3 de novembro de 2019, 8h00
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Escrito em 1914 e publicado em 1919, Na Colônia Penal é mais um chocante texto de Franz Kafka (1883-1924). Trata-se de pesadíssima denúncia à arbitrariedade judicial, à supressão do direito de defesa, à eliminação do devido processo legal, à violência dos castigos e à prepotência dos poderosos. É um texto que enfrenta um problema universal. Os temas da justiça e do castigo são inerentes à condição humana. Kafka segue a linha de O Processo, outro eletrizante texto de denúncia da irracionalidade dos arranjos institucionais de punição. Kafka denuncia procedimentos inquisitoriais. Na Colônia Penal é um libelo contra todas as formas de tortura e de supressão do direito de justiça. É indispensável para uma reflexão séria sobre um dos aspectos do problema criminológico.
Narrado em terceira pessoa, tem-se um visitante (chamado de Explorador), um oficial que comandava a execução (o Oficial), o executor da pena propriamente dito, o réu (um soldado desobediente), o inventor da máquina de execução (já falecido, chamado de Comandante). O Explorador era provavelmente um europeu ilustrado que não se conformava com a barbárie jurídica e com a condenação a qualquer preço, e que despreza as razões do acusado. O Oficial era um celerado, um facínora ocupado em executar sem julgar, embora julgador fosse. Era o juiz da colônia penal. Protagoniza todos os papéis da estrutura judicial. Acusava, julgava, executava. O réu era uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho”. Naquela ilha usavam um pesado uniforme, que não contestavam, porque os uniformes simbolizam uma pátria que não queriam perder.
A narrativa passa-se em um “pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de encostas nuas por todos os lados”, o que sugere uma ilha. Uma passagem do texto indica que o francês era falado no lugar. Esse lugar, no entanto, significa todos os lugares onde viceje a opressão e a violência acusatória. É uma topografia imaginária que sugere a universalidade de Kafka.
Um Explorador visita a ilha. Participa de uma sessão judiciária na qual um réu será executado. Foi condenado (sem direito a defesa) por desobediência e insulto ao superior. O réu não sabe do que foi acusado e desconhece a sentença. O oficial entendia que era inútil revelar o conteúdo do que foi decidido. Como se verá, ele está fadado a conhecer a sentença na própria pele. Não teve oportunidade de se defender. Da denúncia à condenação o tempo foi de uma hora. Exemplo de justiça célere. O oficial recebeu a queixa, tomou notas e imediatamente lavrou a sentença. Não se admitia testemunhas e defesas. O procedimento regular tomaria muito tempo. A execução ocorria numa estranha máquina, que efetivamente ocupa o posto principal no enredo. A máquina, não há dúvidas, é o personagem principal. O oficial descreve a máquina em pormenores.
O visitante sente repulsa pelo modelo. Iniciam-se os procedimentos para a execução. Percebendo que o visitante está incomodado, o oficial ainda tenta influenciá-lo a convencer o novo comandante a respeito da qualidade do instrumento de execução da pena. Nem o novo comandante, e nem ninguém mais na ilha apoiava esse diabólico engenho. O oficial era o único que defendia a máquina. Tinha saudades do comandante que a inventou. Era seu sucessor.
Sentindo a reação do visitante, ou quem sabe tomado pela culpa, o oficial desistiu de executar o condenado. Ofereceu-se em holocausto à própria máquina. No passo final do texto o visitante deixa a ilha, negando-se a ajudar o réu e o executor da pena, que queriam fugir da ilha. Era fora de dúvida para o visitante que o processo era injusto e que a pena era desumana. Livre, o condenado ria sozinho, mansamente.
A máquina para a execução é o que mais chama a atenção no texto de Kafka. Nas palavras do narrador, era um aparelho singular. Funcionava doze horas sem interrupção. A máquina era composta de três partes: cama, desenhador e rastelo. O condenado era amarrado na cama. A cama era coberta de algodão. O rastelo era composto de agulhas dispostas em forma de grades, ou de pontas, que lembravam grandes canetas. A função do rastelo (ou das canetas) era escrever no corpo do condenado a sentença definida pelo executor. No caso, o rastelo, comandado pelo desenhador, escreveria no corpo do executado a frase “honra teu superior”.
Era uma referência ao crime cometido: algo como desacata a autoridade ou insubordinação. No rastelo havia duas agulhas; uma mais longa e uma mais curta. A longa era utilizada para lançar as letras no corpo do condenado. A curta esguichava água que lavava o sangue e mantinha a escrita sempre clara. Era esse o processo. O rastelo escrevia, o algodão absorvia o excesso de tinta, a água lavava o sangue. A sentença, assim, era redigida no corpo do acusado. Escrevia-se cada vez mais fundo. O acusado morreria, sofreria muito, e seria enterrado pelo soldado e pelo oficial. Cumpria-se a sentença. Havia também um tampão de feltro, colocado na boca do condenado, para evitar que ele gritasse. Desobediência ao superior hierárquico, fora esse o crime cometido pelo condenado. O pressuposto do sistema penal do local era o de que a culpa é sempre indubitável.
