18.10.2019 às 7h00
Investigação inédita sobre as ajudas da fadista à oposição anti-regime e aos presos políticos é capa da nova edição da VISÃO Biografia, que chega esta sexta às bancas
A
6 de outubro de 1999, dia da morte de Amália Rodrigues, o escritor José
Saramago levantou o véu sobre as frequentes ajudas da “rainha do fado”
aos presos políticos e as suas relações clandestinas com comunistas e
outros resistentes à ditadura. Contactos que foram mantidos durante
décadas e ultrapassaram o universo artístico. Bastante polémica à época,
a revelação do Prémio Nobel era, no entanto, apenas uma das muitas
pontas soltas da história secreta sobre a cantora símbolo do País.
Afinal,
qual foi a verdadeira extensão da colaboração de Amália com a oposição à
ditadura? Quanto tempo durou e quem foram os principais “correios” e
beneficiários dos seus apoios? Como tudo foi mantido em segredo, mesmo
em democracia? Como lidou ela com o regime e com as pressões da PIDE?
Este conjunto de perguntas foi o ponto de partida da investigação
inédita, vencedora de uma bolsa de investigação jornalística da Fundação
Calouste Gulbenkian, à qual o grande repórter Miguel Carvalho se
dedicou durante um ano com o apoio da VISÃO. Resultante de inúmeras
pesquisas e de mais de uma centena de contactos e entrevistas com
protagonistas e testemunhas de uma época, o trabalho, dividido em quatro
capítulos ao longo de quase 60 páginas, constitui o tema de capa do
terceiro número da VISÃO Biografia que esta sexta, 18, aparecerá nas
bancas, antecipando o centenário do nascimento da fadista que se
assinala no próximo ano.
Instrumentalizada
e promovida pela ditadura, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial e
não obstante a autonomia, a solidez e a excelência do seu percurso e
repertório, Amália chegaria à revolução de 25 de Abril de 1974
carregando o fardo de “cantora do regime”. Um rótulo a rever. Até
porque, ainda recentemente – segundo um artigo do jornal Contacto – a
sugestão de atribuir o nome de Amália a uma rua no Luxemburgo foi vetada
por parte de elementos da comunidade portuguesa que a consideram um
símbolo da ditadura e dos famosos três F do regime: fado, futebol e Fátima.
Amália, lado B
Na
verdade, as primeiras colaborações clandestinas da cantora com a
resistência ao Estado Novo terão surgido em finais da década de 1940 e
isso incluiu apoios financeiros regulares e consideráveis às famílias
dos presos políticos, que se prolongaram até à revolução. Embora a sua
extensão e a sua profundidade tenham permanecido até hoje por
investigar, os laços, solidariedades e proximidades de Amália com
figuras e setores ligados à oposição democrática durante a ditadura,
incluindo o próprio PCP, foram inequívocos, ainda que clandestinos e, na
maioria dos casos, sem obedecer a objetivos políticos por parte dela.
Do mesmo modo, este trabalho da VISÃO Biografia aprofunda episódios que
iluminam a faceta desconhecida de Amália na sua relação com o Estado
Novo e o próprio Salazar, sem esquecer os diversos jogos do gato e do
rato da fadista com a polícia política, em Portugal e no estrangeiro.
No
editorial que acompanha esta edição especial, a diretora da VISÃO,
Mafalda Anjos, releva a “natureza humana complexa” de Amália, destacando
“a astúcia com que se movimentou entre dois mundos, a inteligência com
que habilmente se fingia alheada dos problemas dos dois lados e a
compaixão e generosidade pura com que partilhava muito do que tinha”. Na
verdade, “há, de facto, uma Amália ainda maior do que a que conhecíamos
até hoje”. A revista que chega esta sexta aos leitores é, pois, um
relato inédito da verdadeira vida secreta de Amália. “Com os mais
preciosos detalhes de como a sua ligação às esquerdas intelectuais foi
muito para lá da cultura. Amália fintou a PIDE, financiou elementos do
Partido Comunista e ajudou presos políticos que se opunham a Salazar, ao
mesmo tempo que se movia nas altas-rodas do regime e era mostrada ao
mundo como símbolo máximo de Portugal e do Estado Novo. Para lá da diva
da canção, havia afinal outra Amália: a do ser humano compassivo, com
uma consciência social e política, algo que nunca até agora lhe tinha
sido devidamente reconhecido. E que ela própria, em parte, negava”,
assinala Mafalda Anjos.
Parafraseando
o musicólogo Rui Vieira Nery, Amália é ainda vítima de vermos e amarmos
nela coisas diferentes, às vezes redutoras. Realidade, imagem e devoção
confundem-se. Estereótipos e preconceitos misturam-se. Santificada,
mitificada ou execrada, a sua figura foi moldada a todas as narrativas e
“religiões”, consoante os casos, os interesses e as épocas. Ela, porém,
pertence a uma categoria à parte, não moldável. Artística e humanamente
falando. “Fontes e geografias contrastadas permitiram-me aproximar a
lupa sobre a mulher que cantou o seu povo pelo mundo, consciente da
independência do seu coração, do seu livre pensamento e dos gestos
clandestinos que, em vez de a divinizarem, antes revelam as costuras da
sua imperfeição e os traços da sua profunda humanidade”, explica Miguel
Carvalho neste número da VISÃO Biografia. E se dúvidas havia sobre a
urgência deste projeto, a morte de dois dos preciosos entrevistados
deste número já no decurso da investigação (Ruben de Carvalho e Armando
Caldas) comprova a responsabilidade que cabe também ao jornalismo na
divulgação de relatos esquecidos ou ignorados da nossa História,
contribuindo assim para a preservação da memória coletiva.
A
poucos meses das comemorações do centenário de Amália Rodrigues, cujo
programa oficial deverá ser divulgado em breve, a revelação desta faceta
humana da nossa artista maior talvez permita resgatá-la, de uma vez por
todas, dos olhares preconceituosos, santificados ou condicionados por
deturpações ideológicas.
Uma edição de luxo
A
infância em Alcântara, a adoração familiar por Salazar e a associação
de Amália Rodrigues aos comunistas do fado por parte da polícia
política, a relação secreta com a resistência à ditadura, as ameaças do
regime e as denúncias contra a alegada “princesa da PIDE”, os bastidores
da prisão de Alain Oulman, as pontes com a célula clandestina do PCP
para os espetáculos e a revolução antes da revolução.
São
estes os temas principais da investigação inédita que faz o tema de
capa da VISÃO Biografia. Mas as 132 páginas deste número têm muito mais
para contar.
Além
de perfis de David Mourão-Ferreira, Alain Oulman, Rui Valentim de
Carvalho e Celeste Rodrigues, esta edição especial leva-nos aos lugares
onde Amália ainda “mora”, traça o retrato do seu “estilo de diva”, viaja
até às origens do fado, entrevista o “viola” Joel Pina (que também
comemora o seu centenário em 2020), sugere uma lista de discos e livros
obrigatórios para conhecer a história e a obra da cantora, resgata
frases menos conhecidas de Amália, mostra a notável galeria de herdeiros
e herdeiras da fadista e conta ainda com artigos exclusivos da autoria
de David Ferreira, Frederico Santiago e Joaquim Vicente Rodrigues,
presidente da Fundação Amália Rodrigues.
Fonte: http://visao.sapo.pt/atualidade/2019-10-18-Amalia-revelada-o-apoio-a-resistencia-antifascista-e-a-ligacao-aos-comunistas
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