O tema da execução
provisória da pena voltou à pauta do dia. O eminente presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, pautou para esta
quinta-feira (17/10) o julgamento das Ações Diretas de
Constitucionalidade (ADCs 43, 44 e 54), que visam à reforma do
entendimento adotado por apertada maioria pela Corte em 2016, a partir
do qual se autorizou a execução antecipada da pena após prolação de
acórdão em segunda instância.
Na ocasião, o Supremo definiu que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”.
As referidas ADCs, por outro lado, sustentam a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, sob o correto argumento de que tal artigo está em plena sintonia com o inciso LVII do artigo 5º. da Constituição Federal, que estabelece o princípio de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Portanto, ao atestar a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, o Supremo consideraria ilegal a prisão após segunda instância, pois, sem o trânsito em julgado, não se aplica pena sobre quem ainda não é culpado.
A provisoriedade da execução da pena afeta diretamente o princípio da presunção de inocência, pois este assegura ao acusado não lhe seja adotada medida irreversível antes do trânsito em julgado. Afinal, na hipótese de o acusado vir a ser inocentado nos Tribunais Superiores, não há como devolver-lhe o tempo de liberdade suprimido.
O argumento da efetividade do processo em menor tempo não pode, de forma alguma, nortear entendimento contrário à literalidade, à semântica, à dicção norma cogente da Constituição.
Deve-se relembrar que o Constituinte, ao representar a vontade e os anseios soberanos emanados do povo, gerou pacto social à Nação e primou por manter o equilíbrio entre o poder punitivo do Estado e o direito à defesa e à liberdade do acusado. Qualquer alteração neste equilíbrio adviria em flagrante oposição aos ditames insculpidos pela Constituição Federal.
Enquanto houver recurso, não há trânsito em julgado. E não se trata apenas do recurso de apelação, mas também do especial e do extraordinário, pois somente após esgotadas todas as instâncias recursais se alcança o momento da execução da sentença penal condenatória. Destarte, o entendimento anunciado por alguns dos excelentíssimos ministros de se executar a pena após julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça também se demonstra contrário à norma constitucional.
Isto não significa vedar a prisão antes do trânsito em julgado. Pelo contrário, a Constituição ampara e a lei federal (art. 283 CPP) dispõe sobre essa possibilidade, por meio das prisões cautelares, processuais e não punitivas, em situações específicas, seja como garantia da ordem pública e econômica, por conveniência da instrução probatória criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.
A Constituição, portanto, atenta à possibilidade de mudanças de forças políticas no poder e de eventuais decisões contrárias a seus preceitos, estabelece proteção máxima a algumas de suas disposições mandamentais, as quais não podem ser modificadas, de modo a preservar a essência do Estado de Direito.
Cabe ressaltar que são quatro as cláusulas pétreas definidas em nossa Constituição Federal: (i) a forma federativa de Estado; (ii) o voto direto, secreto, universal e periódico; (iii) a separação dos Poderes, e (iv) os direitos e as garantias individuais.
Não há qualquer dúvida de que a presunção de inocência configura verdadeira garantia individual, fundamental para a ocorrência de um processo penal democrático e justo, irradiando seus postulados por toda a persecução penal, desde a investigação, até o final do processo. De modo que, segundo seu postulado, todas as pessoas têm direito de ser tratadas como se inocentes fossem, até o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Ao tratar sobre o tema, o insigne professor doutor Renato de Mello Jorge Silveira, em parecer ofertado ao Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP para instruir seu ingresso como amicus curiae nos autos da ADC nº 43 — hoje respeitável presidente deste centenário sodalício — aduziu, de forma enfática e percuciente sobre a grande conquista do Estado Democrático de Direito, para quem “a presunção de inocência não somente se mostra como um direito subjetivo público, mas, também, um primado normativo e, dessa forma, parece aprioristicamente incabível sua restrição por modificação de entendimento jurisprudencial (...) Assim, a garantia da presunção de não-culpabilidade, ou de inocência, na verdade é garantia maior, verdadeiramente, da dignidade da pessoa humana. Em sentido contrário, o não respeito à presunção de inocência, ataca, mortalmente, tal dignidade”.
