarem” as gerações por nascer às agruras de um lugar inabitável? Será ético pedir a uma família com dois filhos que não tenha mais um ou olhar de lado as famílias numerosas?
Segundo as previsões das Nações Unidas, seremos mais de dez mil milhões no planeta em 2050. Um estudo divulgado em 2014 na revista oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos explorou vários cenários e concluiu que a redução da natalidade, as catástrofes e as doenças não seriam suficientes para diminuir a população global até 2100.
Partindo dos dados e projeções das Nações Unidas e do Pew Research Center, o site inglês Carbon Brief estimou que limitar o aquecimento global a 1,5 graus até esse ano pressupõe uma redução drástica das emissões de CO2. Os cálculos realizados para uma esperança de vida de 85 anos sugerem que os Baby Boomers (sobretudo os nascidos entre 1940 e 50) são os “vilões” da história, com 333 toneladas de emissões. A cumprir-se o Acordo de Paris, uma criança nascida em 2017 não poderá exceder as 43 toneladas na sua pegada ecológica, oito vezes inferior à dos avós.
Curiosamente, os maiores poluidores são os Estados Unidos e a Europa, com taxas de natalidade inferiores à média do crescimento demográfico global (2,5 filhos ao ano), com 1,9 e 1,6 respetivamente. Com que moral podem impor um limite de filhos aos países em vias de desenvolvimento e população muito jovem (o Níger, na África subsaariana, tem a taxa de natalidade mais elevada do mundo e uma média de 7,6 nascimentos por mulher)?
Medidas de controlo demográfico a favor do ambiente também podem comprometer a sustentabilidade de outras formas: a política do filho único, na China, deixou de vigorar há três anos por causa do envelhecimento demográfico. Conclusão: o problema está menos no número de habitantes do planeta e mais nos estilos de vida que adotam (de forma não natural) e aumentam a vil pegada: viagens aéreas, deslocações de carro, combustíveis fósseis, consumo com desperdício (roupa, comida processada, uso de plásticos).
Isto não impede que se celebrem as baixas taxas de natalidade com vista a “encolher em direção à abundância”, campanha internacional da organização holandesa “The Great Decrease”. Portugal, além de Singapura e da Holanda, pela estatística exemplar neste campo, foi igualmente brindado com um cartaz, na Praia das Maçãs, em Sintra, no verão passado.
O porquê do “não digas nunca”
Segundo o estudo As Mulheres em Portugal, Hoje, apresentado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, numa amostra de 2 229 mulheres com idades entre os 18 e os 64 anos, 9% nunca quiseram ter filhos. Não procriar por opção ou fazê-lo são duas tendências que coexistem, a diferença é que no primeiro caso persiste o tabu em falar abertamente sobre isso. Ou fala-se, mas com ironia, afirmando, por exemplo, que o receio do impacto das alterações climáticas não passa de uma desculpa de jovens adultos que só pensam na liberdade deles.
Em Portugal, as estatísticas demográficas revelam um ligeiro aumento da natalidade - no ano passado foram registados 1,41 nascimentos por mulher - mas estamos 18 décimas abaixo da média europeia (1,59).
“Há muitas razões para não querer ser mãe”, nota Julieta Pracana que, aos 41 anos, se mantém firme na sua decisão, pelo menos até agora: “Não me faz sentido avançar sozinha para um filho e, menos ainda, trazer um novo ser ao mundo sem fazer algo com os que já cá estão.” Se aos 20 era mais importante encontrar um relacionamento estável, aos 30 passou a ser o impacto de uma criança no estilo de vida adulto e urbano e, aos 40, conta sobretudo “o sentido e o propósito, o peso que se tem nos recursos do planeta, as questões climáticas, o excesso de população”.
A gestora de projeto afirma gostar imenso de crianças e salienta que “ter filhos é uma escolha exclusivamente pessoal”. Ela, que cresceu com “madrastas, padrastos e irmãos emprestados”, admite, em teoria, “poder vir a adotar, sem o preconceito que ainda persiste de perpetuar a herança genética”.
Há sete anos, numa investigação que partiu do dados do Inquérito à Fecundidade do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, a socióloga e investigadora Vanessa Cunha comparou as trajetórias não reprodutivas de três gerações nascidas nas décadas de 1930, 50 e 70. A tendência para adiar a parentalidade nas gerações mais novas manteve-se estável ao longo das gerações, no feminino (entre os 7 e os 9 por cento).
Entre as razões para não conceber destacaram-se o “não ter encontrado a pessoa certa”, a dificuldade em conciliar tempos de trabalho e disponibilidade para a família e o “não ser um objetivo na vida”. Vanessa Cunha, que coordena também o Observatório das Famílias e das Políticas de Família, encontrou outros fatores: “Incerteza, precariedade financeira e profissional e falta de apoios públicos”. Dez anos passados, a socióloga hipotetiza que a motivação residual para não querer ter filhos seja maior, até por haver “menos controlo social e familiar, mais liberdade para assumir escolhas, uma delas sendo não fazer sentido um filho no projeto de vida.”
Segundo o estudo As Mulheres em Portugal, Hoje, apresentado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, numa amostra de 2 229 mulheres com idades entre os 18 e os 64 anos, 9% nunca quiseram ter filhos. Não procriar por opção ou fazê-lo são duas tendências que coexistem, a diferença é que no primeiro caso persiste o tabu em falar abertamente sobre isso. Ou fala-se, mas com ironia, afirmando, por exemplo, que o receio do impacto das alterações climáticas não passa de uma desculpa de jovens adultos que só pensam na liberdade deles.
Em Portugal, as estatísticas demográficas revelam um ligeiro aumento da natalidade - no ano passado foram registados 1,41 nascimentos por mulher - mas estamos 18 décimas abaixo da média europeia (1,59).
