24 de setembro de 2021, 7h30
O que levou o Ministério Público de São Paulo a recorrer no caso de um réu que, pego com 0,4 g de crack (cinco pedras) e R$ 5 no bolso, foi enquadrado como usuário e condenado a pena de prestação de serviços à comunidade pelo prazo de dez meses, com base no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006)?
Voto do ministro Schietti fez considerações sobre o esforço do MP para punir com tanta gravidade um caso de in dubio pro reo
Sandra Fado
A pergunta permeou o julgamento em que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, na terça-feira (23/9), apreciou o recurso da defesa contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que reformou a sentença e reclassificou a conduta do réu para a de traficante. Com isso, a pena subiu para 7 anos, 3 meses e 15 dias de reclusão, em regime inicial fechado.
O homem foi preso, sozinho, em uma praça de Piracicaba (SP), ponto conhecido de tráfico, com as cinco pedras e os R$ 5. Não foram encontrados petrechos, nem foi flagrada traficância. Não houve campana, apenas o flagrante.
Ainda assim, o MP sustentou ao TJ-SP que a pequena quantidade de drogas, por si só, não exclui a possibilidade da traficância, pois poderia haver mais escondido no local; que a condição de usuário também não impede que ele comercialize os entorpecentes; e que o réu tinha condenações anteriores, fato que sinaliza seu envolvimento com o tráfico.
E o TJ-SP concordou.
Relator, o ministro Rogerio Schietti apontou que a Lei de Drogas não oferece parâmetros seguros para diferenciar a figura do traficante e do usuário. Ainda assim, concluiu que o TJ-SP não ofereceu elementos suficientes para concluir pela prática do delito de tráfico de drogas.
"O Ministério Público não se desincumbiu do ônus de provar o tráfico de drogas. O que se tem dos elementos coligidos aos autos é uma avaliação subjetiva acerca de eventual traficância praticada pelo paciente, a partir de elementos insuficientes para lastrear uma condenação a pena tão grave", afirmou.
A proposta foi acompanhada por unanimidade pelos integrantes da 6ª Turma e levou a reflexão sobre a eficiência e a economia da atuação estatal em matéria criminal.Tribunal de Justiça de São Paulo condenou homem pego com 0,4 g de crack a pena de 7 anos, 3 meses e 15 dias em regime fechado
Divulgação
Questão de mentalidade
Para o ministro Schietti — ex-membro do Ministério Público do Distrito Federal —, salta aos olhos o fato de o MP-SP ter direcionado recursos humanos e materiais para insurgir-se contra a sentença desclassificatória, que, corretamente, aplicou o princípio do in dubio pro reo (benefício da dúvida em favor do réu).
Afirmou que do MP se espera uma atuação imbuída da percepção de que o Direito Penal é o meio mais contundente de que dispõe o Estado para manter um grau de controle sobre o desvio do comportamento humano, e que, por isso mesmo, deve incidir apenas nos estritos limites de sua necessidade.
Principalmente diante da realidade carcerária brasileira. O voto do relator indica dados segundo os quais a entrada em vigor da Lei de Drogas não impediu um aumento das condenações por tráfico. Pelo contrário. No precário sistema carcerário nacional, dados do Departamento Penitenciário Nacional mostram que, em 2019, a população de presos condenados por delitos de tráfico já era de 200,5 mil.
Assim, a atual crise do sistema penitenciário brasileiro e o fato de o Brasil possuir, hoje, uma das maiores populações carcerárias do mundo justificam as ponderações sobre o descabimento da condenação decorrente dos esforços do Ministério Público paulista.
Mentalidade de achar que única forma de combater trafico é cadeia não chegou a lugar nenhum, criticou Sebastião Reis Júnior
José Alberto SCO/STJ
"Será mesmo, em uma proposta de reflexão institucional, que se considera acertado o caminho trilhado pelo representante ministerial e acatado pela Corte estadual?", indagou.
"É sustentável, no mundo atual — após uma frustrada guerra cinquentenária ao comércio de drogas — impor-se uma pena de 7 anos de reclusão, em regime inicial fechado, a alguém flagrado com 0,4 g de crack?", insistiu.
O voto foi elogiado pela ministra Laurita Vaz, outra egressa do MP no STJ. O ministro Sebastião concordou com as ponderações. Criticou o fato de o sistema de Justiça, muitas vezes, se alimentar de processos e incentivá-los, e classificou o caso julgado como sintomático disso.
"Não consigo compreender onde vamos chegar. Nossa realidade mostra que esse tipo de comportamento não tem dado nenhum resultado. A criminalidade não diminuiu nos últimos anos, pelo contrário. Essa mentalidade punitivista de achar que a única forma de combater trafico é cadeia não chegou a lugar nenhum. Estamos piorando a nossa situação", concluiu.
Clique aqui para ler o voto do ministro Rogerio Schietti
HC 681.680
Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 24 de setembro de 2021, 7h30
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