Julgamentos, decisões ou aprovação de normas que não protejam o instituto jurídico da presunção de inocência geram complexo de decisões divergentes nos tribunais, instabilidade e insegurança por conta da fragilidade de sua aplicação; enquanto o esperado é que normas e decisões se pautem para a expansão e o aprofundamento da norma constitucional, vedando sua restrição ou violação, e não o contrário.
Afinal, é dever do legislador, da defesa, do Ministério Público e dos magistrados garantir que o direito fundamental não seja inferiorizado, relativizado, flexibilizado ou modulado, , a fim de não afetar a dimensão objetiva da norma, que pauta a atividade jurisdicional e legislativa.
O eminente e sempre lúcido decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, ao acentuar a importância da presunção de inocência, proferiu verdadeira oração, ressaltando que “a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida que sucedem os graus de jurisdição. Isso significa, portanto, que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixará de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República. Enfatizo, por necessário, que o ‘status poenalis’ não pode sofrer – antes de sobrevir o trânsito em julgado de condenação judicial – restrições lesivas à esfera jurídica das pessoas em geral e dos cidadãos em particular”.
Nessa linha, tem-se que o texto atual do artigo 283 do Código de Processo Penal se demonstra irretocável, pois mantém o trânsito em julgado como termo a possibilitar o início da execução, conforme a instituição da presunção de inocência, sendo, portanto, desnecessária qualquer alteração e de rigor sua preservação.
O princípio da presunção de inocência, de igual forma, conforme redigido o inciso LVII do artigo 5º. da Constituição Federal, está em absoluta harmonia com os demais princípios e direitos fundamentais ínsitos na Carta Magna, como o da liberdade; da igualdade; da privacidade; da intimidade; do trabalho; do livre exercício de atividade lícita e de desenvolvimento econômico; da relação familiar; da propriedade; da ampla defesa; enfim, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.
O princípio da presunção de inocência encontra-se previsto não só na Constituição brasileira, como também na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Diante dessa conjuntura, eminentes ministros do STF vêm concedendo decisões monocráticas, no sentido de reconhecer direito de réus aguardarem em liberdade o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Tais decisões envolvem, sobretudo, situações específicas que tencionam a necessidade de reconhecimento do princípio da presunção de inocência, tais como: sentenças condenatórias que garantem ao réu direito de recorrer em liberdade — se o Ministério Público não recorre deste ponto, ocorre coisa julgada e não poderá levar à execução provisória da pena; réus inocentados em primeiro grau e condenados apenas no segundo; execução da pena restritiva de direitos; e, por fim, condenados em única instância, seja na segunda instância, seja nos Tribunais Superiores.
Alguns desses recursos foram afetados ao plenário do Supremo Tribunal Federal pelo ínclito ministro Ricardo Lewandowski (o que antecipou o julgamento das mencionadas Ações Diretas de Constitucionalidade), todavia, conforme antes apontado, não se pode admitir sejam diferenciadas tais situações processuais, pois tratar-se-ia de modular efeitos da clara e irrevogável cláusula pétrea, reduzindo-a a norma processual e negando-lhe sua inerente cogência, posto na verdade se tratar de preceito fundamental de ordem material, obrigatória, transcendente e imutável.
Ou seja, o anseio punitivista tem-se expandido de forma avessa, o que reforça a necessidade de se preservar a literal redação do preceito constitucional. Tanto é assim, que nos dizeres de 2016 do ínclito ministro Celso de Mello “de 2006, ano em que ingressei no Supremo Tribunal Federal, até a presente data, 25,2% dos recursos extraordinários criminais forma providos por esta Corte, e 3,3% providos parcialmente.(...)”. Sem contar as concessões de ordem em habeas corpus, que aumentam sobremaneira a estatística.
A construção jurisprudencial vem se formando de modo adverso, ao determinar o cumprimento da pena após julgamento pelo colegiado em Segunda Instância, ou seja, esta cadeia sucessiva de decisões gera efeito pernóstico, se não observada a supremacia da cláusula pétrea, agindo os julgadores com leitura in malam partem.
Nas palavras de Renato de Mello Jorge Silveira, no mesmo parecer antes mencionado, aclarando de forma didática: “E, diz-se, in malam partem, porque quem verdadeiramente é aqui agredido é a sociedade como um todo, ou, mais evidentemente, os direitos e garantias individuais”.
