A partir do reajuste tarifário de SP em meio à pandemia, especialistas avaliam os processos de privatização no Brasil
Desde o dia 4 de julho, o custo da energia elétrica que chega na casa de 18 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo ficou em média 4,23% mais caro, o que deve refletir nas contas dos paulistas nos próximos meses. Isso se deve à autorização da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para a distribuidora italiana Enel São Paulo, antiga Eletropaulo, colocar em prática novas tarifas. O objetivo do reajuste, segundo uma nota da empresa enviada ao Brasil de Fato, é "obter o equilíbrio das tarifas com base na remuneração dos investimentos das empresas", além cobrir as “despesas efetivamente reconhecidas pela Aneel".
O reajuste é esperado anualmente nos aniversários de concessão às empresas distribuidoras, explica Wilson Marques de Almeida, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo (Sinergia). O processo de concessão do setor elétrico da região metropolitana de São Paulo à Enel, por exemplo, foi concretizado no dia 4 de julho de 2018. Todos os anos, nesta mesma data, a tarifa energética deve ser reajustada.
Por se tratar de um dispositivo previsto no contrato de concessão, não há como a população recorrer do reajuste judicialmente ou junto à empresa, mesmo diante de condições adversas e inéditas como a pandemia de covid-19, que intensificou a crise econômica brasileira.
"É fruto do processo de privatização, dos contratos de concessão das empresas privatizadas, (...) determinando que o equilíbrio econômico e financeiro da concessionária deve ser mantido”, explica Almeida, para quem “acima de qualquer crise de saúde, qualquer crise, que a gente possa enfrentar, a Aneel privilegia a manutenção do equilíbrio econômico e financeiro das empresas”.
O que o representante do Sinergia propõe é que há uma correspondência inevitável entre o aumento da tarifa energética e a privatização do setor elétrico. A narrativa é endossada por Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP) e Diretor Executivo da Petrobras, entre 2003 e 2007, durante os governos Lula. O professor explica que periodicamente há uma revisão tarifária que representa um repasse dos custos aos clientes, de acordo com o tipo de contrato que foi feito na privatização.
Em algumas regiões do país, no entanto, o aumento praticado no reajuste tarifário por empresas privatizadas não condiz com a realidade do serviço prestado nem com o aumento do Índice Geral de Preços (IGP), que mede a inflação em todo o território brasileiro. Uma pesquisa Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc), divulgado em setembro de 2018, por exemplo, mostra que o preço da energia aumentou 85,8% no Brasil, entre 2008 e 2017, enquanto a inflação subiu 71,5%.
O mesmo estudo também aponta para uma tarifa média brasileira superior à praticada em outros países: 127,3% maior que a dos Estados Unidos, 94,9% em relação ao Canadá e 9% superior do que a da Alemanha. Nesse mesmo quadro, segundo o ranking de tarifas do Global Petrol Prices de 2019, o Brasil possui a 37ª tarifa energética mais cara do mundo, entre 110 países.
A qualidade só piorou.
Para Sauer, aliado a outras constatações, isso mostra que, quando a Aneel deveria fiscalizar e verificar “quanto foi o incremento de produtividade, melhoria da gestão e repassar esses ganhos para os consumidores, a história brasileira mostra o contrário”. O marco do processo de privatização do setor, segundo ele, é o racionamento energético de 2001 – alavancado pela ausência de planejamento e investimentos em geração e transmissão de energia.
“A qualidade só piorou, os indicadores são que de lá pra cá houve uma demissão em massa de trabalhadores qualificados e a sua substituição por trabalhadores com regime de contrato precarizados, de empresas terceirizadas, falta de treinamento, incremento do número de acidentes com trabalhadores, inclusive mortes.”
Privatização: a "panaceia" dos problemas brasileiros
De acordo com Ildo Sauer, nunca se cumpriram as velhas promessas de que as privatizações permitiriam ao estado diminuir a dívida pública e ainda investir mais em educação, saúde e segurança. Mesmo diante do fracasso histórico, a estratégia é novamente defendida por Paulo Guedes e a equipe econômica do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), que sonham com a privatização de importantes empresas públicas, entre elas, a Eletrobras.
"Claramente o discurso feito a partir dos anos 1990, inspirado no Consenso de Washington de que é necessário privatizar e liberalizar para criar mercado competitivo [e melhorar os serviços], na verdade, nunca cumpriu a sua promessa.”
