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Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

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quinta-feira, 23 de setembro de 2021

FILOSOFIA

O EXILIO DE HELENA 

O Mediterrâneo tem seu trágico solar, que não é o das brumas. Em certos fins de tarde, a noite cai sobre a curvatura perfeita de uma pequena baía, e das águas silenciosas eleva-se então uma angustiada plenitude. Nesses lugares, compreende-se que, se os gregos tocaram no desespero, foi sempre através da beleza e de certa qualidade opressiva que ela possui. Num clima de dourada infelicidade, culmina a tragédia. 
Nosso tempo, ao contrário, tem alimentado seu desespero na feiúra e nas convulsões. Por isso, a Europa seria ignóbil, se a dor o pudesse ser. Exilamos a beleza, os gregos lutaram por ela. Primeira diferença, mas que vem de longe.
O pensamento grego sempre se entrincheirou na ideia de limite. Nada desenvolveu até o fim; nem o sagrado, nem a razão, porque nada negou, nem o sagrado, nem a razão. Seu papel foi o de tudo representar, procurando equilibrar a sombra com a luz. 
Nossa Europa, ao contrário, lançada à conquista da totalidade, é filha da imoderação. Nega a beleza, assim como nega tudo aquilo que não exalta. E, se bem que diversamente, exalta apenas uma única coisa: o império futuro da razão. Recua, em sua loucura, ultrapassando os limites eternos e, no mesmo instante, as Fúrias obscuras se abatem sobre ela, destroçando-a. Nêmesis vigia, deusa da justa medida, nome da vingança. Todos aqueles que ultrapassam o limite são por ela punidos impiedosamente. Os gregos, que durante séculos se interrogaram sobre o sentido daquilo que é justo, nada poderiam compreender do nosso ‘conceito de justiça. A equidade, para eles, pressupunha um limite, ao passo que todo o nosso continente se convulsiona à procura da justiça que deseja total. 
Na aurora do pensamento grego, já entrava nas considerações de Heráclito a ideia de que a justiça estabelece limites até mesmo ao próprio universo físico. “O sol não ultrapassará seus limites, pois, se o fizer, as Fúrias que montam guarda à justiça saberão descobri-lo”. Nós, que exorbitamos o universo e o espírito, achamos graça dessa ameaça. Acendemos num céu inebriado todos os sóis que queremos. 
Mas isso não impede que os limites existam e que nós o saibamos. Em nossos mais extremos estados de insensatez, sonhamos com um equilíbrio que deixamos para trás e que, ingenuamente, acreditamos poder reencontrar um dia, ao cabo de nossos erros
Infantil presunção que justifica o fato de serem povos-crianças, herdeiros de nossos desatinos, os que hoje conduzem nossa história. Um fragmento atribuído ao próprio Heráclito enuncia simplesmente: “presunção, regressão do progresso”. E muitos séculos depois do efesiano, Sócrates, ante a ameaça de uma condenação à morte, não reconhecia em si mesmo qualquer outra superioridade senão esta: não acreditava saber aquilo que ignorava. As vidas e os pensamentos mais exemplares daqueles séculos realizavam-se através de uma orgulhosa confissão de ignorância. Ao esquecer isso, esquecemos nossa virilidade. Demos preferência ao poder, que arremeda a grandeza, a começar por Alexandre, e depois com os conquistadores romanos, que nossos autores de manuais, em virtude de uma incomparável baixeza de alma, nos ensinam a admirar. 
Por nossa vez, também fizemos conquistas, deslocamos limites, dominamos o céu e a terra. Nossa razão fez o vazio. Enfim sós, aperfeiçoamos nosso império sobre um deserto. Que imaginação teríamos, portanto, para esse equilíbrio superior em que a natureza contrabalançava a história, a beleza, o bem, e que levava a música dos nomes até mesmo para a tragédia do sangue? 
Voltamos as costas à natureza, temos vergonha do belo. Nossas miseráveis tragédias arrastam consigo um cheiro de repartição pública e o sangue que delas escorre tem cor de tinta gordurenta. Eis porque hoje em dia é indecente proclamar que somos filhos da Grécia. Ou, então, somos seus filhos renegados. 
Ao colocar a história no trono de Deus, caminhamos em direção à teocracia, tal como aqueles que os gregos denominavam bárbaros e contra os quais combateram até a morte nas águas de Salamina. 
Se quisermos apreender a fundo a diferença existente entre nós e os antigos gregos, teremos de interpelar o único de nossos filósofos que é o verdadeiro rival de Platão. “Somente a cidade moderna”, atreve-se a escrever Hegel, “oferece ao espírito o terreno propício para que ele tome consciência de si mesmo”. Vivemos, pois, a era das grandes cidades. Deliberadamente o mundo foi amputado daquilo que constitui sua permanência: a natureza, o mar, a colina, a meditação dos entardeceres. A consciência só existe nas ruas porque só nas ruas a história existe, segundo o que está decretado. Consequentemente, portanto, nossas mais significativas obras são um testemunho dessa mesma parcialidade. 
Em vão buscamos as paisagens na grande literatura europeia posterior a Dostoievski. A história não explica nem o universo natural que havia antes dela, nem a beleza que lhe está por cima. Assim, sua escolha foi a de ignorar ambas as coisas. 