Nesse cenário de insegurança jurídica, ainda há o fator sorte. Estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria com apoio do IASP, acostado aos autos da ADC nº 43, analisando 57.625 acórdãos prolatados pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo indicou que a taxa de rejeição de recursos varia de 16% a 81% (respectivamente, na 12ª. e 4ª. Câmaras Criminais).
A mesma postura ocorre em outros Tribunais, inclusive Regionais Federais, como é o caso das Segunda e Quarta Regiões, sendo que nesta última foi editada Súmula em direta contrariedade ao preceito constitucional e desconsiderando a premissa maior de que é inadmissível essa construção jurisprudencial de forma transversa à supremacia do direito subjetivo público.
Paralelamente, no Legislativo, encontra-se na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, o PLS nº 147/2018. Este projeto de lei, entretanto, configura manobra legal para regulamentar a execução de pena antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, notadamente após julgamento do recurso em segunda instância, contrariando o expresso mandamento da Constituição.
A intenção é incluir novo parágrafo na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, no artigo que define a coisa julgada como aquela decisão judicial contra a qual já não cabe mais recurso. O parágrafo estabeleceria que: “Para fins de cumprimento de sentença penal condenatória, o trânsito em julgado será considerado a partir da condenação em 2º grau, em única instância ou após julgamento de recurso”.
Como a intenção é direcionada a “solucionar” a inconstitucionalidade da execução provisória, a alteração legal limita-se a redefinir e delimitar o trânsito em julgado somente no Direito Penal. Assim, enquanto nos demais ramos do direito a coisa julgada material se efetiva com a impossibilidade recursal, apenas no direito penal se daria após esgotada a 2ª instância.
A lei não deve incitar o julgador e possibilitar manobra contrária à presunção de inocência, mas sim viger no sentido de impor seu respeito por todos os órgãos do Estado, em suas três esferas de poder.
Nesse sentido, tramita no Congresso a PEC nº 410/2018, que pretende emendar o dispositivo constitucional insculpido no inciso LVII do artigo 5º, para dispor que: “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Como bem ressaltado linhas acima, não é possível alterar a norma fundamental por meio de Emenda Constitucional, pois o preceito foi instituído como cláusula pétrea.
Por final, o Projeto de Lei Anticrime, de iniciativa do ministro da Justiça, ao propor alterações ao Código de Processo Penal e ao Código Penal denominadas “Medidas para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância”, também incorre em inversão ao princípio constitucional da presunção de inocência, retrocedendo à presunção de culpabilidade.
A principal alteração do projeto de lei está na inserção à parte final do artigo 283, do Código de Processo Penal, da expressão “ou exarada por órgão colegiado”, visando a regulamentar a execução de pena antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, especialmente após julgamento do recurso em segunda instância, contrariando, outrossim, o expresso mandamento da Constituição.
Tal alteração demonstra a extensão da subjetividade antes exercida pelo então magistrado, a qual deve ser evitada ainda mais em razão das divulgadas condutas alheias ao devido processo legal, com parcialidade, bem como com determinação de medidas excessivas, como a banalização das conduções coercitivas e prisões cautelares, de forma estratégica, desleal, sempre com a indevida publicidade, quebras de sigilo expostas e aparato midiático, tudo sem observância ao direito dos investigados ou acusados de terem preservadas suas garantias fundamentais. Esse dispositivo, de forma escorreita, foi afastado pelo Grupo de Trabalho criado na Câmara dos Deputados.
O princípio da presunção de inocência, portanto, não deve ser tratado apenas com viés processual, mas sim como norma cogente constitucional atrelada a juízo de certeza e limitadora de excessos no exercício do poder punitivo, de obrigatória aplicação, sustentáculo da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo vedada sua relativização ou flexibilização por construção normativa ou judicial, sob pena de mutilação de conquista democrática, pilar do ordenamento e estrutura do Estado de Direito.
Para finalizar, as palavras sempre atuais de Rui Barbosa (Antologia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012): “O que hoje semeais, colhereis amanhã. Semeais opressão, sereis oprimidos. Semeais o engano, sereis espoliados. Posso perdoar, e tenho perdoado aos (...) que perseguem. Mas, nunca perdoarei as opiniões perseguidoras. Porque os homens passam, e as opiniões duram, os homens perecem, e as opiniões germinam. Onipotentes na política de um dia, os perseguidores se submergem na do outro. Mas as doutrinas perseguidoras sobrevivem à política que as gerou, para perseguir amanhã nas mãos da política hoje perseguida”.
