Por Joaquim de Carvalho
A defesa quase histérica que o Grupo Globo faz da Lava Jato é resultado do mau jornalismo que caracteriza a emissora há pelo menos 20 anos — no caso da TV, desde que Evandro Carlos de Andrade morreu e uma disputa interna deu poder na redação a burocratas que nunca haviam se destacado na profissão. Mas não só. A Globo é devedora da Lava Jato em pelo menos um caso, o dos papéis apreendidos no escritório da Mossack Fonseca em São Paulo, na mesma época que a matriz, no Panamá, era o centro de um escândalo internacional de lavagem de dinheiro. Manuscritos encontrados no escritório indicam que, por trás da empresa de fachada que tem a propriedade do triplex na praia de Santa Rita, em Paraty, está a família proprietária da Rede Globo.
O nome que aparece é a de Paula Marinho, filha de João Roberto Marinho. Os papéis foram encontrados pela Polícia Federal ao cumprir mandado de busca e apreensão assinado pelo então titular da 13a. Vara Federal Criminal em Curitiba, Sergio Moro.
Formalmente, era o Ministério Público Federal que buscava provas no caso do triplex do Guarujá, que a força-tarefa atribuía ao ex-presidente Lula. É que, naquele condomínio, o Solaris, algumas unidades estavam em nome de offshore administrada pela Mossack Fonseca. Formalmente, era o Ministério Público Federal que buscava as provas, mas, como já se suspeitava à época e se comprovou mais tarde, com os diálogos da Vaza Jato, era o próprio Moro quem orientava os procuradores na estratégia de acusação ao ex-presidente da república.
Com os papéis em mãos, a Lava Jato constatou que a offshore proprietária de unidades no condomínio do Guarujá não tinha nenhuma relação com Lula, mas outros papéis apontavam para a propriedade do triplex de Paraty, alvo de uma investigação bem mais antiga, na Justiça Federal em Angra dos Reis.
Um ano depois, quando realizei para o DCM uma série de reportagens sobre a morte do ex-ministro do STF Teori Zavascki, os papéis não tinham chegado a Angra dos Reis, e tudo indica que nunca chegará.
Há dois processos na Justiça Federal em Angra dos Reis sobre o triplex, um civil, que tem o objetivo de demolir a mansão, já que foi erguida ilegalmente em área de proteção ambiental, e outro criminal. O problema é que, apesar da investigação começar em 2009, com o relato de um turista, até hoje não há no processo a prova que liga a mansão a seus reais proprietários, a família Marinho.
A prova está nos papéis da Mossack Fonseca, mas a Lava Jato, até onde se sabe, não os encaminhou para o Ministério Público Federal em Angra dos Reis. Premiado em concurso internacional de arquitetura, o triplex de Paraty, com piscina construída na areia da praia, chamou a atenção de DS (ele pediu ao DCM que publicasse apenas suas iniciais), que é funcionário público da Justiça Federal em outra jurisdição.
DS fazia um passeio de barco com outros turistas quando foi informado de que não poderiam se aproximar da praia de Santa Rita, onde fica a mansão, pois havia bóias que fecham acesso e seguranças armados que impedem qualquer aproximação.
DS queria parar na praia, mas o condutor da escuna informou que não poderia. No passado mais distante, quando a área pertencia a Francisco William Munhoz e sua irmã, Elizabeth, o acesso era livre, mas, depois que “um membro da família do sr. Roberto Marinho” comprou o sítio, a praia e um pedaço de mar foram “privatizados”, como se diz em Paraty.
Foi o que ele relatou no e-mail que enviou ao Ministério Público Federal.
Disse mais: “Além do relato dessa pessoa (o condutor da escuna), que toda semana passa pelo local, por conta do trajeto rotineiro do passeio de escuna, pude ver tudo o que estou informando. Lamentavelmente não pude fotografar o local, pois minha câmera estava com defeito. Acredito que, por se tratar de propriedade de uma família com tanta influência e poder econômico, muitos jornalistas, políticos e autoridades locais tenham temor de investigar o caso, porém é sabido que a lei tem de ser igual para todos. Necessário se faz, ao meu ver, uma diligência ao local.”
Fiscais do Instituto Chico Mendes, do Ministério Público Federal, estiveram no local meses depois, com a proteção da Polícia Federal, já que eram impedidos de entrar. O relato deles faz parte dos processos em Angra dos Reis, que não avançam, apesar da prova de ouro que a Lava Jato encontrou na Mossack Fonseca.
Onze anos depois do relato do funcionário público DS, a mansão continua lá e os nomes da família Marinho só aparecem em seu relato inicial, a cópia do e-mail — que, a rigor, nem deveria estar lá, já que o funcionário público DS pediu aos procuradores anonimato, em razão do risco de perseguição.
Nos documentos em cartório e no processo, aparecem registros de uma empresa brasileira, a Agropecuária Veine, controlada por uma empresa de Las Vagas, a Vaincre, por sua vez sob domínio de offshores abertas no Panamá pelo escritório Mossack Fonseca, sem identificação dos reais proprietários.
Há o nome de dois procuradores, pessoas humildes, que foram indiciadas — uma delas nunca atendeu à intimação para comparecer em juízo, e também nunca foi alvo de mando de condução coercitiva, nesse caso justificável.
São idosos, e um deles fez acordo de transação penal com o Ministério Público e afastou o risco de condenação. Sua parte no acordo foi entregar produtos de higiene a um asilo em Paraty. Quando se vê hoje na Globonews um batalhão de jornalistas escalados para desqualificar o relato do procurador-geral da república, Augusto Aras, sobre os desvios da Lava Jato, é impossível não lembrar a situação que vivi na Praia de Santa Rita, quando gravei um boletim enquanto, ao fundo, um segurança gritava e me mandava embora. Não fui, porque a praia é pública, apesar da piscina que foi construída ali. Nesse dia, a mansão estava sem seus proprietários, mas a imponência da construção não permitia esquecer que o local era de pessoas que se comportam como donos do Brasil, pessoas acima da lei.
E, pelo que se vê na Lava Jato e também nos processos em Angra dos Reis, eles são tratados mesmo como se estivessem acima da lei. E recompensam seus serviçais, diretos e indiretos. Os empregados diretos são remunerados para defender os interesses dos patrões. Os indiretos usam o poder público de que desfrutam para blindá-los. Em troca, ao que parece, também são protegidos quando quem está no topo da hierarquia do Ministério Público quebra o silêncio e aponta a “caixa de segredos” da Lava Jato. Uma mão lava a outra, mas os empregados nunca poderão entrar na piscina em cuja margem estive, mas não entrei. Não porque não pudesse, já que a piscina está em área pública, mas para evitar o risco de levar um tiro.
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