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quarta-feira, 21 de agosto de 2019

GRILEIRO



Verbete de um Glossário Ambiental que estou organizando, cheio de citações de escritores/historiadores ilustres.






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GRILEIRO (Ver COLONIZAÇÃO, FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE, GRILAGEM, GRILO, MOVIMENTO DOS SEM TERRA, REFORMA AGRÁRIA, SERTÃO e TERRAS DEVOLUTAS)




- MONTEIRO LOBATO - A onda verde - Editora Brasiliense Ltda/SP/1957, p. 7, descreveu, minuciosamente, a figura em destaque: 
Mas surge o grileiro e tudo se transforma. Terras paradas, terras inexpugnáveis à cultura, que velhos barbaças detêm aos milheiros de alqueires para delas tirar um prato de feijão e uns porquinhos de ceva, e que vêm vindo assim de avós a netos, e que permaneceriam assim toda a vida; terras devolutas, que a inércia do Estado conserva a monte, sem saber por que nem para que; terras legitimamente “aproprietariadas” - nada disso é obstáculo à solércia do grileiro. Ao partir para o sertão ele deixou em casa, na gaveta, os escrúpulos da consciência. Vem firme, vem “feito” como um gavião. Opera as maiores falcatruas; falsifica firmas, papéis, selos; falsifica rios e montanhas; falsifica árvores e marcos; falsifica juízes e cartórios; falsifica o fiel da balança de Têmis; falsifica o céu, a terra e as águas; falsifica Deus e o Diabo. Mas vence. E por arte dessa obra-prima de malabarismo, espoliando posseiros ou donos, sempre firmados na gazua da lei, os grileiros expelem terras, num estupendo parigato, todos os “barba ralas” - silvícolas - que ali vivem parasitariamente, tentando resistir ao arranque da civilização.

Divididas as glebas em lotes, vendem-nas os grileiros à legião de colonos que os seguem como urubus - pelo cheiro da carniça. E o grilo, se foi bem feito, é inexpugnável e provoca admiração; se foi mal feito fracassa e é apupado pelos embaídos.

Num sertão modorrento, quando a presença de um advogado ou agrimensor esperta os velhos moradores, a uma voz eles murmuram: - Nosso tempo acabou …

E acaba de feito. Acaba o marasmo da terra porque o grileiro é o precursor da Onda Verde. O seu cri-cri anuncia a aproximação do tanque. Cinco, dez anos depois, a flor do café branqueia a zona e a incorpora ao patrimônio nacional.

O peregrino espírito de Assis Chateaubriand já explanou em traços gerais, mas incisivos, esta função social e civilizadora do grilo. Definiu-o a arte de tirar o direito do nada. É isso,. É a vitória da gazua do mais forte. (...)


Insistente nas palestras como certas moscas em dia de calor, é, nas regiões do Noroeste, a palavra “grilo”. “Grilo” e seus derivados, “grileiro”, “engrilar”, em acepção muito diversa da que devem ter entre os nipônicos, onde grileiros engrilam os grilos de verdade em gaiolinhas, como fazemos com o sabiá, o canário, o pintassilgo e mais passarinhos tolos que morrem pela garganta.

Em certas zonas chega a ser uma obsessão. Todo mundo fala em terras griladas e comenta feitos de grileiros famosos.

E agora que o grilo penetrou na arte, e vai perpetuar-se em mármore no monumento da Independência, vem a talho de foice um apanhado geral sobre a conspícua instituição - viveiro onde se fermenta a aristocracia dinheirosa de amanhã.

As velhas fidalguias da Europa entroncam no banditismo dos cruzados. Ter na linguagem um facínora encoscorado em ferro, que saqueou, queimou, violou, matou à larga no Oriente, é o maior padrão de glória de um marquês de França. Ter entre os avós um grileiro de hoje vai ser o orgulho supremo dos nossos milionários futuros. Matarás, roubarás, são os mandamentos de alto bordo do decálogo humano, eternos e irredutíveis, que a imagem da lei de Moisés inventou inverter, antepondo-lhes um inócuo “não”. (...)