“Há muitas razões para não querer ser mãe”, nota Julieta Pracana que, aos 41 anos, se mantém firme na sua decisão, pelo menos até agora: “Não me faz sentido avançar sozinha para um filho e, menos ainda, trazer um novo ser ao mundo sem fazer algo com os que já cá estão.” Se aos 20 era mais importante encontrar um relacionamento estável, aos 30 passou a ser o impacto de uma criança no estilo de vida adulto e urbano e, aos 40, conta sobretudo “o sentido e o propósito, o peso que se tem nos recursos do planeta, as questões climáticas, o excesso de população”.
A gestora de projeto afirma gostar imenso de crianças e salienta que “ter filhos é uma escolha exclusivamente pessoal”. Ela, que cresceu com “madrastas, padrastos e irmãos emprestados”, admite, em teoria, “poder vir a adotar, sem o preconceito que ainda persiste de perpetuar a herança genética”.
Há sete anos, numa investigação que partiu do dados do Inquérito à Fecundidade do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, a socióloga e investigadora Vanessa Cunha comparou as trajetórias não reprodutivas de três gerações nascidas nas décadas de 1930, 50 e 70. A tendência para adiar a parentalidade nas gerações mais novas manteve-se estável ao longo das gerações, no feminino (entre os 7 e os 9 por cento).
Entre as razões para não conceber destacaram-se o “não ter encontrado a pessoa certa”, a dificuldade em conciliar tempos de trabalho e disponibilidade para a família e o “não ser um objetivo na vida”. Vanessa Cunha, que coordena também o Observatório das Famílias e das Políticas de Família, encontrou outros fatores: “Incerteza, precariedade financeira e profissional e falta de apoios públicos”. Dez anos passados, a socióloga hipotetiza que a motivação residual para não querer ter filhos seja maior, até por haver “menos controlo social e familiar, mais liberdade para assumir escolhas, uma delas sendo não fazer sentido um filho no projeto de vida.”
Conviver com o não querer
O pesado escrutínio social das competências parentais parece ser a causa secreta que justifica os sucessivos adiamentos da decisão de engravidar até atingir o fim do prazo e, com alívio, não ver cumprido o guião “filho és, pais serás” (ou mãe).
Fátima Palma, presidente da Sociedade Portuguesa de Contraceção e Sociedade Portuguesa de Contraceção, defende que “a decisão de ter ou não ter filhos reflete uma opção de vida que não deve ser ditada por terceiros”. De resto, Portugal é campeão nas práticas contracetivas, como atesta o último inquérito feito a quatro mil mulheres em idade fértil: a pílula era o método mais usado (94%).
Maria José Alves, ginecologista obstetra com décadas de experiência, reconhece que apesar de existir mais liberdade para ser mãe mais tarde, sozinha ou simplesmente não sê-lo, é ainda muito raro ouvir uma mulher dizer “Eu não quero ter filhos”, até para evitar o interrogatório que se segue, na família e fora dela.
“Ter uma infância má e não acreditar num relacionamento estável ou, por défice narcísico, não confiar que se seja capaz” é uma realidade identificada pelo psicanalista José Coelho da Rosa na sua prática clínica.
As pressões sociais e o cliché da “maternidade como via para uma mulher se sentir feminina e completa” levam muitas “a ser sem o querer”. Em alternativa, o adiar, escudadas numa série de pretextos, nem sempre claros: “O ‘não posso’ é, na realidade, um ‘não quero’”. O psicoterapeuta recorda o caso de uma jovem atriz que não queria deformar o corpo, mas engravidou “sem querer”, teve um aborto espontâneo e, anos mais tarde, apaixonou-se e mudou de ideias. “Hoje está satisfeita e não a perturbam, como temia antes, as alterações corporais pós-parto”.
O exercício pleno do “não”, sem culpas nem medo de sanções, parece ainda ser “só para quem pode”. António e Hanna Damásio tornaram pública, há algum tempo, a decisão de não serem pais, por tal se revelar incompatível com carreira internacional do casal de investigadores.
Cameron Diaz
JB Lacroix/ Getty Images
Entre as celebridades de Hollywood, destacaram-se, há cinco anos, as atrizes Helen Mirren, Audrey Tautou e Cameron Diaz, contrariando o mito de que é preciso dar à luz pelo menos uma vez para ser uma mulher a sério. Entretanto, foram aparecendo acrónimos a condizer: “NoMo” (Not Mothers) e PANK (Profissional, Aunt, No Kids, ou “profissional, tia, sem filhos”).
Tia pela terceira vez e muito dedicada aos sobrinhos, a marketeer e ex-jornalista Joana Costa, 38 anos, assumiu em março ao P3 que não era menos mulher por viver bem sem ter prole. Contactada pela Visão, fez menção ao facto de ser “demasiado responsável, perfeccionista e workaholic”, com um grau de exigência que se aplica, também, aos relacionamentos. Ciente de que “não se pode estar em todas ao mesmo tempo”, elegeu a família e o trabalho como as suas prioridades e quem estiver ao lado dela terá de respeitar as suas convicções e abster-se de teorias sem nexo, como a de que “ter filhos é um seguro para a velhice”.
O pesado escrutínio social das competências parentais parece ser a causa secreta que justifica os sucessivos adiamentos da decisão de engravidar até atingir o fim do prazo e, com alívio, não ver cumprido o guião “filho és, pais serás” (ou mãe).
Fátima Palma, presidente da Sociedade Portuguesa de Contraceção e Sociedade Portuguesa de Contraceção, defende que “a decisão de ter ou não ter filhos reflete uma opção de vida que não deve ser ditada por terceiros”. De resto, Portugal é campeão nas práticas contracetivas, como atesta o último inquérito feito a quatro mil mulheres em idade fértil: a pílula era o método mais usado (94%).
