02.11.2019 às 19h56
A sociedade continua a encarar o gordo como um ser inferior. É como se formassem a única minoria sem direito ao véu protetor da indignação
O
romance “A Gorda”, de Isabela Figueiredo, arranca assim: “Quarenta
quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia (...) Ainda
penso como gorda. Serei sempre gorda. Sei que o mundo das pessoas
normais não é para mim (...) Mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me
eu, à partida. Conheço bem os meus limites. Aquilo a que posso aceder e o
que me está vedado para sempre. Os aleijados são, como se diz dos
diamantes, eternos.” É um arranque extraordinário, até porque retrata o
gordo como um aleijado, como o grande enjeitado. Não é aleijado segundo
as leis da natureza, mas segundo as leis da crueldade humana. Maria
Luísa, personagem central de “A Gorda” é, no fundo, como Philip de
“Servidão Humana”. Ter peso a mais é como ter um pé a menos; a barriga
proeminente é uma característica percecionada como uma deformação
equiparável a um pé boto. É assim que um gordo se sente perante a
sociedade que o encara como um ser inferior, a sociedade que insiste em
fazer da obesidade uma metáfora sobre falhas morais.
Na
escola da Belle Époque inglesa, Philip é gozado e humilhado pelos
outros rapazes, que não lhe perdoam o pé defeituoso; a piedade não é
natural ao homem, tem de ser aprendida. No Portugal contemporâneo, Maria
Luísa também é destratada como a badocha de serviço. Reparem, por
favor, que estou a usar o presente do indicativo. Uso o presente devido
ao tempo narrativo dos romances, Philip e Maria Luísa estão a sofrer
neste momento. Mas há outra razão: utilizo o presente do indicativo
porque o gordo é, nos dias que correm, o único ideal-tipo que pode ser
abertamente gozado e humilhado em público. O que é espantoso. Vivemos no
meio de uma barragem constante de indignação de grupos e minorias que
recusam ser criticados ou parodiados. Do humor à literatura, há um
policiamento permanente da linguagem que confunde duas coisas: uma coisa
é combater preconceitos e ódios; outra coisa, bem diferente, é
diabolizar críticas, perguntas difíceis e, sim, piadas sobre grupos,
etnias, tribos, minorias ou maiorias.
Fonte: https://expresso.pt/sociedade/2019-11-02-O-gordo-tambem-tem-direito-a-indignacao-
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