(...) há grilos geniais, obra de verdadeiros Cagliostros encarnados nos bacharéis do “venerando mosteiro”; e os há ineptos, mancos, fabricados aí por meros “curiosos”da trampolinagem, sem dedo para a coisa. Aqueles gozam de toda a consideração social devida aos mestres de vistas largas, ao passo que estes o povo os cobre de irrisão. (...)

O grileiro é um alquimista. Envelhece papéis, ressuscita selos do Império, inventa guias de impostos, promove genealogias, dá como sabendo escrever vvelhos urumbebas que morreram analfabetos, embaça juízes, suborna escriv~es - e, novo Jeová, tira terra do nada. (...)

Envelhecer um título falso, “enverdadeirá-lo”, é toda uma ciência. Mas conseguem-no. Dão-lhe a cor, o tom, o cheiro da velhice, fazem-no muitas vezes mais autêntico que os reais. Expõem-no ao fumeiro, a tal distância da fumaça conforme o grau de ancianidade requerido, e conseguem a gama dos amarelidos, segredo até aqui do Tempo.

Enquanto o papel se desfuma, fazem-lhe aspersões sábias que lhe dêm a rugosidade peculiar às celuloses d’antanho.

Finalmente, para impregná-lo do cheirinho, do bouquet dos decênios, passeiam-no a cavalo, metido entre o baixeiro e a carona.

Na página seguinte (12) da mesma obra, o autor revela um grilo mal feito. 
(...)
 
E segue:

Ao trabalhismo de laboratório aliam-se ao ar livre os atos anexos e complementares - violências, suborno, incêndio em cartórios, sumiço de autos, etc.

Porque o grilo é proteiforme e para completar-se sobre até à ótica, subornando até os teodolitos dos engenheiros.

Que prodígios não opera neste campo! O primeiro é substituir a corrente, o podômetro, o teodolito,a trigonometria e o mais por um instrumento só, de alta engenhosidade: o olhômetro.

Só o olhômetro merece fé dos grileiros, esse aparelho maravilhoso, de criação nossa, e já muito usado pelos governos em estudos estatísticos.

Por intermédio do olhômetro, os cursos dos rios, passa-se um afluente da margem esquerda para a direita, criam-se cachoeiras em sítios onde o nível é manso, e operam-se quantas mais revoluções geográficas se fazem mister à patota.

Um grileiro está na posse do nome de um rio que a natureza esqueceu de criar; se ele consegue localizar esse rio no mapa, o grilo sairá de primeiríssima. E lá vai ele, com o rio às costas, em procura de colocação…

O outro fazia grande conta uma cachoeira em certo ponto da divisa. O homem não pestaneja: constrói a cachoeira. os contrários protestam.

Há intervenção judiciária. na vistoria chamam para perito o morador mais antigo das redondezas. O caboclo chega, defronta-se com a cachoeira fantástica e abre a boca. Há cincoenta anos que vive ali, conhece a zona como a palma da mão - como é que nunca viu aquele “poder d’água”, barulhento e atravancador? Mas desconfia - e entrando na água desfaz com dois pontapés a cachoeira de mentira, que lá rola, rio abaixo, transformada em tranqueira de galhaça e cipós… Era uma cachoeira grilo…

O grilo come nas terras apossadas pelos caboclos mal apetrechados contra os percevejos da lei, tanto quanto as terras devolutas, as quais, engriladas a Norte, Sul, Leste e Oeste, estão se derretendo como torrão de açúcar n’água.

Calcula uma autoridade no assunto em três milhões de alqueires área de terras griladas no Noroeste. E esses milhões caminham para quatro, visto que agora a indústria do grilo passou a interessar aos altos paredros da política, verdadeiras piranhas em matéria de voracidade. (...)

Continua o autor a discorrer sobre a “instituição” ou “indústria” do grilo, de maneira irônica e deliciosa, cronista atento e competente que é. Vale a pena ler o que segue, diretamente na obra copiada.

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