21 de julho de 2020, 9h17
Por Felipe Porfírio Granito e Thaís Graziella Souza Barbosa
A luta para a demonstração de irregularidades nos contratos bancários é árdua. A jurisprudência admitiu, nessas espécies de contratos, a cobrança de juros acima de 1% ao mês, ao contrário do que determina o Código de Defesa do Consumidor e em que pese essas relações serem de consumo. Nesse sentido, foi editada a Súmula nº 382 pelo Superior Tribunal de Justiça, que prevê:
"Súmula nº 382: A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade".
O entendimento jurisprudencial se consolidou no sentido de: quando se tratar do Sistema Financeiro Nacional, não se aplicam as limitações previstas na Lei da Usura, devendo, portanto, ser observado o princípio da pacta sunt servanda ("o contrato faz lei entre as partes"), uma vez que o contratante, antes de assinar o contrato, teve prévio conhecimento de suas cláusulas e encargos.
Com esse entendimento, tem sido cada vez mais difícil evidenciar que há uma prática abusiva por parte das instituições financeiras e, por essa razão, ações revisórias, embargos monitórios e embargos à execução têm sido julgados improcedentes sem sequer ser feita uma análise mais profunda do caso concreto.
O que se esquece, entretanto, é de que, muitas vezes, o contratante precisa do crédito com urgência e acaba por aceitar os encargos contratuais impostos pelos bancos. O mesmo se diz quanto às demais cláusulas.
Sabe-se que esses contratos são típicos de adesão e, portanto, não admitem a discussão das cláusulas pelos contratantes, visto que as opções que lhe são dadas são: ou se aceita o contrato nos termos que estão redigidos ou o crédito fica inacessível.
E, valendo-se desse entendimento jurisprudencial, até o momento consolidado é que as instituições financeiras encontram brechas para praticar ilegalidades e cobrar mais do que foi estipulado em contrato.
Uma das ilegalidades refere-se à forma de pagamento. A maioria dos contratos prevê que o pagamento das parcelas será por meio de débito em conta e, se não houver o numerário disponível no dia do vencimento, ocorrerá o vencimento antecipado das demais parcelas, podendo o banco executar o contrato.
Entretanto, eis o que acontece na verdade: no dia do vencimento da parcela não há saldo positivo para cobrir o valor, seja total ou parcialmente. O banco, então, vale-se do limite de cheque especial ou crédito rotativo do correntista para quitar a parcela da operação, ato que ensejará a incidência de juros ainda maiores do que os previstos em contrato. Aliás, é notório que essas modalidades de crédito rotativo são as opções de crédito bancários com maior tarifação do mercado.
Em suma, nessa operação, a instituição financeira paga a parcela que lhe é devida, com o dinheiro dela própria, concedido como limite de utilização ao correntista, endividando cada vez mais o seu cliente.
Ou seja, nesse ponto pode-se verificar que a própria instituição financeira desrespeitou o seu contrato, uma vez que o correto era o vencimento antecipado da dívida.
Ora, as partes devem ser obrigadas "a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé", conforme determina o diploma civil, no artigo 422. E, por tal dispositivo, entende-se que uma das formas de cumprir a boa-fé é o respeito pelas cláusulas previstas no contrato por ambas as partes.
Todos os efeitos e as consequências que podem advir de uma obrigação contratual devem estar estipulados no negócio jurídico, de modo que qualquer ato praticado que o instrumento não previu deve ser considerado inválido e ineficaz e, portanto, anulado.
É certo que o contrato faz lei entre as partes, entretanto, no que pese as partes serem livres para pactuar da forma que bem entenderem, esse contrato deve respeitar a função social dos contratos (artigo 421, CC). Conforme ensina Carlos Roberto Gonçalves, o contrato tem que atender não só ao interesse dos contratantes, mas também de toda a sociedade:
"É possível afirmar que o atendimento à função social pode ser enfocado sob dois aspectos: um, individual, relativo aos contratantes, que se valem do contrato para satisfazer seus interesses próprios, e outro, público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato. Nessa medida, a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade — distribuição de riquezas — for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social" [1].
Podemos verificar, assim, que a prática das instituições financeiras de descontar as parcelas das avenças sem haver saldo positivo na conta, valendo-se dos limites de cheque especial ou do crédito rotativo, além de violar o próprio contrato firmado, viola também a função social.
Isso porque essa prática não promove a circulação de riquezas, conforme quis o legislador, mas coloca a parte contratante em desvantagem excessiva perante as instituições financeiras, que passam a cobrar os encargos desses limites de crédito, alavancando indevidamente o seu crédito.
Dessa forma, para que tal irregularidade seja constatada nos autos de uma ação judicial, devem ser solicitados pelo magistrado, caso a própria instituição financeira não tenha fornecido, os extratos bancários de todo o período que compreendem as cobranças.
Não obstante, cabe ressaltar, ainda, que o legislador, visando à possibilidade de haver irregularidade nas cobranças bancárias pelas instituições financeiras, criou uma sanção para o caso.
Por isso, se ao final da instrução processual restar incontroverso que o banco não foi fiel às suas cláusulas e demandou cobrança em valores excessivos, poderá ser compelido a devolver em dobro o montante indevidamente cobrado, como é o caso do §3º do artigo 28 da Lei 10.931/2004:
"Artigo 28 — (...)
§3º. O credor que, em ação judicial, cobrar o valor do crédito exequendo em desacordo com o expresso na Cédula de Crédito Bancário, fica obrigado a pagar ao devedor o dobro do cobrado a maior, que poderá ser compensado na própria ação, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos".
Portanto, uma vez que as instituições financeiras têm utilizado do manto das jurisprudências a seu favor para aplicar taxas superiores às previstas em contrato, por outro lado não pode o Poder Judiciário compactuar com tal prática.
O já mencionado artigo 422 do Código Civil dita que as partes devem se comportar de acordo com os princípios da probidade e da boa-fé tanto na conclusão como na execução do contrato, e tal regra de comportamento tem de ser válida também aos bancos.
Enquanto predominar o mero entendimento de que não são aplicáveis aos contratos bancários os limites da Lei da Usura e que deve ser respeitado o pacta sunt servanda, as instituições financeiras continuarão praticando ilegalidades e abusividades, aumentando de sobremaneira o seu crédito em detrimento do tomador do empréstimo.
Portanto, deve-se atentar ao fato de que a simples previsão de uma taxa no contrato não significa que esta esteja sendo realmente aplicada na prática quando do cálculo do valor do débito.
Uma vez que a parte contratante nesses contratos, na maioria das vezes, é hipossuficiente e não possui conhecimento técnico específico para trazer aos olhos do juiz ela própria a prova desses atos, é dever do Poder Judiciário trazer proteção a essas pessoas, seja física, por meio de um simples empréstimo pessoal, ou jurídica, em cédulas de crédito bancário, determinando a realização da perícia contábil e, constatando-se a abusividade, aplicar às instituições financeiras as sanções pertinentes, as quais possuem caráter reparatório e educativo para evitar a reincidência das abusividades.
[1] Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais, v. III, 10ª ed. São Paulo: Saraiva: 2013, p. 26.
Felipe Porfírio Granito é advogado, sócio do escritório Granito, Coppi, Boneli e Andery Advogados (GCBA Advogados Associados), mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Paulista de Magistratura (EPM) e professor universitário.
Thaís Graziella Souza Barbosa é especialista em Direito Processual Civil pela PUC-Campinas, advogada no escritório Granito, Coppi, Boneli e Andery Advogados (GCBA Advogados Associados).
Revista Consultor Jurídico, 21 de julho de 2020, 9h17
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