Maria José Alves, ginecologista obstetra com décadas de experiência, reconhece que apesar de existir mais liberdade para ser mãe mais tarde, sozinha ou simplesmente não sê-lo, é ainda muito raro ouvir uma mulher dizer “Eu não quero ter filhos”, até para evitar o interrogatório que se segue, na família e fora dela.
“Ter uma infância má e não acreditar num relacionamento estável ou, por défice narcísico, não confiar que se seja capaz” é uma realidade identificada pelo psicanalista José Coelho da Rosa na sua prática clínica.
As pressões sociais e o cliché da “maternidade como via para uma mulher se sentir feminina e completa” levam muitas “a ser sem o querer”. Em alternativa, o adiar, escudadas numa série de pretextos, nem sempre claros: “O ‘não posso’ é, na realidade, um ‘não quero’”. O psicoterapeuta recorda o caso de uma jovem atriz que não queria deformar o corpo, mas engravidou “sem querer”, teve um aborto espontâneo e, anos mais tarde, apaixonou-se e mudou de ideias. “Hoje está satisfeita e não a perturbam, como temia antes, as alterações corporais pós-parto”.
O exercício pleno do “não”, sem culpas nem medo de sanções, parece ainda ser “só para quem pode”. António e Hanna Damásio tornaram pública, há algum tempo, a decisão de não serem pais, por tal se revelar incompatível com carreira internacional do casal de investigadores.
Cameron Diaz
JB Lacroix/ Getty Images
Entre as celebridades de Hollywood, destacaram-se, há cinco anos, as atrizes Helen Mirren, Audrey Tautou e Cameron Diaz, contrariando o mito de que é preciso dar à luz pelo menos uma vez para ser uma mulher a sério. Entretanto, foram aparecendo acrónimos a condizer: “NoMo” (Not Mothers) e PANK (Profissional, Aunt, No Kids, ou “profissional, tia, sem filhos”).
Tia pela terceira vez e muito dedicada aos sobrinhos, a marketeer e ex-jornalista Joana Costa, 38 anos, assumiu em março ao P3 que não era menos mulher por viver bem sem ter prole. Contactada pela Visão, fez menção ao facto de ser “demasiado responsável, perfeccionista e workaholic”, com um grau de exigência que se aplica, também, aos relacionamentos. Ciente de que “não se pode estar em todas ao mesmo tempo”, elegeu a família e o trabalho como as suas prioridades e quem estiver ao lado dela terá de respeitar as suas convicções e abster-se de teorias sem nexo, como a de que “ter filhos é um seguro para a velhice”.
Outras vias de fecundidade
Há um desconforto comum às mulheres que se sentem pouco aceites por não quererem ser mães e aquelas que viram falhar o sonho de sê-lo. Foi para estas últimas que Jody Day escreveu um livro e co-fundou a associação britânica Gateway Women, levando a BBC a elegê-la como uma das 100 mulheres do ano em 2013.
À semelhança de Jody, Sara Serrão sentiu um enorme vazio quando, depois de encontrar a pessoa certa e submeter-se a três fertilizações in vitro sem sucesso, lançou, no início deste ano, um grupo de partilha e apoio para homens e mulheres que tiveram de fazer o luto desse projeto e o caminho da aceitação. Aos 44 anos, a microempresária conta com a colaboração de duas psicólogas e 50 membros no grupo do Facebook “Plano B - A vida depois de não (conseguir) ter filhos”.
Para as mulheres que conceberam sem o terem planeado, o livro “Mães Arrependidas”, da socióloga e ativista social israelita Orna Donath, ajudou-as a sentirem-se menos sós. Aos 42 anos, sem filhos e a viver em Tel Aviv, a autora afirmou à Visão que “sempre existiram mulheres para quem a reprodução e a família nunca fizeram parte do seu projeto de vida”.
Depois do sucesso da obra, a socióloga está agora a estudar mulheres mais velhas (com idades entre os 70 e os 86) que nunca tiveram descendência, dá formação em universidades do país e lidera grupos de mulheres que partilham, ao longo de dez semanas, sentimentos, dúvidas e reflexões sobre o tema, a fim de decidirem, por si mesmas, o que é melhor para as suas vidas (Ver entrevista).
Maria de Jesus Correia, psicóloga clínica e psicoterapeuta
D.R.
“A decisão pode ser mais problemática no limiar da fertilidade”, explica a psicóloga clínica Maria de Jesus Correia. Com a proximidade da menopausa, perdem importância os receios da dor, das alterações corporais, o medo da repetição de padrões familiares menos bons ou de falhar o cumprimento de expetativas sociais e pesa mais o prazo de validade para tomar a decisão e o que realmente está em jogo numa perspetiva madura: “Um investimento funcional e afetivo longo e exigente e que, uma vez crescidos, os filhos vão à vida deles”.
A compreensão dos motivos que estão na base da escolha do “não” importa especialmente a pessoas diferenciadas, por terem acesso a outras possibilidades e objetivos de vida. Basta lembrar que “em meios socioeconomicamente pobres, a vida cumpre-se no casar e ter filhos e não necessariamente por desejo materno”.
Apesar de haver ainda quem acredite que um casal sem filhos é menos feliz do que os outros, não falta quem prove o contrário, por ter sido esse o caminho consensualmente tomado, a dois. Confirma-o a produtora Margarida Tavares, 43 anos, prestes a celebrar 20 de casamento com Fernando. Deram o “sim” um ao outro e o “não” à descendência e, em nome de uma vida mais livre, a pílula passou a fazer parte das rotinas conjugais. “Não queremos o nosso tempo de vida hipotecado, usamo-lo para descansar, passear ou não fazer nada”, esclarece. “É uma grande responsabilidade educar uma criança, ter alguém a depender de mim para viver”, acrescenta. No espaçoso T2, na capital, não há animais domésticos.
