5 de setembro de 2021, 8h00
A deflagração da pandemia Covid-19 no Brasil — formalmente reconhecida pelo Ministério da Saúde como Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) pela Portaria nº 188/GM/MS, em 3 de fevereiro de 2020 — inaugurou um "Direito Administrativo pandêmico", compreendido como conjunto de regras e princípios de aplicação especial, emergencial e transitória a todos os fatos, atos, contratos e relações envolvendo o público e o privado — em todas esferas federativas — decorrentes direta e indiretamente da pandemia em si.
Espera-se que as nuances desse novo Direito Administrativo pandêmico emergencial possam levar a um aprimoramento normativo, principiológico e dogmático, inclusive em virtude da incidência de critérios voltados ao pragmatismo, ao consequencialismo e à efetividade no Direito Público, na linha traçada pela Lei federal nº 13.665/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) [1].
A partir do referido contexto, no universo jurídico deu-se início a uma série de reflexões, prospecções e polêmicas as quais, concomitantes à catástrofe humanitária desencadeada em fases, passaram a ser enfrentadas pelo Direito.
O perscrutamento que nos interessa neste artigo de modo mais focado tende a ser enormemente maximizado no cenário pós-pandemia, quando o caos sanitário — esperamos — estiver razoavelmente controlado, embora já seja possível vislumbrar indícios suficientes de uma dramática realidade que começa a se impor: a responsabilidade civil do Estado em decorrência das deficiências ou excessos de enfrentamento ao coronavírus, o que poderá desencadear uma série de condenações da União Federal, estados e municípios no pagamento de indenizações das vítimas e familiares de vítimas da pandemia [2].
É possível observar, nos últimos meses, uma profusão de relatos e notícias que retrata esse novo cenário, e não estamos nos referindo aqui exclusivamente às quase 600 mil mortes ocasionadas em virtude da pandemia, muitas das quais, ao que tudo indica, poderiam ter sido evitadas, mas igualmente a pessoas que sobreviveram à Covid-19 e ficaram incapacitadas (síndrome do pós-Covid-19 ou Covid-19 longo).
Incluídas essas mortes e incapacitações de milhares de pessoas, o que haveria em comum entre elas e, por exemplo, associações de variados segmentos do comércio — cujas atividades econômicas foram drasticamente prejudicadas — e familiares de servidores públicos que adoeceram em serviço [3] [4]? Por certo, o que parece uni-los é justamente o fato administrativo referente à adequação, ou não, do enfrentamento público da pandemia — por exemplo demora excessiva e injustificada na oferta das vacinas — que redundou em graves e lamentáveis danos — de ordem patrimonial, moral e coletiva — estando tais danos (ou não) ligados por nexo de causalidade a ações ou omissões imputadas ao Estado.
Sem dúvidas, os impactos pandêmicos são múltiplos e afetam os indivíduos e a coletividade de modos distintos. Ademais, parece-nos imperioso endereçar que possivelmente grande parte das consequências negativas, no grau e larga extensão danosa testemunhadas por todos, apenas teria se materializado em virtude de condutas comissivas ou omissivas por parte do poder público — em todas as esferas federativas, frise-se. De fato, a conduta danosa do ente estatal pode advir de variadas frentes: desde a ausência ou ineficácia do dever de fiscalizar e coibir aglomerações (omissão), até a atuação orquestrada para vinculação da aquisição de vacinas ao percebimento de vantagem indevida (ação disfuncional) — temas que estão no radar das investigações já avançadas da CPI da Covid-19, em trâmite conclusivo no Senado Federal.
Independentemente da comprovação de dolo ou culpa, na linha do que prevê a teoria da responsabilidade civil objetiva, calcada na teoria do risco administrativo [5], o Estado brasileiro encontra-se às vésperas de assistir a um oceano de pedidos de indenização fundados na ação ou na omissão específica durante a pandemia. Isso porque, acima de tudo, esperava-se do Estado, por sua função primordial de zelar pelo bem comum, políticas públicas preventivas e de enfrentamento efetivo contra o avanço do coronavírus. Tal é o fundamento que pode ser extraído diretamente da Constituição Federal [6], em seu artigo 37, §6º, e do artigo 43 do Código Civil [7].