Por outro lado, explica Sauer, ao lado dos bancos, as empresas de energia foram as que obtiveram mais lucros em anos anteriores. E, por serem, em sua maioria, estrangeiras, todo o lucro é remetido ao país de origem das empresas sem ser reinvestido no Brasil.
“Nosso grande potencial hídrico cobra tarifas muito altas e drena todo esse lucro pra fora do país", assinala Grasiele Berticelli, integrante do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) do Rio Grande do Sul, que tem uma campanha contra o reajuste tarifário no setor elétrico. Nesse estado, onde dois terços da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) foi privatizada, em 2019, houve um reajuste tarifário de 5.22%, no dia 1º de julho.
Para Berticelli, que ratifica todas as consequências da privatização destacada por Sauer, o setor energético é “absolutamente estratégico para a soberania nacional”, uma vez que se trata de um serviço essencial. “Hoje a sociedade não vive e não se desenvolve sem o acesso pleno e de qualidade à energia elétrica”, e por isso, é “fundamental que essa riqueza toda esteja nas mãos do Estado, e considerando também um estado consciente, comprometido com o bem estar do povo que coloque as necessidades”.
Mais privatizações
Em Minas Gerais, em setembro de 2017, houve a privatização de quatro usinas hidrelétricas operadas pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), por R$ 12,1 bilhões: São Simão, Miranda, Jaguara e Volta Grande.
Segundo Jefferson Silva, coordenador geral do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na. Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro-MG), até agosto de 2017, as usinas produziam R$ 66,00 por megawatt-hora. Ainda no edital de venda das usinas, o governo federal ofertou R$ 142,00 por megawatt-hora para quem comprasse, o que significou um aumento do preço das usinas.
“Depois da privatização dessas usinas, também tivemos privatização das distribuidoras do setor elétrico do grupo Eletrobras no nordeste. Também foi apresentado um aumento chegando a 32% o reajuste da tarifa de energia nesses locais.”
Hoje, a Cemig inteira está em um processo de privatização depois que o governador Romeu Zema entrou no regime de recuperação fiscal, criado ainda no governo de Michel Temer, no qual os estados têm a suspensão da cobrança da dívida com o governo federal por três, respeitando o cumprimento das condicionantes, entre elas a privatização de estatais.
No Distrito Federal, o processo de privatização da Companhia Energética de Brasília (CEB) se arrasta desde pelo menos o governo de José Roberto Arruda, do Partido Liberal (PL), entre 2007 e 2010.
A possível venda da CEB, no entanto, pode trazer consequências diferentes das já apontadas. Segundo Fabiola Antezana, secretária de Política Externa do Sindicato dos Urbanitários do Brasília (STIU/DF) – que representa em Brasília os trabalhadores da CEB, Eletrobras, Furnas, Eletronorte e Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) –, o fornecimento de energia a famílias de baixa renda, o funcionamento dos prédios do governo federal e a Universidade de Brasília (UnB) dependem do caráter público da CEB.
“Só a UnB deve para a CEB algo em torno de R$ 200 milhões, porque não paga conta de energia. E a CEB, enquanto empresa estatal, não vai desligar uma das maiores universidades do País”, afirma Antezana, que inclui na lista órgãos federais que não pagam energia há anos.
“A gente não pode simplesmente desligar um ministério, como empresa privada faz. Qual é a nossa preocupação com a possível privatização da CEB? É que quem vier a assumir não mantenha essa condição para esses órgãos federais e até mesmo estaduais”, completa
Ela também cita a situação das famílias que vivem em regiões periféricas do DF, como a Ocupação Sol Nascente, em Ceilândia, considerada uma das maiores favelas da América Latina. Lá, mesmo sem escrituras ou titularidade dos lotes, a CEB continua a fornecer energia, após a Câmara Legislativa do DF decidir que isso era necessário.
Contramão
Diferente do Brasil, Estados Unidos, China e Canadá dão o tom da alternativa e mantêm o domínio do setor elétrico. Segundo Sauer, nos EUA, “a maior parte é controlada publicamente e pelo governo federal, em grande parte inclusive pelo próprio exército americano”. Lá, o Corpo de Engenheiros do Exército é o maior operador de energia elétrica do país, controlando as barragens de John Day, The Dalles e Bonneville.
Na China, a estatal Three Gorges Corporation controla a maior hidrelétrica do mundo, a Três Gargantas. No Canadá, o setor é controlado por companhias dos governos provinciais, semelhante aos governos estaduais brasileiros.
Edição: Rodrigo Chagas
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