As férias são feitas à medida e sem condicionamentos, orçamentais ou associados ao calendário escolar. Margarida não podia sentir-se melhor na sua pele, pelo “tempo de qualidade a todos os níveis” e o estar presente a 100% nos momentos partilhados, que faz realmente a diferença na relação com os mais próximos e seus descendentes: “Os miúdos adoram cá ficar, com todos os mimos e atividades lúdicas a que se habituaram desde que nasceram.”
Entre o ter e o não ter, não será tanto a legitimidade que estará em jogo no curto espaço de uma vida, mas antes o exercício consciente da liberdade, sem medo nem culpa. E sem ficar refém de cenários distópicos e políticas extremadas, por mais “corretas” que pareçam: do abortar qualquer ideia de conceber até à procriação coerciva sugerida na ficção totalitária de Margaret Atwood, The Handmaid´s Tale.
Orna Donath, socióloga e ativista israelita, autora do livro Mães Arrependidas
D.R.
3 perguntas a…
Orna Donath
“Temos os mesmos orgãos reprodutores mas não as mesmas necessidade e sonhos”
A socióloga e ativista social recebe mensagens de mulheres de todo o mundo que, graças ao livro “Mães arrependidas”, se sentem inspiradas e legitimadas a sentir e expressar o que sentem, sem complexos.
No livro usa as expressões "mãe de ninguém" e "não dito". Não ter filhos ainda é tabu?
Sim, assumida ou tacitamente, é esperado que mulheres física e emocionalmente saudáveis desejem ser mães por serem mulheres, que saibam o que fazer após o nascimento da criança e vejam na maternidade uma mudança valiosa com um "final feliz". Até na Noruega, onde há igualdade de género e proteção dos direitos das mulheres, a pressão para a maternidade é muito similar à que existe em Israel, não havendo “desculpas” para não ser mãe.
Quais são as principais razões para "não" - ou "por que não" - ser mãe?
Ter tempo para si e medo de não ser suficientemente boa enquanto mãe. No meu estudo participaram mulheres com as "condições ideais de vida" para serem mães - parceiro, que às vezes era o principal cuidador dos filhos, dinheiro para criá-los - e se arrependeram de terem sido mães, e cinco delas já eram avós. Ou seja, garantir condições e reduzir a pressão social não elimina o arrependimento da maternidade, nem fará das mulheres mães se não o desejam.
Prestes a fazer 43 anos, o que responde a quem lhe pergunta se quer ser mãe?
Quem me conhece não pergunta e a quem pergunta deixo a questão: acha que as mulheres são todas iguais? Temos os mesmos orgãos reprodutores mas tal não pressupõe que tenhamos as mesmas necessidades, sonhos e motivações. As sociedades devem repensar a forma como nos usam e aos nossos corpos para os seus interesses enquanto nos tentam convencer de que é para nosso bem.
Há um desconforto comum às mulheres que se sentem pouco aceites por não quererem ser mães e aquelas que viram falhar o sonho de sê-lo. Foi para estas últimas que Jody Day escreveu um livro e co-fundou a associação britânica Gateway Women, levando a BBC a elegê-la como uma das 100 mulheres do ano em 2013.
À semelhança de Jody, Sara Serrão sentiu um enorme vazio quando, depois de encontrar a pessoa certa e submeter-se a três fertilizações in vitro sem sucesso, lançou, no início deste ano, um grupo de partilha e apoio para homens e mulheres que tiveram de fazer o luto desse projeto e o caminho da aceitação. Aos 44 anos, a microempresária conta com a colaboração de duas psicólogas e 50 membros no grupo do Facebook “Plano B - A vida depois de não (conseguir) ter filhos”.
Para as mulheres que conceberam sem o terem planeado, o livro “Mães Arrependidas”, da socióloga e ativista social israelita Orna Donath, ajudou-as a sentirem-se menos sós. Aos 42 anos, sem filhos e a viver em Tel Aviv, a autora afirmou à Visão que “sempre existiram mulheres para quem a reprodução e a família nunca fizeram parte do seu projeto de vida”.
Depois do sucesso da obra, a socióloga está agora a estudar mulheres mais velhas (com idades entre os 70 e os 86) que nunca tiveram descendência, dá formação em universidades do país e lidera grupos de mulheres que partilham, ao longo de dez semanas, sentimentos, dúvidas e reflexões sobre o tema, a fim de decidirem, por si mesmas, o que é melhor para as suas vidas (Ver entrevista).
Maria de Jesus Correia, psicóloga clínica e psicoterapeuta
D.R.
“A decisão pode ser mais problemática no limiar da fertilidade”, explica a psicóloga clínica Maria de Jesus Correia. Com a proximidade da menopausa, perdem importância os receios da dor, das alterações corporais, o medo da repetição de padrões familiares menos bons ou de falhar o cumprimento de expetativas sociais e pesa mais o prazo de validade para tomar a decisão e o que realmente está em jogo numa perspetiva madura: “Um investimento funcional e afetivo longo e exigente e que, uma vez crescidos, os filhos vão à vida deles”.
A compreensão dos motivos que estão na base da escolha do “não” importa especialmente a pessoas diferenciadas, por terem acesso a outras possibilidades e objetivos de vida. Basta lembrar que “em meios socioeconomicamente pobres, a vida cumpre-se no casar e ter filhos e não necessariamente por desejo materno”.
Apesar de haver ainda quem acredite que um casal sem filhos é menos feliz do que os outros, não falta quem prove o contrário, por ter sido esse o caminho consensualmente tomado, a dois. Confirma-o a produtora Margarida Tavares, 43 anos, prestes a celebrar 20 de casamento com Fernando. Deram o “sim” um ao outro e o “não” à descendência e, em nome de uma vida mais livre, a pílula passou a fazer parte das rotinas conjugais. “Não queremos o nosso tempo de vida hipotecado, usamo-lo para descansar, passear ou não fazer nada”, esclarece. “É uma grande responsabilidade educar uma criança, ter alguém a depender de mim para viver”, acrescenta. No espaçoso T2, na capital, não há animais domésticos.