Na ocasião, o Supremo definiu que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”.
As referidas ADCs, por outro lado, sustentam a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, sob o correto argumento de que tal artigo está em plena sintonia com o inciso LVII do artigo 5º. da Constituição Federal, que estabelece o princípio de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Portanto, ao atestar a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, o Supremo consideraria ilegal a prisão após segunda instância, pois, sem o trânsito em julgado, não se aplica pena sobre quem ainda não é culpado.
A provisoriedade da execução da pena afeta diretamente o princípio da presunção de inocência, pois este assegura ao acusado não lhe seja adotada medida irreversível antes do trânsito em julgado. Afinal, na hipótese de o acusado vir a ser inocentado nos Tribunais Superiores, não há como devolver-lhe o tempo de liberdade suprimido.
O argumento da efetividade do processo em menor tempo não pode, de forma alguma, nortear entendimento contrário à literalidade, à semântica, à dicção norma cogente da Constituição.
Deve-se relembrar que o Constituinte, ao representar a vontade e os anseios soberanos emanados do povo, gerou pacto social à Nação e primou por manter o equilíbrio entre o poder punitivo do Estado e o direito à defesa e à liberdade do acusado. Qualquer alteração neste equilíbrio adviria em flagrante oposição aos ditames insculpidos pela Constituição Federal.
Enquanto houver recurso, não há trânsito em julgado. E não se trata apenas do recurso de apelação, mas também do especial e do extraordinário, pois somente após esgotadas todas as instâncias recursais se alcança o momento da execução da sentença penal condenatória. Destarte, o entendimento anunciado por alguns dos excelentíssimos ministros de se executar a pena após julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça também se demonstra contrário à norma constitucional.
Isto não significa vedar a prisão antes do trânsito em julgado. Pelo contrário, a Constituição ampara e a lei federal (art. 283 CPP) dispõe sobre essa possibilidade, por meio das prisões cautelares, processuais e não punitivas, em situações específicas, seja como garantia da ordem pública e econômica, por conveniência da instrução probatória criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.
A Constituição, portanto, atenta à possibilidade de mudanças de forças políticas no poder e de eventuais decisões contrárias a seus preceitos, estabelece proteção máxima a algumas de suas disposições mandamentais, as quais não podem ser modificadas, de modo a preservar a essência do Estado de Direito.
Cabe ressaltar que são quatro as cláusulas pétreas definidas em nossa Constituição Federal: (i) a forma federativa de Estado; (ii) o voto direto, secreto, universal e periódico; (iii) a separação dos Poderes, e (iv) os direitos e as garantias individuais.
Não há qualquer dúvida de que a presunção de inocência configura verdadeira garantia individual, fundamental para a ocorrência de um processo penal democrático e justo, irradiando seus postulados por toda a persecução penal, desde a investigação, até o final do processo. De modo que, segundo seu postulado, todas as pessoas têm direito de ser tratadas como se inocentes fossem, até o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Ao tratar sobre o tema, o insigne professor doutor Renato de Mello Jorge Silveira, em parecer ofertado ao Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP para instruir seu ingresso como amicus curiae nos autos da ADC nº 43 — hoje respeitável presidente deste centenário sodalício — aduziu, de forma enfática e percuciente sobre a grande conquista do Estado Democrático de Direito, para quem “a presunção de inocência não somente se mostra como um direito subjetivo público, mas, também, um primado normativo e, dessa forma, parece aprioristicamente incabível sua restrição por modificação de entendimento jurisprudencial (...) Assim, a garantia da presunção de não-culpabilidade, ou de inocência, na verdade é garantia maior, verdadeiramente, da dignidade da pessoa humana. Em sentido contrário, o não respeito à presunção de inocência, ataca, mortalmente, tal dignidade”.
Julgamentos, decisões ou aprovação de normas que não protejam o instituto jurídico da presunção de inocência geram complexo de decisões divergentes nos tribunais, instabilidade e insegurança por conta da fragilidade de sua aplicação; enquanto o esperado é que normas e decisões se pautem para a expansão e o aprofundamento da norma constitucional, vedando sua restrição ou violação, e não o contrário.
Afinal, é dever do legislador, da defesa, do Ministério Público e dos magistrados garantir que o direito fundamental não seja inferiorizado, relativizado, flexibilizado ou modulado, , a fim de não afetar a dimensão objetiva da norma, que pauta a atividade jurisdicional e legislativa.