Essa presunção absoluta de culpa, recorrente nos sistemas inquisitoriais, atende a simulacros de justiça. Não é justiça. É forma procedimental que não leva em conta que a condição humana predica uma dignidade cujo respeito é a medida de um ambiente civilizado. A ficção de Kafka é onipresente e atemporal. Compartilha com seus leitores uma angústia universal, comum a todos nós que desconfiamos que faz mal aos bons quem poupa os maus.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2019, 8h00
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Escrito em 1914 e publicado em 1919, Na Colônia Penal é mais um chocante texto de Franz Kafka (1883-1924). Trata-se de pesadíssima denúncia à arbitrariedade judicial, à supressão do direito de defesa, à eliminação do devido processo legal, à violência dos castigos e à prepotência dos poderosos. É um texto que enfrenta um problema universal. Os temas da justiça e do castigo são inerentes à condição humana. Kafka segue a linha de O Processo, outro eletrizante texto de denúncia da irracionalidade dos arranjos institucionais de punição. Kafka denuncia procedimentos inquisitoriais. Na Colônia Penal é um libelo contra todas as formas de tortura e de supressão do direito de justiça. É indispensável para uma reflexão séria sobre um dos aspectos do problema criminológico.
Narrado em terceira pessoa, tem-se um visitante (chamado de Explorador), um oficial que comandava a execução (o Oficial), o executor da pena propriamente dito, o réu (um soldado desobediente), o inventor da máquina de execução (já falecido, chamado de Comandante). O Explorador era provavelmente um europeu ilustrado que não se conformava com a barbárie jurídica e com a condenação a qualquer preço, e que despreza as razões do acusado. O Oficial era um celerado, um facínora ocupado em executar sem julgar, embora julgador fosse. Era o juiz da colônia penal. Protagoniza todos os papéis da estrutura judicial. Acusava, julgava, executava. O réu era uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho”. Naquela ilha usavam um pesado uniforme, que não contestavam, porque os uniformes simbolizam uma pátria que não queriam perder.
A narrativa passa-se em um “pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de encostas nuas por todos os lados”, o que sugere uma ilha. Uma passagem do texto indica que o francês era falado no lugar. Esse lugar, no entanto, significa todos os lugares onde viceje a opressão e a violência acusatória. É uma topografia imaginária que sugere a universalidade de Kafka.
Um Explorador visita a ilha. Participa de uma sessão judiciária na qual um réu será executado. Foi condenado (sem direito a defesa) por desobediência e insulto ao superior. O réu não sabe do que foi acusado e desconhece a sentença. O oficial entendia que era inútil revelar o conteúdo do que foi decidido. Como se verá, ele está fadado a conhecer a sentença na própria pele. Não teve oportunidade de se defender. Da denúncia à condenação o tempo foi de uma hora. Exemplo de justiça célere. O oficial recebeu a queixa, tomou notas e imediatamente lavrou a sentença. Não se admitia testemunhas e defesas. O procedimento regular tomaria muito tempo. A execução ocorria numa estranha máquina, que efetivamente ocupa o posto principal no enredo. A máquina, não há dúvidas, é o personagem principal. O oficial descreve a máquina em pormenores.
O visitante sente repulsa pelo modelo. Iniciam-se os procedimentos para a execução. Percebendo que o visitante está incomodado, o oficial ainda tenta influenciá-lo a convencer o novo comandante a respeito da qualidade do instrumento de execução da pena. Nem o novo comandante, e nem ninguém mais na ilha apoiava esse diabólico engenho. O oficial era o único que defendia a máquina. Tinha saudades do comandante que a inventou. Era seu sucessor.
Sentindo a reação do visitante, ou quem sabe tomado pela culpa, o oficial desistiu de executar o condenado. Ofereceu-se em holocausto à própria máquina. No passo final do texto o visitante deixa a ilha, negando-se a ajudar o réu e o executor da pena, que queriam fugir da ilha. Era fora de dúvida para o visitante que o processo era injusto e que a pena era desumana. Livre, o condenado ria sozinho, mansamente.
A máquina para a execução é o que mais chama a atenção no texto de Kafka. Nas palavras do narrador, era um aparelho singular. Funcionava doze horas sem interrupção. A máquina era composta de três partes: cama, desenhador e rastelo. O condenado era amarrado na cama. A cama era coberta de algodão. O rastelo era composto de agulhas dispostas em forma de grades, ou de pontas, que lembravam grandes canetas. A função do rastelo (ou das canetas) era escrever no corpo do condenado a sentença definida pelo executor. No caso, o rastelo, comandado pelo desenhador, escreveria no corpo do executado a frase “honra teu superior”.
Era uma referência ao crime cometido: algo como desacata a autoridade ou insubordinação. No rastelo havia duas agulhas; uma mais longa e uma mais curta. A longa era utilizada para lançar as letras no corpo do condenado. A curta esguichava água que lavava o sangue e mantinha a escrita sempre clara. Era esse o processo. O rastelo escrevia, o algodão absorvia o excesso de tinta, a água lavava o sangue. A sentença, assim, era redigida no corpo do acusado. Escrevia-se cada vez mais fundo. O acusado morreria, sofreria muito, e seria enterrado pelo soldado e pelo oficial. Cumpria-se a sentença. Havia também um tampão de feltro, colocado na boca do condenado, para evitar que ele gritasse. Desobediência ao superior hierárquico, fora esse o crime cometido pelo condenado. O pressuposto do sistema penal do local era o de que a culpa é sempre indubitável.
Essa presunção absoluta de culpa, recorrente nos sistemas inquisitoriais, atende a simulacros de justiça. Não é justiça. É forma procedimental que não leva em conta que a condição humana predica uma dignidade cujo respeito é a medida de um ambiente civilizado. A ficção de Kafka é onipresente e atemporal. Compartilha com seus leitores uma angústia universal, comum a todos nós que desconfiamos que faz mal aos bons quem poupa os maus.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2019, 8h00
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