As férias são feitas à medida e sem condicionamentos, orçamentais ou associados ao calendário escolar. Margarida não podia sentir-se melhor na sua pele, pelo “tempo de qualidade a todos os níveis” e o estar presente a 100% nos momentos partilhados, que faz realmente a diferença na relação com os mais próximos e seus descendentes: “Os miúdos adoram cá ficar, com todos os mimos e atividades lúdicas a que se habituaram desde que nasceram.”
Entre o ter e o não ter, não será tanto a legitimidade que estará em jogo no curto espaço de uma vida, mas antes o exercício consciente da liberdade, sem medo nem culpa. E sem ficar refém de cenários distópicos e políticas extremadas, por mais “corretas” que pareçam: do abortar qualquer ideia de conceber até à procriação coerciva sugerida na ficção totalitária de Margaret Atwood, The Handmaid´s Tale.
Orna Donath, socióloga e ativista israelita, autora do livro Mães Arrependidas
D.R.
3 perguntas a…
Orna Donath
“Temos os mesmos orgãos reprodutores mas não as mesmas necessidade e sonhos”
A socióloga e ativista social recebe mensagens de mulheres de todo o mundo que, graças ao livro “Mães arrependidas”, se sentem inspiradas e legitimadas a sentir e expressar o que sentem, sem complexos.
No livro usa as expressões "mãe de ninguém" e "não dito". Não ter filhos ainda é tabu?
Sim, assumida ou tacitamente, é esperado que mulheres física e emocionalmente saudáveis desejem ser mães por serem mulheres, que saibam o que fazer após o nascimento da criança e vejam na maternidade uma mudança valiosa com um "final feliz". Até na Noruega, onde há igualdade de género e proteção dos direitos das mulheres, a pressão para a maternidade é muito similar à que existe em Israel, não havendo “desculpas” para não ser mãe.
Quais são as principais razões para "não" - ou "por que não" - ser mãe?
Ter tempo para si e medo de não ser suficientemente boa enquanto mãe. No meu estudo participaram mulheres com as "condições ideais de vida" para serem mães - parceiro, que às vezes era o principal cuidador dos filhos, dinheiro para criá-los - e se arrependeram de terem sido mães, e cinco delas já eram avós. Ou seja, garantir condições e reduzir a pressão social não elimina o arrependimento da maternidade, nem fará das mulheres mães se não o desejam.
Prestes a fazer 43 anos, o que responde a quem lhe pergunta se quer ser mãe?
Quem me conhece não pergunta e a quem pergunta deixo a questão: acha que as mulheres são todas iguais? Temos os mesmos orgãos reprodutores mas tal não pressupõe que tenhamos as mesmas necessidades, sonhos e motivações. As sociedades devem repensar a forma como nos usam e aos nossos corpos para os seus interesses enquanto nos tentam convencer de que é para nosso bem.
“Filhos, não”: em nome do planeta ou porque sim?
Deixar de ter filhos para responder à sobrepopulação do planeta e à crise climática é uma tendência que conquista adeptos e coexiste com a de conceber um projeto de vida sem parentalidade
À
primeira vista parece uma moda com os dias contados. Um capricho, um
gesto de afirmação de alguns jovens, à boleia da ativista grevista sueca
Greta Thunberg, rosto da luta pelo combate às alterações climáticas.
Relutam em trazer mais gente ao mundo, sendo nós, humanos, já tantos e
tão sombrio o prognóstico da vida na Terra nos próximos anos. Não
admira, pois, que uma imensa minoria em idade fértil comece a ganhar
terreno e, embora zelosa da sua privacidade, não tenha complexos em
admitir as suas preferências e escolhas conjuntas. Ana Rita Vicente, 33
anos, inclui-se neste grupo: “Achei que um dia ia querer, mas não, a
minha preferência é partilhada com a do meu companheiro, três anos mais
velho, e decidimos não ser pais há um ano.” Ele submeteu-se a uma
vasectomia e o casal não teve problemas de aceitação no seu núcleo
próximo, embora a profissional de saúde reconheça que “ainda se vê o ter
filhos como parte de um projeto de vida completo”.
Num
país envelhecido como o nosso, ser saudável e ter relacionamento
estável para procriar é um paradigma que se sobrepõe a considerações
ambientais ou outras, como a sobrepopulação. No círculo de amigos do
casal não há militantes nem ativistas, “antes pessoas conscientes” de
que a gravidez e a parentalidade não são um mar de rosas e do imperativo
de respeitar as opções, próprias e dos outros, sem por em causa aquilo
que os une. Tal significou, por exemplo, aceitar “o afastamento
temporário daqueles que foram pais durante os primeiros anos de vida dos
bebés”.
Minimalismo reprodutivo
O
berço dos chamados movimentos antinatalistas por imperativos
ideológicos - evitar ser mais um a contribuir para o aumento demográfico
global, por exemplo - parece ter mais expressão no Reino Unido. Em
entrevista à Vogue (edição editada pela mulher,
Meghan, a convite da revista), o Príncipe Harry fez saber que o casal
não ia ultrapassar o teto máximo dos dois filhos em abono do planeta e o
movimento global #BirthStrike, que caminha para o meio milhão de
membros, liderado pela música e ativista britânica Blythe Pepino,
defende o lema “sem filhos” no atual cenário, de crise ambiental.