O eminente e sempre lúcido decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, ao acentuar a importância da presunção de inocência, proferiu verdadeira oração, ressaltando que “a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida que sucedem os graus de jurisdição. Isso significa, portanto, que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixará de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República. Enfatizo, por necessário, que o ‘status poenalis’ não pode sofrer – antes de sobrevir o trânsito em julgado de condenação judicial – restrições lesivas à esfera jurídica das pessoas em geral e dos cidadãos em particular”.
Nessa linha, tem-se que o texto atual do artigo 283 do Código de Processo Penal se demonstra irretocável, pois mantém o trânsito em julgado como termo a possibilitar o início da execução, conforme a instituição da presunção de inocência, sendo, portanto, desnecessária qualquer alteração e de rigor sua preservação.
O princípio da presunção de inocência, de igual forma, conforme redigido o inciso LVII do artigo 5º. da Constituição Federal, está em absoluta harmonia com os demais princípios e direitos fundamentais ínsitos na Carta Magna, como o da liberdade; da igualdade; da privacidade; da intimidade; do trabalho; do livre exercício de atividade lícita e de desenvolvimento econômico; da relação familiar; da propriedade; da ampla defesa; enfim, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.
O princípio da presunção de inocência encontra-se previsto não só na Constituição brasileira, como também na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Diante dessa conjuntura, eminentes ministros do STF vêm concedendo decisões monocráticas, no sentido de reconhecer direito de réus aguardarem em liberdade o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Tais decisões envolvem, sobretudo, situações específicas que tencionam a necessidade de reconhecimento do princípio da presunção de inocência, tais como: sentenças condenatórias que garantem ao réu direito de recorrer em liberdade — se o Ministério Público não recorre deste ponto, ocorre coisa julgada e não poderá levar à execução provisória da pena; réus inocentados em primeiro grau e condenados apenas no segundo; execução da pena restritiva de direitos; e, por fim, condenados em única instância, seja na segunda instância, seja nos Tribunais Superiores.
Alguns desses recursos foram afetados ao plenário do Supremo Tribunal Federal pelo ínclito ministro Ricardo Lewandowski (o que antecipou o julgamento das mencionadas Ações Diretas de Constitucionalidade), todavia, conforme antes apontado, não se pode admitir sejam diferenciadas tais situações processuais, pois tratar-se-ia de modular efeitos da clara e irrevogável cláusula pétrea, reduzindo-a a norma processual e negando-lhe sua inerente cogência, posto na verdade se tratar de preceito fundamental de ordem material, obrigatória, transcendente e imutável.
Ou seja, o anseio punitivista tem-se expandido de forma avessa, o que reforça a necessidade de se preservar a literal redação do preceito constitucional. Tanto é assim, que nos dizeres de 2016 do ínclito ministro Celso de Mello “de 2006, ano em que ingressei no Supremo Tribunal Federal, até a presente data, 25,2% dos recursos extraordinários criminais forma providos por esta Corte, e 3,3% providos parcialmente.(...)”. Sem contar as concessões de ordem em habeas corpus, que aumentam sobremaneira a estatística.
A construção jurisprudencial vem se formando de modo adverso, ao determinar o cumprimento da pena após julgamento pelo colegiado em Segunda Instância, ou seja, esta cadeia sucessiva de decisões gera efeito pernóstico, se não observada a supremacia da cláusula pétrea, agindo os julgadores com leitura in malam partem.
Nas palavras de Renato de Mello Jorge Silveira, no mesmo parecer antes mencionado, aclarando de forma didática: “E, diz-se, in malam partem, porque quem verdadeiramente é aqui agredido é a sociedade como um todo, ou, mais evidentemente, os direitos e garantias individuais”.
Nesse cenário de insegurança jurídica, ainda há o fator sorte. Estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria com apoio do IASP, acostado aos autos da ADC nº 43, analisando 57.625 acórdãos prolatados pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo indicou que a taxa de rejeição de recursos varia de 16% a 81% (respectivamente, na 12ª. e 4ª. Câmaras Criminais).
