Dilma terminou com 47% dos votos válidos. Para atingir a marca dos 50% que a entroniza no Planalto, precisa apenas herdar 1,5 de cada dez simpatizantes de Marina Silva. Colocando de outra forma, Serra precisaria arregimentar algo como 90% dos eleitores do PV para reverter o quadro. Pelas pesquisas das vésperas do primeiro turno, ele de fato incorpora a maioria dos verdes, mas numa proporção inferior à necessária: 50%. Cerca de 30% tendem a migrar para o PT.
Não são, contudo, essas platitudes aritmético-eleitorais que me motivam a escrever a coluna de hoje. A crer no que dizem marqueteiros, pesquisistas e jornalistas, foi a polêmica em torno do aborto que custou a Dilma a vitória no primeiro turno. Insuflados por clérigos que denunciaram o passado pró-abortista da candidata, eleitores religiosos (principalmente evangélicos, mas também católicos) teriam trocado a petista por Marina, genuinamente evangélica e contrária ao aborto desde criancinha. Para não perder a piada, eu diria que votaram na pessoa certa pelas razões erradas. (Recado aos adivinhadores de sufrágio: não, não votei em Marina).
A tese do efeito aborto é verossímil. Infelizmente, é difícil comprová-la porque os dois principais institutos de pesquisa, o Datafolha e o Ibope, na reta final, para reduzir o tempo das entrevistas, deixaram de perguntar aos eleitores a sua fé. O Datafolha excomungou a questão religiosa no final de junho, e o Ibope, em 23 de setembro. Os dados deste último, contudo, chegaram a registrar um esvaziamento de Dilma entre os evangélicos no mês passado.
O fato de o comando petista ter reagido firmemente procurando lideranças religiosas nos últimos dias da campanha e esconjurando a descriminação do aborto de seu programa também é sugestivo de que as sondagens do partido captaram a tendência, deflagrando uma operação de redução de danos.
Se confirmado como um fenômeno de grandes dimensões, seria a primeira vez que a religião se torna uma variável relevante em eleições majoritárias no Brasil. É justamente aí que mora o problema.
Longe de mim sugerir que pastores e padres não têm o direito de convencer seus rebanhos a votar segundo a palavra de Deus, ainda que esta esteja aberta às mais diferentes interpretações, muitas vezes inconciliáveis entre si. A democracia só existe quando as pessoas são livres para dizer o que pensam, mesmo que sejam besteiras ou fantasias delirantes, e o eleitor vota prestando contas apenas à sua consciência. Mas ninguém jamais afirmou que a democracia era a autoestrada para o paraíso. Como celebremente observou o estadista britânico Winston Churchill: 'Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos'.
O perigo de utilizar uma lógica espiritual para pautar a política é
que ela introduz absolutos morais em questões que precisam ser
resolvidas de uma perspectiva essencialmente prática, normalmente com
recurso a negociações. Em suma, tudo o que não precisamos é trazer para
as leis e políticas públicas é a noção de pecado. É claro que existe um
equivalente laico do conceito de pecado, que é o crime. A diferença é
que, enquanto este último tem uma justificação exclusivamente racional
em bases mais ou menos utilitárias e comporta gradações, o primeiro,
por ter sido ditado por uma autoridade superior e supostamente
incontestável, nos chega na forma de pacotes inegociáveis. De certo
modo, pensar religiosamente é negar a política.
A condenação da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani à morte por
apedrejamento é um exemplo eloquente do tipo de problema com que
estamos lidando. Ao contrário do que muitos possam pensar, atirar
pedras em pecadores não é uma crueldade exclusiva do islamismo.
'Se se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, todos os
dois deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma
forma. Assim, tirarás o mal do meio de ti; Se uma virgem se tiver
casado, e um homem, encontrando-a na cidade, dormir com ela,
conduzireis um e outro à porta da cidade e os apedrejareis até que
morram: a donzela, porque, estando na cidade, não gritou, e o homem por
ter violado a mulher do próximo. Assim, tirarás o mal do meio de ti'.
Essas passagens não foram tiradas do nobre Alcorão, mas da sagrada
Bíblia judaico-cristã, mais especificamente do Deuteronômio 22:22-24.
Os muçulmanos não inventaram, portanto, o apedrejamento de
adúlteros. Na verdade, o Alcorão determina para quem for apanhado
cometendo esse delito uma pena bem mais leve, de apenas cem chicotadas.
É o "Hadith" --a narrativa dos atos do profeta que, junto com o
Alcorão, constitui a base da "sharia", a lei islâmica-- que autoriza,
depois das chibatadas, a lapidação.
Detalhes legais à parte, a diferença entre o islã e o Ocidente hoje
é que, enquanto este último assistiu ao longo dos últimos três ou
quatro séculos a uma progressiva laicização das instituições e mesmo da
vida, o primeiro permanece fiel a suas origens e textos religiosos.
Talvez seja excessivo afirmar que o Ocidente se tornou irreligioso,
mas é certo que acabou ficando pouco zeloso nessa matéria. Foi essa
oportuna avacalhação que fez com que as fogueiras inquisitoriais não
voltassem a acender-se e permitiu que a ciência avançasse por terrenos
que antes lhe eram vedados. Vale lembrar que, a depender da Igreja
Católica, não teríamos nem ao menos desenvolvido a anatomia, a mais
básica das disciplinas médicas.
A grande maioria dos ocidentais não chegou ao ponto de negar a
existência de Deus --e dificilmente chegará--, mas relegou o sagrado a
uma espécie de limbo. Um europeu típico --nas Américas a coisa é um
pouco mais complicada-- diz que acredita em Deus e até vai a um culto
cristão de vez em quando, mais por hábito do que por convicção
profunda. Lê muito pouco a Bíblia e, felizmente, nem mesmo cogita de
implementar as passagens que mandam apedrejar adúlteros --ou assassinar
ateus, acrescento de olho em meus próprios interesses.
Não é só. Como procurei mostrar numa matéria
que escrevi há pouco para a edição impressa da Folha, existe uma
correlação negativa forte entre o grau de religiosidade de um país e
seu sucesso econômico. Deus e pobreza andam de braços dados. Quem causa
o que é uma questão aberta a interpretações.
É dessa pequena revolução iluminista que teve lugar no Ocidente que
o islã se ressente. Lá muito mais do que cá, Estado e religião se
confundem e tomam-se ao pé da letra as passagens do livro sagrado que
descrevem o sofrimento futuro dos infiéis e as determinações do
"Hadith" para que os apóstatas sejam assassinados.
Não estou evidentemente nem chegando perto de sugerir que essa
novela em torno do aborto --e a vergonhosa capitulação de partidos que
sempre defenderam um Estado laico-- nos coloca mais perto de uma
teocracia. O próprio desenho institucional do país já veta essa
possibilidade. Mas não é sem tristeza que assisto à negação da lógica
laicista, que é a melhor coisa que aconteceu ao Ocidente nos últimos
300 anos.
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha.
Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de
Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.
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