Adelto Gonçalves (*)
I
Pouco estudada e conhecida, especialmente no Brasil, apesar dos muitos
imigrantes que para as regiões Sul e Sudeste vieram ao final do século
XIX e na primeira metade do século XX, a literatura de temática açoriana
ainda aguarda o surgimento de estudos teóricos e crítico-literários na
universidade brasileira, embora não sejam raros os descendentes daqueles
pioneiros - na maioria, analfabetos ou semialfabetizados - que já
alcançaram os graus de mestre e doutor. No
Brasil, destaca-se o romancista gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil
(1945), professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio
Grande do Sul e doutor em Letras, autor de Escritos Açorianos: a Viagem de Retorno - Tópicos acerca da Narrativa Açoriana pós-25 de Abril, ensaios
(Lisboa, Salamandra, 2003) e de uma vasta obra que inclui outros
livros, alguns publicados também em Portugal, Espanha e França.
Na universidade portuguesa, obviamente, esse desconhecimento não é tão
flagrante, mas, ainda assim, a bibliografia não é tão fértil como
deveria. Um estudo recente que ameniza um pouco essa aridez é a tese
de doutoramento "O conto literário de temática açoriana: a ilha, o mar e
a emigração", de Mónica Serpa Cabral, da Universidade de Aveiro, autora
também de uma investigação de mestrado sobre a narrativa breve de João
de Melo (1949), notável escritor nascido na ilha de São Miguel, autor de
romances, ensaios, poemas, crônicas e de um livro de viagens, Açores, o Segredo das Ilhas (2000).
Em texto de apresentação da tese de doutoramento publicado na Forma Breve - Revista de Literatura, do
Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, nº 8,
dezembro de 2010, pp. 235-243, Mónica, nascida na ilha de São Miguel,
observa que seu interesse pela realidade açoriana advém naturalmente de
sua proximidade afetiva com o arquipélago, reforçada pela saudade
provocada pela distância geográfica, já que reside há 13 anos no
continente. Ao estudar o conto de temática açoriana, a autora diz que só
nos anos 90 verificou-se um interesse maior pelo estudo do gênero em
Portugal.
Segundo a pesquisadora, certas narrativas açorianas alargam
os contornos do conto, derrubam fronteiras e apropriam-se de muitos
traços de outros gêneros e subgêneros, como a crônica jornalística, a
crônica histórica, a narrativa de viagens, a novela, o poema em prosa, o
quadro campesino, a autobiografia, a lenda, o mito, a fábula, o artigo
de caráter científico, entre outros. Seja como for, diz a autora, a
literatura dos Açores oferece uma visão particular do mundo e da
sociedade, inconfundível com o modo de ser do português do continente, e
que Vitorino Nemésio (1901-1978) definiu como açorianidade,
um sentimento que vai além do simples bairrismo, daquela solidariedade
que costuma unir aqueles que são oriundos de um mesmo lugar para
constituir um estado de ser do homem açoriano, especialmente daquele que
emigrou, mas preservou no coração o amor pelo lugar e sua gente.
Para Mónica, como a literatura açoriana está em grande parte
ligada ao mundo rural, mesmo quando a ação se desenrola em espaço
citadino, esse ruralismo está associado à memória coletiva e à arte de
contar. Nesse sentido, os escritores açorianos são guardiões da memória
coletiva, contadores de histórias que mantêm intrínseca ligação com a
oralidade.
II
Em seu trabalho, que teve a orientação do
professor António Manuel Ferreira, doutor em Literatura pela
Universidade de Aveiro, a investigadora procurou apresentar uma visão
histórica da narrativa açoriana, desde o final do século XIX até os dias
de hoje, bem como dos principais autores, ainda que, como observa, a
literatura no arquipélago exista desde a sua descoberta, pois data do
século XVI a obra Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (1522-1591).
Segundo ela, até a Revolução de Abril de 1974, manteve-se certo
conservadorismo temático na literatura açoriana, o que não se tem dado
nos últimos anos, quando houve maior abertura a novas experiências
literárias.
Como a emigração é um acontecimento central na
história dos Açores, não poderia deixar de estar presente na literatura.
Por isso, Mónica dedica ao tema um capítulo de sua tese, o quinto. O
ponto central da tese, porém, como observa a autora, está no fato de que
a literatura açoriana, em especial o conto, apresenta "uma certa coesão
feita de recorrências, sobretudo um modo açoriano de tratar essas
recorrências, as quais estão intimamente ligadas à especificidade da
vivência açoriana, marcada por um domínio espaciotemporal opresso e
circular".
Na verdade, esta é a primeira vez que, em Portugal,
estuda-se, numa tese de doutoramento, a evolução do conto de temática
açoriana. Por isso, a autora não pode se prender ao estudo de um autor
ou uma época, procurando oferecer uma visão panorâmica do gênero,
destacando os seus grandes temas e imagens: a sensação de cárcere de
quem vive em ilhas, o chamamento do horizonte, a partida, a errância, o
apelo das raízes e, por fim, o regresso à casa. "Mesmo quando ainda
residia na ilha, sentia a força das raízes e um amor muito profundo pela
terra de origem, dois sentimentos que se intensificaram com a partida",
diz Mónica. "Por isso, tal como muitos escritores açorianos que
abandonaram o arquipélago, encarei meu trabalho como uma forma de
mitigar a distância e a saudade, um meio de sentir a ilha mais próxima
de mim", acrescenta.