A mesma postura ocorre em outros Tribunais, inclusive Regionais Federais, como é o caso das Segunda e Quarta Regiões, sendo que nesta última foi editada Súmula em direta contrariedade ao preceito constitucional e desconsiderando a premissa maior de que é inadmissível essa construção jurisprudencial de forma transversa à supremacia do direito subjetivo público.
Paralelamente, no Legislativo, encontra-se na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, o PLS nº 147/2018. Este projeto de lei, entretanto, configura manobra legal para regulamentar a execução de pena antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, notadamente após julgamento do recurso em segunda instância, contrariando o expresso mandamento da Constituição.
A intenção é incluir novo parágrafo na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, no artigo que define a coisa julgada como aquela decisão judicial contra a qual já não cabe mais recurso. O parágrafo estabeleceria que: “Para fins de cumprimento de sentença penal condenatória, o trânsito em julgado será considerado a partir da condenação em 2º grau, em única instância ou após julgamento de recurso”.
Como a intenção é direcionada a “solucionar” a inconstitucionalidade da execução provisória, a alteração legal limita-se a redefinir e delimitar o trânsito em julgado somente no Direito Penal. Assim, enquanto nos demais ramos do direito a coisa julgada material se efetiva com a impossibilidade recursal, apenas no direito penal se daria após esgotada a 2ª instância.
A lei não deve incitar o julgador e possibilitar manobra contrária à presunção de inocência, mas sim viger no sentido de impor seu respeito por todos os órgãos do Estado, em suas três esferas de poder.
Nesse sentido, tramita no Congresso a PEC nº 410/2018, que pretende emendar o dispositivo constitucional insculpido no inciso LVII do artigo 5º, para dispor que: “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Como bem ressaltado linhas acima, não é possível alterar a norma fundamental por meio de Emenda Constitucional, pois o preceito foi instituído como cláusula pétrea.
Por final, o Projeto de Lei Anticrime, de iniciativa do ministro da Justiça, ao propor alterações ao Código de Processo Penal e ao Código Penal denominadas “Medidas para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância”, também incorre em inversão ao princípio constitucional da presunção de inocência, retrocedendo à presunção de culpabilidade.
A principal alteração do projeto de lei está na inserção à parte final do artigo 283, do Código de Processo Penal, da expressão “ou exarada por órgão colegiado”, visando a regulamentar a execução de pena antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, especialmente após julgamento do recurso em segunda instância, contrariando, outrossim, o expresso mandamento da Constituição.
Tal alteração demonstra a extensão da subjetividade antes exercida pelo então magistrado, a qual deve ser evitada ainda mais em razão das divulgadas condutas alheias ao devido processo legal, com parcialidade, bem como com determinação de medidas excessivas, como a banalização das conduções coercitivas e prisões cautelares, de forma estratégica, desleal, sempre com a indevida publicidade, quebras de sigilo expostas e aparato midiático, tudo sem observância ao direito dos investigados ou acusados de terem preservadas suas garantias fundamentais. Esse dispositivo, de forma escorreita, foi afastado pelo Grupo de Trabalho criado na Câmara dos Deputados.
O princípio da presunção de inocência, portanto, não deve ser tratado apenas com viés processual, mas sim como norma cogente constitucional atrelada a juízo de certeza e limitadora de excessos no exercício do poder punitivo, de obrigatória aplicação, sustentáculo da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo vedada sua relativização ou flexibilização por construção normativa ou judicial, sob pena de mutilação de conquista democrática, pilar do ordenamento e estrutura do Estado de Direito.
Para finalizar, as palavras sempre atuais de Rui Barbosa (Antologia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012): “O que hoje semeais, colhereis amanhã. Semeais opressão, sereis oprimidos. Semeais o engano, sereis espoliados. Posso perdoar, e tenho perdoado aos (...) que perseguem. Mas, nunca perdoarei as opiniões perseguidoras. Porque os homens passam, e as opiniões duram, os homens perecem, e as opiniões germinam. Onipotentes na política de um dia, os perseguidores se submergem na do outro. Mas as doutrinas perseguidoras sobrevivem à política que as gerou, para perseguir amanhã nas mãos da política hoje perseguida”.
Miguel Pereira Neto é
sócio do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich &
Schoueri Advogados; conselheiro e Presidente da Comissão de Estudos
sobre Corrupção, Crimes Econômicos, Financeiros e Tributários do
Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
Revista Consultor Jurídico, 16 de outubro de 2019, 16h37
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