Embora
a causa não tenha um rosto no universo português, existem
simpatizantes. É o caso da realizadora e argumentista Alexia Fernandes,
29 anos, que cresceu entre França e Portugal e vive em Berlim. Ela
aderiu ao grupo, no Facebook, numa fase de “dúvida e reflexão”, em que
sentiu vontade de conhecer a experiência de outras pessoas da sua
geração. “Com pouco mais de uma década para nos salvarmos a nós e outras
criaturas vivas do planeta, questiono-me se estou a ser responsável ou
egoísta ao continuar o modelo familiar e reprodutivo dos meus pais e
avós”, revela Alexia.
Assim nasceu o argumento da curta metragem Mon haricot à moi
(O meu feijão): “Manon descobre estar grávida no momento em que percebe
a dimensão sinistra em que a sua descendência terá de (sobre)viver”. A
intenção foi “criar um espaço de troca e união para refletir sobre o
papel das mulheres num futuro tão instável e explorar os sentimentos
mistos que as acompanham”.
No
outro lado do Atlântico, a jovem performer Miley Cyrus, que caminha
para os 30 anos de idade, deu um toque de dramatismo à questão, ao
passar a mensagem à imprensa de que os millennials não queriam perpetuar
a espécie porque a Terra “pode não aguentar”. A Terra? A espécie? Por
razões políticas, morais ou, até, por medo existencial, o debate volta a
fazer-se, uma década depois da escritora suíça Corinne Maier, mãe por
duas vezes (os filhos têm hoje 23 e 25 anos), ter dado que falar por
causa do controverso livro No KID 40 Razões Para Não Ter Filhos (Guerra & Paz), onde referia que a obsessão social em torno das crianças estava a atingir dimensões perversas.
Contactada
pela VISÃO, Corinne começa por dizer que “um novo membro na família
envolve aumento do consumo, casa, carro, escola privada… e se queremos
ter futuro temos de consumir e de reproduzir menos.” No panorama atual,
ter descendência “continua a ser um símbolo de prosperidade e uma forma
de competir com amigos e vizinhos”, mas em face da crise climática
“revela-se um ato de egoísmo em relação a outros e à criança, que terá
de enfrentar as consequências dessa crise”.
O êxodo das cegonhas
Aquele
que nunca pensou nas consequências da pegada ecológica no futuro do
planeta que atire a primeira fralda (idealmente, de material
biodegradável). Até ao século passado, pesava sobre as mulheres a
obrigação tácita de cumprir a função para a qual a biologia as
programou. Hoje, acrescente-se a consciência ecológica e uma maior complexidade. Imagine-se um
jovem casal a avaliar riscos e cenários futuros, com a prole a
pedir-lhes contas: “Porque me fizeram vir a este mundo?” Onde vão
reciclar a “culpa” por “condenarem” as gerações por nascer às agruras de
um lugar inabitável? Será ético pedir a uma família com dois filhos que
não tenha mais um ou olhar de lado as famílias numerosas?
Segundo
as previsões das Nações Unidas, seremos mais de dez mil milhões no
planeta em 2050. Um estudo divulgado em 2014 na revista oficial da
Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos explorou vários
cenários e concluiu que a redução da natalidade, as catástrofes e as
doenças não seriam suficientes para diminuir a população global até
2100.
Partindo
dos dados e projeções das Nações Unidas e do Pew Research Center, o
site inglês Carbon Brief estimou que limitar o aquecimento global a 1,5
graus até esse ano pressupõe uma redução drástica das emissões de CO2.
Os cálculos realizados para uma esperança de vida de 85 anos sugerem que
os Baby Boomers (sobretudo os nascidos entre 1940 e 50) são os “vilões”
da história, com 333 toneladas de emissões. A cumprir-se o Acordo de
Paris, uma criança nascida em 2017 não poderá exceder as 43 toneladas na
sua pegada ecológica, oito vezes inferior à dos avós.
Curiosamente,
os maiores poluidores são os Estados Unidos e a Europa, com taxas de
natalidade inferiores à média do crescimento demográfico global (2,5
filhos ao ano), com 1,9 e 1,6 respetivamente. Com que moral podem impor
um limite de filhos aos países em vias de desenvolvimento e população
muito jovem (o Níger, na África subsaariana, tem a taxa de natalidade
mais elevada do mundo e uma média de 7,6 nascimentos por mulher)?
Medidas
de controlo demográfico a favor do ambiente também podem comprometer a
sustentabilidade de outras formas: a política do filho único, na China,
deixou de vigorar há três anos por causa do envelhecimento demográfico.
Conclusão: o problema está menos no número de habitantes do planeta e
mais nos estilos de vida que adotam (de forma não natural) e aumentam a
vil pegada: viagens aéreas, deslocações de carro, combustíveis fósseis,
consumo com desperdício (roupa, comida processada, uso de plásticos).
Isto
não impede que se celebrem as baixas taxas de natalidade com vista a
“encolher em direção à abundância”, campanha internacional da
organização holandesa “The Great Decrease”. Portugal, além de Singapura e
da Holanda, pela estatística exemplar neste campo, foi igualmente
brindado com um cartaz, na Praia das Maçãs, em Sintra, no verão passado.
O porquê do “não digas nunca”
Segundo o estudo As Mulheres em Portugal, Hoje,
apresentado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, numa amostra de 2
229 mulheres com idades entre os 18 e os 64 anos, 9% nunca quiseram ter
filhos. Não procriar por opção ou fazê-lo são duas tendências que
coexistem, a diferença é que no primeiro caso persiste o tabu em falar
abertamente sobre isso. Ou fala-se, mas com ironia, afirmando, por
exemplo, que o receio do impacto das alterações climáticas não passa de
uma desculpa de jovens adultos que só pensam na liberdade deles.
Em
Portugal, as estatísticas demográficas revelam um ligeiro aumento da
natalidade - no ano passado foram registados 1,41 nascimentos por mulher
- mas estamos 18 décimas abaixo da média europeia (1,59).