III
Em outro texto, "Entre o conto e a crônica: o estudo de narrativas de autores açorianos", que também faz parte da edição nº 8 da revista Forma Breve, dedicada
à crônica, Mónica Serpa Cabral estuda quatro autores açorianos
praticantes desse gênero, Manuel Greaves (1878-1956), Daniel de Sá
(1944), Manuel Ferreira (1916) e Dias de Melo (1925-2008). De Greaves e
Sá, a investigadora diz que em Histórias que me contaram (1948) e Crônica do Despovoamento das Ilhas (e Outras Cartas de El-Rei) (1995), respectivamente, ambos aproximam os seus textos da realidade factual, explorando episódios da História dos Açores.
"Assim, a realidade histórica confunde-se com a ficção e
origina um misto de conto e crônica que não deixa o leitor marcar com
exatidão a fronteira entre fato e ficção", observa, acrescentando que,
dos dois, Greaves é o que mais dá importância à ação, usando uma
linguagem simples, sem grandes artifícios literários. Enfim, lembra, os
textos de ambos contemplam aspectos regionais, nomeadamente a pronúncia,
o léxico, os costumes e tradições, além de pormenores geográficos.
Já em Manuel Ferreira a
fonte de inspiração vem da realidade social e histórica insular e dos
casos gravados na memória coletiva. Jornalista de profissão, diz a
crítica, o escritor mostra preferência pela realidade factual, entrando,
assim, no domínio da crônica. Mónica cita o conto "O alevante da isca", do livro O Barco e o Sonho (1979),
que é baseado num episódio verídico da história açoriana, em que a
massa desfavorecida da cidade de Ponta Delgada se levanta contra a
exploração e a ganância de um fiscal enviado de Lisboa, "um cão sem
escrúpulos nem consciência, a governar-se à grande e à francesa, à coca e
à custa do povo, entre rodadas de vinho e polvo na tasca do Simão,
gabarola e cachaceiro - um rejeira de mil raios o partisse! (....)".
Em Cidade Cinzenta (1971) e Vinde e Vede (1979),
de Dias de Melo, diz a investigadora, fica difícil identificar o
gênero, o que a levou a chamar os textos de narrativas, que constituem
mais reflexões de um narrador que deambula pela paisagem física, humana e
social. São, portanto, textos híbridos que extrapolam os limites do
conto e entram no domínio da crônica, define a autora.
Um exemplo apontado
pela estudiosa é o conto "Vinte contos em cinco minutos", que fala de um
personagem, o João Carroça, "homem de pé descalço" que fora
enriquecendo ao longo do tempo e transformou-se num grande senhor, um
respeitável burguês, que não hesita em explorar friamente um antigo
companheiro dos dias em que andava de carroça a vender a mercadoria,
comprando-lhe a batata a cinco escudos e vendendo-a, cinco minutos
depois, a 25 a um oficial do exército, o que explica o título da
narrativa. Portanto, diz, o conto representa o lucro fácil de um homem
rico, sem escrúpulos e indiferente à desgraça alheia.
Seja como for, para a investigadora, as narrativas de Manuel
Ferreira e Dias de Melo aproximam-se mais do conto e apresentam, de
forma mais visível, uma estrutura de ficção. Por aqui, vê-se a
importância dos trabalhos de Mónica Serpa Cabral resgatando o trabalho
não só destes ficcionistas açorianos como de outros, despertando no
leitor a curiosidade de conhecê-los. Com certeza, será a partir de
trabalhos bem estruturados e escritos com paixão como estes que a
literatura açoriana há de se tornar mais conhecida não só em Portugal
como no Brasil e em outras nações e comunidades dispersas do mundo
lusófono.
IV
Se para alguma coisa servir, é de lembrar que também este
articulista é descendente de açorianos - seus avós maternos - que para a
cidade de Santos, no Litoral de São Paulo, na região Sudeste do Brasil,
vieram ao final do século XIX, estabelecendo-se no Morro de São Bento,
que até hoje é um reduto das tradições dos Açores e da Ilha da Madeira
de que melhor exemplo são as suas famosas bordadeiras. E teve como
co-orientador, em Portugal, em seu trabalho de doutoramento em Letras
pela Universidade de São Paulo, o professor Fernando Cristóvão,
assistente e depois sucessor do açoriano Vitorino Nemésio na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.
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FORMA BREVE - Revista de Literatura. Departamento de Línguas e Cultura da Universidade de Aveiro, dezembro de 2010. E-mail: antonio@ua.pt
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail:marilizadelto@uol.com.br
Fonte: PRAVDA
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