Josué Silva Abreu Júnior
Psicólogo, mestre e doutorando em Antropologia da Saúde. Realiza pesquisas antropológicas sobre concepções e práticas de saúde e cura desde 2014
Portais como BBC, El País, Folha de São Paulo, Estado de Minas, dentre outros, publicam editoriais críticos ao governo da Venezuela, no entanto, algumas supostas informações trazidas por estes portais estão completamente afastadas do que o ocorre neste país
27 de julho de 2020, 20:00 h Atualizado em 27 de julho de 2020, 21:34
Nicolás Maduro (Foto: Telesul)
Uma matéria da Folha de São Paulo em pleno segundo turno das eleições brasileiras, indicava que a chapa Bolsonaro/Mourão havia contratado empresas estrangeiras para impulsionar conteúdos de campanha na internet, assim como notícias falsas, conhecidas como fake news. Tal matéria resultou em um inquérito que tramita ainda hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro.
As notícias falsas, no entanto, ganharam espaço no Brasil há ao menos dez anos.
Quem nunca recebeu aquela imagem da suposta fazenda do Lulinha, que na verdade era a escola de agricultura de Piracicaba?
Notícias falsas análogas circulam na internet desde 2008. Nem mesmo a grande mídia está isenta de, por vezes, difundir notícias falsas. A Rede Globo e o jornal homólogo ajudaram de forma significativa a propagação do termo kit gay, bastante explorado por Bolsonaro durante as eleições. Outras notícias, no entanto, embora não possam ser consideradas como fake news, distorcem os dados de tal maneira que se distanciam igualmente dos fatos.
Quando o assunto é a Venezuela, a grande mídia traz manchetes e afirmações incorretas ou, no mínimo, distorcidas.
Portais como BBC, El País, Folha de São Paulo, Estado de Minas, dentre outros, publicam editoriais críticos ao governo da Venezuela, no entanto, algumas supostas informações trazidas por estes portais estão completamente afastadas do que o ocorre neste país, seja por omissão, frases ambíguas ou afirmações equivocadas.
No dia 18 de abril, a Folha de São Paulo publicou uma matéria intitulada “Desconfiança de dados oficiais da pandemia joga médicos venezuelanos na escuridão”. Na matéria, a Folha traz o médico infectologista Júlio Castro. Este médico afirma que os números divulgados pelo governo de Nicolás Maduro não são informações epidemiológicas e sim propaganda. A matéria apresentou Júlio Castro como infectologista da Policlínica Metropolitana e dirigente de “uma liga independente”. No entanto, nesta época, Castro já fazia parte da Comissión de Expertos de la Salud, criada pelo autodeclarado governo interino de Juan Guaidó. Apesar disso, a Folha deu a entender que o médico não estava relacionado a políticas partidárias. Resta saber se foi um erro relacionado à falta de informação ou se a omissão do cargo ocupado por Júlio Castro foi deliberada.
No dia 26 de maio, o Estado de Minas publicou uma matéria com a seguinte manchete: “Venezuela mente sobre mortes por Covid-19, dizem HRW e John Hopkins: Estimativa colocaria o número de óbitos pelo coronavírus em pelo menos 30 mil; oficialmente, são apenas 10 mortos no país pela doença”. A manchete dá a entender que de acordo com a Human Rights Watch (HRW), 30 mil pessoas haviam falecido na Venezuela enquanto o governo registrava apenas 10. No entanto, tal estimativa não consta em nenhum relatório da HRW tampouco em algum estudo da Universidade John Hopkins. Apesar disso, a doutora Kathleen Page (professora da Universidade John Hopkins e colaboradora da HRW) fez esta estimativa à revelia de pesquisas e do conteúdo do relatório apresentado naquele dia por videoconferência. Neste sentido, não é correto afirmar que a estimativa foi realizada pela universidade citada e tampouco pela HRW. Tal estimativa não passa de uma opinião pessoal da professora. Além disso, cabe ressaltar que a estimativa era uma projeção que considerava o tempo total da pandemia, e não o número de pessoas mortas na Venezuela naquele momento, conforme dá a entender o Estado de Minas. O Estado de Minas quer convencer seus leitores de que o número de pessoas mortas pelo coronavírus é 3 mil vezes maior que o anunciado pelo governo, o que é um grande exagero. No Brasil, por exemplo, embora a questão da subnotificação de mortos seja grave, distintas matérias publicadas pelo O Globo e pela Rede Brasil Atual, indicam que o número estimado de mortos não chega sequer ao dobro. De acordo com a Rede Brasil, no Brasil o número de mortos pode ser até 27% maior, isto é, aproximadamente um quarto. A matéria citada neste parágrafo foi publicada igualmente pelo jornal El País que contém a seguinte manchete: “Venezuela reportó 10 muertes por COVID-19; HRW y Johns Hopkins dicen que son al menos 30 mil”. A manchete do portal Argentino, El Cronista, foi ainda mais ousada: “Maduro ya suma 30.000 muertos: no tienen água y jabón para limparse según Human Rights Watch”. Notícias como estas precisam ser verificadas.
No dia 3 de julho, a Folha Uol publicou uma matéria com o seguinte título: “Maduro ordena prisão de colaboradores de Guaidó por 'roubo' de ouro da Venezuela”, no entanto, a ordem de prisão foi dada Ministério Público da Venezuela. No dia 17 de julho, a BBC, trouxe um estudo da Oxford afirmando que “mais da metade das pessoas famintas da América Latina já viviam na Venezuela” antes da pandemia. No entanto, de acordo com a ONU, em matéria publicada pelo El País no dia 20 de julho, 6,8 milhões de pessoas passam fome na Venezuela, 5,4 milhões no Haiti e 2,1 milhões na Guatemala. Ora, se somarmos a quantidade de pessoas famintas no Haiti e na Guatemala, estes números já ultrapassam os da Venezuela. Neste sentido, não é correto afirmar que “mais da metade das pessoas famintas da América Latina já viviam na Venezuela” antes da pandemia. Quando os números dos demais países latino-americanos são somados, os números apresentados pela BBC se distorcem ainda mais. A Venezuela possui apenas 30 milhões de habitantes e a América Latina, como um todo, 625 milhões.
Considerando o que foi exposto até aqui, é possível observar que para verificar a confiabilidade das informações sobre a Venezuela não basta apenas averiguar se a matéria foi publicada por algum portal supostamente confiável. É preciso, no mínimo, questionar os dados, cruzar informações, analisar as fontes citadas e conferir as frases que soam absurdas e sensacionalistas.
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