Ainda sobre o prato do mês: política e religião
Luis Veiga/Getty Images
Cerimônia de culto aos orixás do Camdomblé, no Rio de Janeiro
|
Ronaldo Correia de Brito
Em meio à disputa pelos votos de evangélicos e católicos, Marina Silva comentou que a tradição religiosa do povo brasileiro deve ser levada em consideração. Talvez ela peça que se considerem os valores religiosos na hora de abordar questões como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de filhos por casais homossexuais, os vínculos entre Igreja e Estado.
Não sei se Marina Silva refere-se apenas à tradição cristã, ou se também
considera a cultura religiosa indígena e negra. Católicos e evangélicos
não deram nenhum exemplo de respeito pela religião praticada por negros
e índios, desde o nosso descobrimento. Jesuítas chegavam ao Brasil com o
intuito de evangelizar os "gentios", de transformá-los em cristãos
através do batismo, não respeitando o animismo de suas crenças e
impondo-lhes conceitos estranhos como o de céu e inferno. Pastores
protestantes ainda pregam o evangelho entre remanescentes tribais,
sobretudo na Amazônia.
A Igreja Católica sequer reconhecia que índios e negros tivessem alma,
que fossem humanos. Isso facultava o direito aos colonizadores de
escravizá-los, torturá-los e matá-los. Numa monarquia vinculada ao
clero, todo acréscimo de poder do rei significava, igualmente, um
incremento do poder da Igreja. E riqueza, muita riqueza. Os católicos,
ao contrário dos protestantes, condenavam a usura como pecado, mas nunca
deixaram de praticá-la por vias indiretas.
Os padres discriminavam os negros e suas crenças, mesmo quando os
convertiam ao catolicismo. Não permitiam o acesso deles ao interior dos
templos, obrigando-os a assistirem missa do lado de fora, ou em templos
construídos por confrarias de escravos, freqüentados apenas por
escravos. Proliferaram as igrejas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos e Pardos, no Brasil colonial. Essas mesmas instituições
religiosas que agora demonizam candidatos e partidos com discurso
progressista, também demonizam as religiões dos orixás e dos xamãs.
No Recife, no tempo de Gilberto Freyre, a polícia invadia os terreiros
onde se praticava as religiões africanas e levava para a delegacia os
instrumentos rituais. Nossa propalada liberdade de culto foi sempre
claudicante, um apartheid bem disfarçado. Algum candidato apareceu no
guia eleitoral, dentro do pegi de um terreiro? Ou se disse filho de
Oxalá, Iansã ou Xangô e beijou os ferros de Ogum? É claro que não. Os
cultos africanos estão desprestigiados e certamente isso daria pouco
voto. É melhor tentar aparecer na romaria de Canindé, no Ceará, em meio
aos milhares de romeiros de São Francisco. Felizmente, o padre vetou o
candidato: proclamou a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.
Tomara que o debate em torno das religiões se prolongue de maneira mais
séria e objetiva após o 31 de outubro. Temos uma herança judaico-cristã e
não seríamos o povo que somos sem o legado das nações negras. Os
índios entram nesse caldo mestiço, ao qual se somaram italianos,
japoneses, alemães, sírios, libaneses, franceses, e etc., etc., etc.
Mestiçagem de Gilberto Freyre ou antropofagia de Oswald de Andrade? Não
importa. Interessa o respeito pela cultura híbrida. E isso se alcança
não demonizando crenças e pontos de vista de cada um.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu
Faca, Livro dos Homens e Galiléia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário