Escritor cunhou o conceito da ‘grande substituição’, uma teoria citada nos manifestos dos terroristas de El Paso e Christchurch
Brenton Tarrant, o acusado de matar mais de 50 pessoas em duas mesquitas de Christchurch, Nova Zelândia, em março passado. Mark Mitchell AP
Marc Bassets
Paris 10 AGO 2019 - 18:04 BRT
Vive no alto da colina, em Plieux, pitoresco povoado na Gascogne, a terra de D'Artagnan. Da torre, ao longe, vislumbram-se os Pirineus. Poderia ser o refúgio de um dândi aristocrata. Ou o castelo do conde Drácula.
Renaud Camus, de 73 anos, foi há muito tempo um prolífico escritor cult, autor de dezenas de volumes de minuciosos diários, louvado em seu início por papas da intelligentsia francesa como Roland Barthes. Agora é quase um marginal no mundo cultural: publica os próprios livros porque não tem mais editora e ficou difícil encontrar sua obra nas livrarias. Mas suas ideias não são marginais. Camus se tornou “um ideólogo da extrema direita, um oráculo dos ambientes identitários”, como escreveu um ex-amigo seu, o escritor Emmanuel Carrère. E uma referência para o supremacismo branco global, incluído o mais violento. Sua teoria da grande substituição — le grand remplacement, em francês — inspirou terroristas como os que causaram a matança em duas mesquitas de Christchurch (Nova Zelândia) em 15 de março e num shopping center de El Paso (Estados Unidos) no último sábado.
O escritor Renaud Camus. Sophie Bassouls Corbis via Getty Images
“A grande substituição não é uma teoria”, disse ao EL PAÍS e a outros jornais, durante uma entrevista em maio no imenso salão que serve de biblioteca e escritório em seu castelo de Plieux. “É o nome para um fenômeno como a Grande Depressão, a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial.”
Em seu livro Le Grand Remplacement (a grande substituição), publicado em 2012, Camus definiu em poucas palavras sua teoria, que ele não chama de teoria. “Oh, é muito simples. Há um povo e, quase de repente, em uma geração, em seu lugar há outro ou vários outros povos”. Camus tem em mente a população de origem árabe-muçulmana na Europa, mas, como se viu em El Paso, suas teorias podem servir para situações de todo tipo.
O temor dos autóctones à invasão dos estrangeiros não é novo nem original. E na França, país exportador de todo tipo de teorias intelectuais, incluindo as ideologias de ultradireita, a tradição é longa. O antissemita Charles Maurras, teórico do chamado nacionalismo integral e condenado à prisão perpétua por colaboracionismo no final da Segunda Guerra Mundial, foi o mais influente na primeira metade do século XX.
Mas há também romancistas como Jean Raspail, que em 1973 imaginou, no livro Le Camp Des Saints (o acampamento dos santos), a chegada de um milhão de desamparados à costa mediterrânea da França. “Sem querer, por uma espécie de mistério, previ algo que está acontecendo”, dizia Raspail em 2017 ao EL PAÍS. Steve Bannon — ex-conselheiro do presidente dos EUA, Donald Trump, e aspirante a urdidor da internacional nacionalista e populista na Europa — citava a ambos (Raspail e Maurras) como fontes de inspiração.
As teorias de Camus se encontram, mais ou menos difusas, em alguns discursos do partido Reagrupação Nacional, embora sua líder, Marine Le Pen, se desvincule do ideólogo. E há um eco dessas teorias na literatura de Michel Houellebecq, considerado um dos grandes romancistas franceses contemporâneos. A grande substituição cruzou fronteiras até aparecer nos manifestos dos terroristas de Christchurch e de El Paso.
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O autor da matança de Christchurch, onde morreram muçulmanos, publicou um texto justamente com o título A Grande Substituição, idêntico ao de Camus, embora não mencionasse seu nome nem seu livro. Mas ele citou a sensação que lhe causou, durante uma viagem à França, perceber que “em cada cidade francesa, em cada povoado francês, os invasores estão aí”, que “os franceses com frequência eram uma minoria e que na rua com frequência estavam sozinhos, não tinham filhos e eram de idade avançada”. O autor do massacre de El Paso, que deixou 22 mortos, afirmava em seu manifesto: “De fato, a comunidade latina não era meu objetivo até ler A Grande Substituição”. Referia-se, aparentemente, ao manifesto do autor da matança de Christchurch, não ao livro de Camus.
Durante a entrevista em seu castelo de Plieux, depois da matança de Christchurch, o ideólogo insistiu em se desvincular de qualquer violência. “Se alguém me inspira, é Gandhi”, afirmou. Também defendeu colocar fim à grande substituição de maneira pacífica, embora sem mencionar muitos detalhes.
Camus associa a grande substituição com outra teoria que chama de “o grande substitucionismo global”. “A própria essência da modernidade é o gesto de substituir tudo”, afirma. “Os mais extremistas me chamam de neonazista, mas o nazismo me horroriza”, defende-se. “O substitucionismo pertence à mesma genealogia que o nazismo: a industrialização do homem, o fato de que o homem seja intercambiável.”
Para acabar de distorcer a realidade, ele considera que a Europa é colonizada como foram as colônias europeias até meados do século XX. E traça um paralelo entre a ocupação nazista e o que ele percebe como a ocupação de seu país.
Camus explica tudo isso com um tom reflexivo e sem estridência, entre milhares de livros e na ilha de paz e prosperidade que é esta parte da França, longe dos disparos e do sangue dos terroristas intoxicados por esses discursos. “O mundo que se aproxima me parece um mundo atroz”, afirma.
"Os autores dos massacres não fazem referência a mim"
“Me entristece. Me desespera. Por que me incomodaria?”, disse Renaud Camus por e-mail em resposta à pergunta sobre se fica incomodado que terroristas racistas citem "a grande substituição", expressão promovido por ele. “É o que sempre previ e anunciei. A grande substituição não pode trazer nada além de desolação e morte”, continua. “As pessoas que me culpam pelas consequências da grande substituição, que eu denuncio desde sempre, são como pequenos poupadores que culpam um historiador ou um sociólogo por sua falência depois de ter escrito um livro chamado A Grande Depressão”. Camus, que condena "sem reservas" os massacres de Christchurch e El Paso, adotou a expressão em 2012, mas foi em 2000 quando, ao ser acusado de antisemitismo, começou a ganhar visibilidade. Naquele momento, escreve Emmanuel Carrère em um ensaio, “surgiram novos amigos a seu redor que o amam pelo mesmo motivo que o condenam.
Camus era um escritor pouco conhecido, ainda que apreciado em círculos literários. Condenado em 2014 por incitar o ódio e a violência para os muçulmanos, seu progressivo ostracismo na França acontece ao mesmo tempo que a difusão internacional de suas ideias e sua adoração por setores do supremacismo branco nos EUA e outros países. Não é a única influência destes grupos, nem a principa. Os livros de Camus são de difícil acesso, ainda mais em inglês. Ele garante ser contra a violência. “Os autores dos massacres”, defende-se, “não fazem nenhuma referência a mim. Sequer sabem que sou e provavelmente não leram nada meu, de modo que não tenho nenhuma influência sobre eles. Caso contrário, não cometeriam assassinatos, porque é o oposto a tudo o que recomendo".
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