“Há
muitas razões para não querer ser mãe”, nota Julieta Pracana que, aos
41 anos, se mantém firme na sua decisão, pelo menos até agora: “Não me
faz sentido avançar sozinha para um filho e, menos ainda, trazer um novo
ser ao mundo sem fazer algo com os que já cá estão.” Se aos 20 era mais
importante encontrar um relacionamento estável, aos 30 passou a ser o
impacto de uma criança no estilo de vida adulto e urbano e, aos 40,
conta sobretudo “o sentido e o propósito, o peso que se tem nos recursos
do planeta, as questões climáticas, o excesso de população”.
A
gestora de projeto afirma gostar imenso de crianças e salienta que “ter
filhos é uma escolha exclusivamente pessoal”. Ela, que cresceu com
“madrastas, padrastos e irmãos emprestados”, admite, em teoria, “poder
vir a adotar, sem o preconceito que ainda persiste de perpetuar a
herança genética”.
Há
sete anos, numa investigação que partiu do dados do Inquérito à
Fecundidade do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de
Lisboa, a socióloga e investigadora Vanessa Cunha comparou as
trajetórias não reprodutivas de três gerações nascidas nas décadas de
1930, 50 e 70. A tendência para adiar a parentalidade nas gerações mais
novas manteve-se estável ao longo das gerações, no feminino (entre os 7 e
os 9 por cento).
Entre
as razões para não conceber destacaram-se o “não ter encontrado a
pessoa certa”, a dificuldade em conciliar tempos de trabalho e
disponibilidade para a família e o “não ser um objetivo na vida”.
Vanessa Cunha, que coordena também o Observatório das Famílias e das
Políticas de Família, encontrou outros fatores: “Incerteza, precariedade
financeira e profissional e falta de apoios públicos”. Dez anos
passados, a socióloga hipotetiza que a motivação residual para não
querer ter filhos seja maior, até por haver “menos controlo social e
familiar, mais liberdade para assumir escolhas, uma delas sendo não
fazer sentido um filho no projeto de vida.”
Conviver com o não querer
O
pesado escrutínio social das competências parentais parece ser a causa
secreta que justifica os sucessivos adiamentos da decisão de engravidar
até atingir o fim do prazo e, com alívio, não ver cumprido o guião
“filho és, pais serás” (ou mãe).
Fátima
Palma, presidente da Sociedade Portuguesa de Contraceção e Sociedade
Portuguesa de Contraceção, defende que “a decisão de ter ou não ter
filhos reflete uma opção de vida que não deve ser ditada por terceiros”.
De resto, Portugal é campeão nas práticas contracetivas, como atesta o
último inquérito feito a quatro mil mulheres em idade fértil: a pílula
era o método mais usado (94%).
Maria
José Alves, ginecologista obstetra com décadas de experiência,
reconhece que apesar de existir mais liberdade para ser mãe mais tarde,
sozinha ou simplesmente não sê-lo, é ainda muito raro ouvir uma mulher
dizer “Eu não quero ter filhos”, até para evitar o interrogatório que se
segue, na família e fora dela.
“Ter
uma infância má e não acreditar num relacionamento estável ou, por
défice narcísico, não confiar que se seja capaz” é uma realidade
identificada pelo psicanalista José Coelho da Rosa na sua prática
clínica.
As
pressões sociais e o cliché da “maternidade como via para uma mulher se
sentir feminina e completa” levam muitas “a ser sem o querer”. Em
alternativa, o adiar, escudadas numa série de pretextos, nem sempre
claros: “O ‘não posso’ é, na realidade, um ‘não quero’”. O
psicoterapeuta recorda o caso de uma jovem atriz que não queria deformar
o corpo, mas engravidou “sem querer”, teve um aborto espontâneo e, anos
mais tarde, apaixonou-se e mudou de ideias. “Hoje está satisfeita e não
a perturbam, como temia antes, as alterações corporais pós-parto”.
O
exercício pleno do “não”, sem culpas nem medo de sanções, parece ainda
ser “só para quem pode”. António e Hanna Damásio tornaram pública, há
algum tempo, a decisão de não serem pais, por tal se revelar
incompatível com carreira internacional do casal de investigadores.
Entre
as celebridades de Hollywood, destacaram-se, há cinco anos, as atrizes
Helen Mirren, Audrey Tautou e Cameron Diaz, contrariando o mito de que é
preciso dar à luz pelo menos uma vez para ser uma mulher a sério.
Entretanto, foram aparecendo acrónimos a condizer: “NoMo” (Not Mothers) e
PANK (Profissional, Aunt, No Kids, ou “profissional, tia, sem filhos”).
Tia pela terceira vez e muito dedicada aos sobrinhos, a marketeer e ex-jornalista Joana Costa, 38 anos, assumiu em março ao P3
que não era menos mulher por viver bem sem ter prole. Contactada pela
Visão, fez menção ao facto de ser “demasiado responsável, perfeccionista
e workaholic”, com um grau de exigência que se aplica, também, aos
relacionamentos. Ciente de que “não se pode estar em todas ao mesmo
tempo”, elegeu a família e o trabalho como as suas prioridades e quem
estiver ao lado dela terá de respeitar as suas convicções e abster-se de
teorias sem nexo, como a de que “ter filhos é um seguro para a
velhice”.
Outras vias de fecundidade
Há
um desconforto comum às mulheres que se sentem pouco aceites por não
quererem ser mães e aquelas que viram falhar o sonho de sê-lo. Foi para
estas últimas que Jody Day escreveu um livro e co-fundou a associação
britânica Gateway Women, levando a BBC a elegê-la como uma das 100
mulheres do ano em 2013.
