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sábado, 19 de outubro de 2019

ECOLOGIA, "LIBERALISMO" E LUCRO


O ex-autarca ecorrevolucionário que tem uma frase de Gandhi como mote para a vida




Mundo

13.10.2019 às 7h56


Divulgacao - O eurodeputado francês quer fazer em Bruxelas e Estrasburgo o que já conseguiu no seu país. Damien Carême diz que a ecologia deve ser sinónimo de futuro e de justiça social



Filipe Fialho

Jornalista


Detesta que o “tomem por parvo” e reconhece que pode perder “as estribeiras” com a falta de respeito e com as pessoas que vivem sempre enredadas em contradições. Algo que não lhe aconteceu na sexta-feira, 13 de setembro, quando esteve na Assembleia da República, em Lisboa, para receber das mãos do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa o Prémio Norte-Sul, do Conselho da Europa, pelo seu trabalho em prol da democracia e dos direitos humanos. Damien Carême, 59 anos, é uma das novas estrelas do Parlamento Europeu, para o qual foi eleito há cinco meses, nas listas da Europa Ecologia – Os Verdes.

No entanto, o galardão que o trouxe a Portugal é fruto do seu trabalho como autarca de Grande-Synthe, uma cidade de 23 mil habitantes, na periferia de Dunquerque, no Noroeste de França. Entre 2001 e maio de 2019, este antigo animador cultural que chegou a fazer de palhaço – também foi jornalista e técnico de informática – provocou uma autêntica revolução na depauperada cidade fabril que fica a uma dúzia de quilómetros da maior central nuclear da Europa Ocidental (Gravelines). Logo no seu primeiro mandato, quando ainda era militante socialista, Damien converteu a localidade num laboratório social e em “transição ecológica”: investimento em novos espaços verdes, criação de hortas e pastagens comunitárias onde não entram pesticidas, abertura de cantinas escolares e públicas onde se servem apenas produtos locais e bio, construção de edifícios sociais de alta eficiência energética, orçamentos participativos, entre muitas outras coisas que levaram Grande-Synthe a ser considerada a capital francesa da biodiversidade, em 2010. Um título que seria depois reforçado com uma universidade popular e até um rendimento mínimo garantido para quem estivesse abaixo do limiar de pobreza – medida que beneficiou 1 700 famílias graças às poupanças energéticas da câmara.
Herói contra a “selva”

A crise migratória iniciada há quase cinco anos, na sequência da guerra civil síria e da incapacidade de os governos europeus regularem as fronteiras do Velho Continente, veio dar ainda maior protagonismo a Damien Carême. Indignado com as condições em que viviam milhares de pessoas oriundas de África e do Médio Oriente, que tentavam entrar no Reino Unido mas que ficavam retidas em território francês, ele decidiu erguer o primeiro “campo humanitário” para acolher refugiados. Embora o dinheiro fosse pouco (meio milhão de euros), a autarquia, contra a opinião do poder central e em parceria com os Médicos Sem Fronteiras, construiu mais de uma centena de cabanas de madeira, com aquecimento e saneamento básico – o suficiente para alojar cerca de 1 500 indivíduos. Os objetivos eram então claros: evitar que as pessoas dormissem ao relento e nas ruas de Grande-Synthe, aliviar a pressão nos “campos da vergonha” – como a “selva” de Calais – e demonstrar ao Governo de Paris que era possível fazer alguma coisa para defender a dignidade dos que procuravam abrigo. A experiência durou menos de 24 meses: uma rixa entre afegãos e iraquianos provocou um incêndio que acabou por destruir o complexo. O antigo autarca, numa entrevista concedida por email à VISÃO, diz não se arrepender de nada: “Durante semanas alertámos para as tensões provocadas pela sobrepopulação do campo e nada foi feito. Eu considero o Estado responsável por esse fim trágico.”


As suas discordâncias com Paris acabariam por se agravar e, no início deste ano, culminaram numa queixa contra o Estado francês por “inação climática”. Porquê? “A cidade que eu dirigi, localizada num território conquistado ao mar através de represas, está sob a ameaça de desaparecer até ao final do século. Isso mesmo acaba de ser confirmado em dois relatórios do GIEC [Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas da ONU]. Grande-Synthe e os seus habitantes fizeram um grande esforço para combater as mudanças climáticas, mas o Estado está mais do que atrasado nesse aspeto.” Para reforçar a sua posição invoca um outro documento científico, encomendado pelo Governo ao Alto Conselho para o Clima, onde se revela que o país continua a fazer tábua rasa dos seus compromissos ambientais.

Agora, como eurodeputado, admite replicar o processo contra a União Europeia: “Além da política agrícola comum, alguns dos acordos comerciais da UE com os EUA, o Canadá e o Mercosur são climaticidas e perfeitamente contrários a uma luta eficaz contra as mudanças climáticas. Temos de refletir, mas não devemos fazer concessões porque o nosso futuro comum não pode ficar à mercê de quaisquer interesses privados.” Nos corredores de Bruxelas e de Estrasburgo, diz-se pronto para lutar pelos seus valores de sempre: “Para termos futuro, temos de viver. Isso implica que haja uma modificação profunda da nossa sociedade. Eu vou continuar a lutar contra todos os extremismos e por uma sociedade que respeite a sério o ambiente, que seja realmente justa e verdadeiramente fraternal.”

Palavras que lhe garantem espaço mediático – o The New York Times dedicou-lhe uma reportagem em julho –, mas que nem sempre fazem milagres junto dos que o conhecem. Apesar de quase duas décadas de gestão verde e sustentável, Damien Carême não conseguiu evitar que Grande-Synthe apresente uma das taxas de desemprego mais altas da Europa (28,6%) e seja um dos bastiões de Marine Le Pen, a líder da extrema-direita francesa, cujo partido (a União Nacional, ex-Frente Nacional) obteve 34% dos votos nas eleições para o Parlamento Europeu, em maio. Um paradoxo para o qual tem resposta fácil: “Infelizmente, as autarquias já não podem fazer muito na luta contra o desemprego. É algo que tem de ser feito a nível nacional. Ainda por cima, dificilmente voltará a haver políticas de pleno emprego. Os últimos estudos do OFCE (Observatório Francês das Conjunturas Económicas, um centro de investigação independente) demonstram que o número de assalariados vai baixar 14% nas duas próximas décadas, devido à tecnologia e à automatização. Portanto, é preciso discutirmos a redistribuição da riqueza e dos tempos de trabalho.” Quanto ao apoio a líderes e a movimentos populistas, é categórico: “Continua a ser muito forte, mas tem vindo a baixar. Nas europeias de 2014 foi de 42% e, nas presidenciais de maio de 2017, Grande-Synthe foi a única cidade da região Nord-Pas-de-Calais a não dar a vitória a Marine Le Pen na primeira volta.”

Pouco interessado nos rótulos que lhe colocam, Damien Carême admite ser um adepto da ecologia social. Mas não esconde a sua indignação quando é desafiado a comentar o facto de haver até figuras do CAC-40 (a bolsa de Paris) ou de Wall Street a dizerem-se ecologistas: “A ecologia é incompatível com o liberalismo e o lucro. É incompatível com o business as usual. A ecologia é redistributiva. É solidária.” 
Uma reação normal de quem diz agir sempre de acordo com as suas convicções e que confidencia ter uma frase de Gandhi como mote para a vida: “Dar o exemplo não é a melhor forma de convencer. É a única.”
Fonte: http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/2019-10-13-O-ex-autarca-ecorrevolucionario-que-tem-uma-frase-de-Gandhi-como-mote-para-a-vida

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