Desrespeitando regimento, policiais militares da ativa convocam para atos pró-Bolsonaro; procuradores tentam coibir ação
LUIGI MAZZA
03set2021_15h52
ILUSTRAÇÃO: CARVALL
“DIA 07 VAI SER GIGANTE! Todo o Piauí mobilizado em apoio à DEMOCRACIA, em defesa da nossa LIBERDADE e em apoio ao nosso presidente”, escreveu Diego Melo em suas redes sociais, no começo da semana. Major da ativa na Polícia Militar do Piauí e presidente da associação de oficiais militares do estado, ele tem 18 mil seguidores no Instagram e 40 mil no Facebook. No ano passado, se licenciou da PM para ser candidato a prefeito de Teresina pelo Patriota, mas teve apenas 3% dos votos. Assim que passou a eleição, Melo voltou à ativa, mas não abriu mão das postagens em favor do governo Bolsonaro. Nos últimos dias, elas vêm se intensificando, na medida em que apoiadores do presidente tentam inflar as manifestações marcadas para o feriado da Independência. “Vai ser o maior ATO PATRIÓTICO dos últimos 50 anos no Brasil!”, reforçou o major, convocando seus seguidores para ir às ruas. “Eu vou participar do ato em Teresina. E você?” Em outra postagem, ele se referiu ao próximo dia 7 de setembro como a “2° Independência do Brasil”.
O major Melo não se constrange pelo fato de ser, ao mesmo tempo, policial da ativa e militante político, embora esse comportamento seja considerado ilegal por juristas e promotores. Nas redes, já participou até de live com o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio. “O militar é um ser humano, isso é normal, todos têm o direito de exercer sua cidadania”, justificou à piauí. “A Constituição me restringe o direito de filiação partidária, mas na folga posso exercer meu direito de manifestação. Isso não é crime, não fere a lei. Apoio quem eu acho que devo. Sou fã do presidente, acho que ele está fazendo um trabalho belíssimo.”
A participação de militares da ativa em atos políticos vem sendo contestada por promotores em vários estados com base nos regulamentos disciplinares das corporações, que proíbem manifestações de cunho político-partidário. Também é motivo de preocupação dos governadores, que temem uma possível insubordinação das polícias. O caso mais emblemático até aqui foi o do coronel da PM de São Paulo Aleksander Lacerda, que, conforme revelou o Estadão, fez uma série de postagens convocando a população para o ato de Sete de Setembro e atacando rivais políticos de Bolsonaro. Após a reportagem ser publicada, o governador João Doria afastou Lacerda do comando do policiamento em Sorocaba (SP). Em seguida, pressionada pelo Ministério Público do estado, a PM abriu um inquérito para investigar se o coronel feriu o Código Penal Militar ao criticar abertamente o governo ao qual está subordinado. O MP também questionou se a PM planejou “ações para impedir que policiais militares se valham da condição de militar para participar de ato político-partidário” no feriado de Sete de Setembro.
“As punições nesses casos devem ser severas e devem ser públicas, para que o soldado, o cabo, o sargento, o capitão ou qualquer outro não fique com a impressão de que há impunidade”, defende o coronel da reserva da PM Glauco Carvalho, ex-comandante do policiamento da cidade de São Paulo. Para ele, um policial que se manifesta em defesa de determinado grupo político põe toda a Polícia Militar em descrédito. “Você compromete uma instituição que é de Estado com a política de grupo A, B ou C. Isso não pode acontecer.”
Outros estados vêm adotando ações preventivas. Nesta quinta-feira (2), o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios recomendou ao comando da PM e à Secretaria de Segurança Pública que seja “expressamente proibida a participação de policiais militares da ativa, que não estejam em serviço, nas manifestações políticas do dia 7”. Na semana passada, no Ceará, a Procuradoria de Justiça Militar pediu à PM e ao Corpo de Bombeiros que impedissem a participação de militares em atos políticos quando estivessem fardados ou em serviço. O Ministério Público do Rio de Janeiro, por sua vez, abriu inquérito para apurar a adesão dos policiais às manifestações.