À
semelhança de Jody, Sara Serrão sentiu um enorme vazio quando, depois
de encontrar a pessoa certa e submeter-se a três fertilizações in vitro
sem sucesso, lançou, no início deste ano, um grupo de partilha e apoio
para homens e mulheres que tiveram de fazer o luto desse projeto e o
caminho da aceitação. Aos 44 anos, a microempresária conta com a
colaboração de duas psicólogas e 50 membros no grupo do Facebook “Plano B
- A vida depois de não (conseguir) ter filhos”.
Para
as mulheres que conceberam sem o terem planeado, o livro “Mães
Arrependidas”, da socióloga e ativista social israelita Orna Donath,
ajudou-as a sentirem-se menos sós. Aos 42 anos, sem filhos e a viver em
Tel Aviv, a autora afirmou à Visão que “sempre existiram mulheres para
quem a reprodução e a família nunca fizeram parte do seu projeto de
vida”.
Depois
do sucesso da obra, a socióloga está agora a estudar mulheres mais
velhas (com idades entre os 70 e os 86) que nunca tiveram descendência,
dá formação em universidades do país e lidera grupos de mulheres que
partilham, ao longo de dez semanas, sentimentos, dúvidas e reflexões
sobre o tema, a fim de decidirem, por si mesmas, o que é melhor para as
suas vidas (Ver entrevista).
“A
decisão pode ser mais problemática no limiar da fertilidade”, explica a
psicóloga clínica Maria de Jesus Correia. Com a proximidade da
menopausa, perdem importância os receios da dor, das alterações
corporais, o medo da repetição de padrões familiares menos bons ou de
falhar o cumprimento de expetativas sociais e pesa mais o prazo de
validade para tomar a decisão e o que realmente está em jogo numa
perspetiva madura: “Um investimento funcional e afetivo longo e exigente
e que, uma vez crescidos, os filhos vão à vida deles”.
A
compreensão dos motivos que estão na base da escolha do “não” importa
especialmente a pessoas diferenciadas, por terem acesso a outras
possibilidades e objetivos de vida. Basta lembrar que “em meios
socioeconomicamente pobres, a vida cumpre-se no casar e ter filhos e não
necessariamente por desejo materno”.
Apesar
de haver ainda quem acredite que um casal sem filhos é menos feliz do
que os outros, não falta quem prove o contrário, por ter sido esse o
caminho consensualmente tomado, a dois. Confirma-o a produtora Margarida
Tavares, 43 anos, prestes a celebrar 20 de casamento com Fernando.
Deram o “sim” um ao outro e o “não” à descendência e, em nome de uma
vida mais livre, a pílula passou a fazer parte das rotinas conjugais.
“Não queremos o nosso tempo de vida hipotecado, usamo-lo para descansar,
passear ou não fazer nada”, esclarece. “É uma grande responsabilidade
educar uma criança, ter alguém a depender de mim para viver”,
acrescenta. No espaçoso T2, na capital, não há animais domésticos.
As
férias são feitas à medida e sem condicionamentos, orçamentais ou
associados ao calendário escolar. Margarida não podia sentir-se melhor
na sua pele, pelo “tempo de qualidade a todos os níveis” e o estar
presente a 100% nos momentos partilhados, que faz realmente a diferença
na relação com os mais próximos e seus descendentes: “Os miúdos adoram
cá ficar, com todos os mimos e atividades lúdicas a que se habituaram
desde que nasceram.”
Entre
o ter e o não ter, não será tanto a legitimidade que estará em jogo no
curto espaço de uma vida, mas antes o exercício consciente da liberdade,
sem medo nem culpa. E sem ficar refém de cenários distópicos e
políticas extremadas, por mais “corretas” que pareçam: do abortar
qualquer ideia de conceber até à procriação coerciva sugerida na ficção
totalitária de Margaret Atwood, The Handmaid´s Tale.
3 perguntas a…
Orna Donath
“Temos os mesmos orgãos reprodutores mas não as mesmas necessidade e sonhos”
A
socióloga e ativista social recebe mensagens de mulheres de todo o
mundo que, graças ao livro “Mães arrependidas”, se sentem inspiradas e
legitimadas a sentir e expressar o que sentem, sem complexos.
No livro usa as expressões "mãe de ninguém" e "não dito". Não ter filhos ainda é tabu?
Sim,
assumida ou tacitamente, é esperado que mulheres física e
emocionalmente saudáveis desejem ser mães por serem mulheres, que saibam
o que fazer após o nascimento da criança e vejam na maternidade uma
mudança valiosa com um "final feliz". Até na Noruega, onde há igualdade
de género e proteção dos direitos das mulheres, a pressão para a
maternidade é muito similar à que existe em Israel, não havendo
“desculpas” para não ser mãe.
Quais são as principais razões para "não" - ou "por que não" - ser mãe?
Ter
tempo para si e medo de não ser suficientemente boa enquanto mãe. No
meu estudo participaram mulheres com as "condições ideais de vida" para
serem mães - parceiro, que às vezes era o principal cuidador dos filhos,
dinheiro para criá-los - e se arrependeram de terem sido mães, e cinco
delas já eram avós. Ou seja, garantir condições e reduzir a pressão
social não elimina o arrependimento da maternidade, nem fará das
mulheres mães se não o desejam.
Prestes a fazer 43 anos, o que responde a quem lhe pergunta se quer ser mãe?
Quem
me conhece não pergunta e a quem pergunta deixo a questão: acha que as
mulheres são todas iguais? Temos os mesmos orgãos reprodutores, mas tal
não pressupõe que tenhamos as mesmas necessidades, sonhos e motivações.
As sociedades devem repensar a forma como nos usam e aos nossos corpos
para os seus interesses enquanto nos tentam convencer de que é para
nosso bem.
Fonte: http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2019-11-02-Filhos-nao-em-nome-do-planeta-ou-porque-sim--1
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