Ao passo que Platão continha tudo, o disparate, a razão e o mito, nossos filósofos nada contêm a não ser o disparate ou a razão, porque fecharam os olhos para o resto. A toupeira medita. 
Foi o cristianismo que começou a substituir a contemplação do mundo pela tragédia da alma. Pelo menos, porém, referia-se a uma natureza espiritual e, através dela, mantinha certa constância. Deus morto, nada resta senão a história e a autoridade. Desde há muito todo o esforço de nossos filósofos tem tido como objetivo único o de substituir a noção de natureza humana pela de situação e, igualmente, a harmonia antiga pelo arrebatamento desordenado do acaso ou o movimento impiedoso da razão. 
Ao passo que os gregos impunham à vontade os limites da razão, pusemos como término desse arrebatamento da vontade o próprio cerne da razão, que, por isso, se tornou mortífera. Para os gregos, os valores eram preexistentes a qualquer ato e este, por sua vez, tinha limites definidos com absoluta precisão por esses mesmos valores. Para a filosofia moderna, a ação antecede os valores. Estes, a princípio, não existem como tal, tornando-se valores depois; e só viremos a conhecê-los por inteiro ao concluir-se a história. Com os valores, o limite desaparece; e como as concepções diferem sobre o significado que poderão ter, como não existe luta alguma cuja tendência não seja, sem o freio desses mesmos valores, a de prolongar-se indefinidamente, os messianismos de hoje se afrontam e seus clamores se misturam no embate dos impérios. A imoderação é um incêndio, segundo Heráclito. O incêndio progride, Nietzsche está ultrapassado. Já não é mais a golpes de martelo que a Europa filosofa, mas a tiros de canhão. No entanto, a natureza sempre esteve presente. Contrapõe a serenidade de seus céus e suas razões à loucura dos homens. Até o momento em que o próprio átomo também se incendeie e que a história chegue ao fim, no triunfo da razão e na agonia da espécie. Mas os gregos jamais disseram que o limite não podia ser transposto. Disseram que ele existia e que aquele que ousasse ultrapassá-lo seria impiedosamente golpeado. Nada existe na história atual que possa contradizê-los. Tanto o espírito histórico quanto o artista desejam refazer o mundo. Entretanto, o artista, por uma obrigação de sua natureza, conhece os próprios limites, o mesmo não acontecendo com o espírito histórico. Por isso, o fim deste último é a tirania, ao passo que a paixão do primeiro é a liberdade. Todos aqueles que hoje lutam pela liberdade, combatem, em última análise, pela beleza. Bem entendido, não se trata de defender a beleza por si mesma. A beleza não pode prescindir do homem; e não conseguiremos dar ao nosso tempo grandeza e serenidade, a menos que o acompanhemos em sua infelicidade. Nunca mais nos sentiríamos solitários. No entanto, não é menos verdadeiro dizer que o homem não pode prescindir da beleza; e é isso que nossa época pretende querer ignorar. Obstina-se no intuito de alcançar o absoluto e o império, querendo transfigurar o mundo antes de esgotá-lo, pô-lo em ordem antes de compreendê-lo. Digam o que disserem, é esta uma época que deserta do mundo. Ulisses pôde escolher, junto a Calipso, entre a imortalidade e a terra natal. Escolheu a pátria e, com ela, a morte. Grandeza tão simples parece-nos estranha hoje em dia. Outros dirão que o que nos falta é humildade. Porém essa palavra, em suma, é ambígua. Semelhantes àqueles bufões de Dostoievski que se vangloriam de tudo, sobem às estrelas e terminam expondo sua vergonha na primeira praça pública, falta-nos apenas a nobreza de alma do homem que é a fidelidade a seus limites, o lúcido amor de sua condição. “Odeio minha época”, escrevia Saint-Exupéry, antes de sua morte, por motivos não muito distantes daqueles que aqui mencionei anteriormente. No entanto, esse grito, por mais perturbador que nos possa parecer justamente porque partiu dele, que tanto amou os homens em tudo aquilo que possuem de admirável, jamais nos levará a qualquer sentimento de responsabilidade. Que tentação, no entanto, em certos momentos, a de dar as costas a este mundo sombrio e árido! Mas esta é a nossa época e não podemos viver odiando-nos uns aos outros. Se ela decaiu tanto, não foi apenas pelo excesso de suas virtudes, mas também pela grandeza de seus defeitos. Lutaremos por aquela, dentre suas virtudes, que vem de longe. Qual virtude? Os cavalos de Pátroclo choram a morte de seu dono na batalha. Tudo está perdido. Mas o combate recomeça com Aquiles e a vitória é obtida no final, porque a amizade acabara de ser assassinada: a amizade é uma virtude. 
A ignorância reconhecida, a recusa do fanatismo, os limites do mundo e do homem, o rosto amado, a beleza enfim, eis o campo onde nos reuniremos aos gregos. 
De certa maneira, o sentido da história de amanhã não é aquele que pensamos. Encontra-se na luta entre a criação e a inquisição. Apesar do preço que custarão aos artistas suas mãos vazias, pode-se aguardar sua vitória. Uma vez mais, a filosofia das trevas se dissipará por cima do mar deslumbrante. O pensamento do meio-dia, a guerra de Tróia se trava longe dos campos de batalha! Ainda desta vez, os muros terríveis da cidade moderna ruirão para libertar, “alma tranquila como a serenidade dos mares”, a beleza de Helena. [1948]

ALBERT CAMUS

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