No Piauí, onde o major Diego Melo vem se posicionando abertamente em favor dos atos bolsonaristas, a reação até agora foi tímida. No último dia 20, o comando da PM no estado publicou uma portaria proibindo reuniões e atos políticos dentro das unidades da polícia. O próprio major reconhece que a portaria não impacta os atos marcados para o dia 7. “Não vejo nenhuma influência dessa publicação, a não ser que haja um desvirtuamento do que está escrito.”
Para o coronel da reserva Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado-Maior da PM do Rio, os argumentos listados pelo major Melo para participar dos atos não têm cabimento. “É falacioso dizer que, estando de folga, não tem problema se manifestar. Na hora da folga ele devolve o porte de arma?”, questiona Rodrigues. “Um policial não pode se comparar a um cidadão comum. Ele tem função pública, e todas suas ações têm que ser de interesse coletivo, não particular. O policial que defende os atos do dia 7 já põe em dúvida qualquer ação que ele venha a tomar caso um grupo de bolsonaristas eventualmente cometa algum crime.”
O Regimento Disciplinar da PM do Piauí considera uma transgressão “manifestar-se, publicamente, a respeito de assuntos políticos ou tomar parte, fardado, em manifestações da mesma natureza”. Segundo a assessoria da polícia, no entanto, o código deixou de vigorar recentemente, já que há um novo regimento tramitando na Assembleia Legislativa do estado. Até que seja aprovado, valem as regras de conduta aplicadas às Forças Armadas – que, em seu estatuto, proíbem “quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político”.
Por meio de uma nota breve, a PM do Piauí afirmou apenas que “todo cidadão tem direito de se manifestar”, que a lei veda “determinadas condutas especificamente aos militares”, e que “excessos ou condutas tipificadas no Código Penal Militar”, se identificados, poderão ser levados à Justiça Militar.
Convocações para os atos de Sete de Setembro feitas por PMs vêm proliferando nos últimos dias. No Rio de Janeiro, grupos policiais no WhatsApp têm espalhado o vídeo em que um major da reserva se refere a Bolsonaro como o último bastião contra o comunismo global. “Se agora, dia 7, eu e você não entendermos isso e colocarmos a nossa cara, a nossa vida pelo Brasil”, disse o major, “então você não entendeu nada. Você não merece ser brasileiro.” Em outro vídeo, um coronel aposentado da PM do Rio recomenda ao ministro do STF Alexandre de Moraes que “suma do Brasil, pois a sua hora certamente vai chegar”.
Levantamento feito por amostragem pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que, entre 2020 e 2021, a presença de PMs em redes bolsonaristas radicais aumentou 24%. Até o ano passado, 17% dos policiais militares participavam desses grupos na internet. O número subiu para 23% este ano. São considerados grupos radicais bolsonaristas, segundo o Fórum, aqueles que têm “participação expressiva de seguidores de páginas declaradas fãs e militantes do presidente Jair Bolsonaro e sua visão de mundo”.
O coronel Rodrigues acredita que, apesar da adesão de grupos de policiais às manifestações, as redes não refletem a realidade, e não há possibilidade de um golpe no dia 7. “A análise que eu faço neste momento é: a adesão ao governo diminuiu bastante, embora a mobilização e tentativa de cooptação estejam mais altas agora”, explica. “Me parece que está havendo um esforço de mobilização maior do que antes, e isso se deve ao processo de desgaste do Bolsonaro, que é notório. Parte da sociedade e da imprensa às vezes superestimam esse risco de ruptura, por causa da sensibilidade às redes sociais. Mas nem sempre as redes refletem o mundo real.”
O coronel Carvalho concorda com o prognóstico. “Há uma parcela bem razoável das PMs e das Forças Armadas com perfil acentuadamente conservador. É uma constatação, não um julgamento moral. O bolsonarismo que transita dentro desse conservadorismo é um grupo menor, radical, reacionário, golpista e arbitrário. Então o que acontece é que parte do efetivo da PM se identifica com o Bolsonaro, tem simpatia por ele, mas não seria capaz de uma insurgência em nome do presidente. Não vejo risco, hoje, de uma empreitada golpista.”
Fonte: REVISTA PIAUÍ
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