Como se sabe, estamos inseridos em um paradigma de sociedade de risco, caracterizada por uma maximização de riscos que demandam posturas mais veementes e proativas por parte do poder público; dessa forma, a responsabilidade do Estado passa por um processo expansivo que, ao fim e ao cabo, deve conferir efetividade ao direito fundamental à boa administração [8].
De antemão, é sabido que nem todas as pretensões dessa natureza tendem a prosperar no universo da responsabilidade extracontratual do Estado. Pedidos de indenização que se fundamentarem em prejuízos decorrentes de políticas públicas de quarentena e de distanciamento social, por exemplo, são dos mais problemáticos. Consideramos que uma diretriz geral para esses casos será o reconhecimento de que, mesmo diante da legalidade da atuação estatal comprovada e previamente alinhada à observância de parâmetros técnico-científicos nas normas que impuseram paralisação de atividades [9], ainda assim poderão ocorrer danos anormais e especiais a alguns segmentos econômicos, os quais, em tese, comportarão o dever estatal de indenizá-los em face de específicas situações. É possível, igualmente, que a pressão judicial sirva para eventualmente viabilizar outras pretensões de setores do mercado, a exemplo da ausência ou insuficiência dos benefícios fiscais concedidos (ou não) no transcurso da pandemia, como uma compensação possível às proibições obrigatórias de funcionamento dos estabelecimentos comerciais.
Ainda assim, será essencial a observância de cada caso concreto, individualmente, em função das particularidades e diferenças de cada norma restritiva editada por diversos Estados-membros e municípios da federação.
Contudo, tal cautela não pode levar à inobservância de variáveis consideráveis como as sobreditas características individuais de cada norma, além do cenário político marcado por altíssima polarização que poderá influenciar, inclusive, o entendimento particular que o magistrado terá frente ao caso concreto. À vista disso, as orientações dos tribunais superiores haverão de ser essenciais à prevenção de insegurança jurídica que possa se instalar no universo jurídico pós-pandêmico. Nesse pormenor, as recentes alterações promovidas na LINDB certamente trazem parâmetros decisórios e consequencialistas de Direito Público, conforme já exposto, que melhor habilitam o magistrado a decidir no caso concreto.
Por outro lado, a pretensão indenizatória pautada no atraso deliberado na aquisição e distribuição de vacinas, esta, sim, poderá encontrar terreno mais fértil, especialmente agravada pela eventualmente comprovada relação escusa entre agentes públicos e empresas privadas em esquemas de corrupção envolvendo o impulsionamento de fármacos e tratamentos sem eficácia garantida, em detrimento de imunizantes que já haviam sido adquiridos e aplicados ao redor do mundo [10].
Entendimento semelhante poderá advir das demandas que buscarem reparação por danos causados em virtude da negligência estatal decorrente de condições insalubres de trabalho e má distribuição de equipamentos de proteção individual (EPI), como máscaras adequadas e álcool em gel, aos agentes públicos.
Importa ressaltar que o Brasil não é o único lugar do mundo onde essa nova tendência pode ser observada: é o caso também, por exemplo, da Itália, onde foram movidas diversas ações judiciais coletivas referentes à má gestão da pandemia, que resultou em mortes precoces e caos sanitário. O fundamento utilizado é o de que governos regionais, como o da Lombardia, foram negligentes na gestão da pandemia e retardaram ao máximo a implementação da quarentena e confinamento na região [11].
Mas nós vamos além em nossos questionamentos: será possível buscar a responsabilização do Estado brasileiro pelo planejamento deficitário ou omissivo no enfrentamento à Covid-19? Isto é: a responsabilidade pode ser reconhecida com base na ideia de que o poder público deveria prospectar cenários, em atenção ao avanço do coronavírus no exterior e às recomendações de especialistas, e, assim, melhor se preparar e prevenir que situações semelhantes e inevitáveis ocorressem em solo brasileiro [12]?
Outros questionamentos podem interessar justamente à parte adversa: em que medida os efeitos da pandemia podem constituir hipótese de força maior? É razoável alegar culpa exclusiva de vítima que se contaminou por estar presente em aglomeração que não foi coibida pelo Estado? Ainda: como atribuir a compensação de culpas e como arbitrar o grau de responsabilidade que deve ser imputado ao poder público e ao lesado que contribuiu para o dano?
Inúmeras são as reflexões decorrentes da problemática enfrentada no presente artigo, sem que seja possível, ainda, predefinir standards e parâmetros decisórios aplicáveis à casuística. No entanto, de antemão, podemos concluir que um dos temas mais incandescentes do Brasil pós-pandemia seguramente será a responsabilidade civil do Estado ou Direito de Danos relativo às ações e omissões estatais perpetradas pelos entes públicos no transcurso do enfrentamento da pandemia da Covid-19.
[1] Nesse sentido, cf. OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Direito Administrativo Pandêmico: transformações e influências jurídico-normativas em tempos de Covid-19, a ser publicado no próximo Boletim Direitos na pandemia n. 15 do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA, futuramente disponibilizado em https://cepedisa.org.br/.
[2] A temática foi enfrentada em RÊGO MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do et al. (Coords.), Coronavírus e responsabilidade civil: impactos contratuais e extracontratuais. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.
[3] O GLOBO. Perda na pandemia: bares entram na Justiça em busca de indenização e atraem outros setores. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/perda-na-pandemia-bares-entram-na-justica-em-busca-de-indenizacao-atraem-outros-setores-25058329?utm_source=aplicativoOGlobo. Acesso em: 24 ago. 2021.
[4] O GLOBO. Família de PM vítima da Covid-19 quer indenização do Estado do Rio após infecção durante o serviço. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/familia-de-pm-vitima-da-Covid-19-quer-indenizacao-do-estado-do-rio-apos-infeccao-durante-o-servico.html?utm_source=aplicativoOGlobo&utm_medium=aplicativo&utm_campaign=compartilhar. Acesso em: 24 ago. 2021.
[5] Nesse sentido: "Não há dúvida de que a responsabilidade objetiva resultou de acentuado processo evolutivo, passando a conferir maior benefício ao lesado, por estar dispensado de provar alguns elementos que dificultam o surgimento do direito à reparação dos prejuízos, como, por exemplo, a identificação do agente, a culpa deste na conduta administrativa, a falta do serviço etc. [...] Diante disso, passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior". In: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
[6] In verbis: "Artigo 37, §6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".
[7] In verbis: "Artigo 43 - As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo".
[8] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Responsabilidade civil do Estado: reflexões a partir do direito fundamental à boa administração pública. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.97, n.876, p. 44-51, out. 2008.
[9] Nesse sentido: "Como a finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde". SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6.341/DF. Rel. Min. Marco Aurélio.
[10] UOL. Vitamedic gastou R$ 717 mil para divulgar kit Covid, diz executivo a CPI. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/08/11/medicos-pro-governo-foram-patrocinados-por-empresa-que-lucrou-com-kit-Covid.htm. Acesso em: 26 ago. 2021.
[11] NEXO. A onda de processos movidos por vítimas da pandemia na Itália. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/13/A-onda-de-processos-movidos-por-v%C3%ADtimas-da-pandemia-na-It%C3%A1lia. Acesso em: 29 ago. 2021.
[12] Nesse sentido: "Se compararmos as curvas da Covid-19 na Europa e no Brasil, é possível reparar que estamos alguns meses atrasados nos eventos [...] De acordo com os especialistas [...], o Brasil apresenta falhas nesse momento de preparação para conter uma eventual segunda onda da Covid-19". In: BBC BRASIL. Covid-19: as lições que Brasil pode aprender com segunda onda de casos na Europa. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54714682. Acesso em: 29 ago. 2021
Gustavo Henrique Justino de Oliveira é professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da USP e no IDP (Brasília-DF), árbitro, consultor, advogado especialista em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.
Matheus Teixeira Moreira é advogado e coordenador jurídico no escritório Justino de Oliveira Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 5 de setembro de 2021, 8h00
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