‘A Igreja excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único nazista’
por Marta Fantini, produtora e apresentadora do programa “Le Brésil en Noir & Blanc”, na Rádio Campus Bordeaux, França.
A
polêmica sobre a decisão do arcebispo de Olinda e Recife, Dom José
Cardoso Sobrinho, que excomunhou os médicos que realizaram o aborto no
episódio da menina estuprada pelo pai ganhou repercussão internacional.
Para o filósofo francês Michel Onfray, a decisão é coerente com o pensamento oficial da Igreja Católica de hoje:
”A ideologia da Igreja é reacionária, conservadora e insuportável. A
Igreja apresenta indignações seletivas. Durante e após a II Guerra
Mundial, ela excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único
nazista”, critica Onfray.
O filósofo francês Michel Onfray,
iniciador da Universidade Popular de Caen , autor de 51 livros,
traduzidos em mais de 20 línguas, e de uma coleção de 12 CDs, aposta na
Filosofia como meio de vencer o lado irrracional do ser humano:
“Apesar
do sofrimento da existência humana, que sempre existiu e existirá, é
preciso viver em pé, com dignidade e não ajoelhado. O filósofo tem a
obrigação de construir um movimento universal de elevação da condição
humana”.
Por ocasião da sua passagem por Bordeaux, para o
lançamento de seu último livro, “Contra-história da Filosofia: as
radicalidades existenciais” , Michel Onfray nos concedeu uma entrevista
sobre o lastimável episódio do aborto terapêutico, ocorrido em Recife.
Marta Fantini: O
sofrimento de uma família, que deveria permanecer na esfera privada,
acabou se tornando um evento midiático de repercursão internacional,
devido a uma punição da Igreja Católica que parece sair das “entranhas
da Idade Média”: a excomunhão.
Michel Onfray (na pintura): A decisão parece da Idade Média, mas ela está inscrita no corpus
do pensamento oficial da Igreja de hoje. Não se pode ignorá-la: a
Igreja diz claramente que o aborto é proibido, que é um pecado e o
clero aplica o que a Igreja professa. Na minha opinião, não há
incoêrencia entre a excomunhão, que é insignificante, e a ideologia da
Igreja, que é reacionária, conservadora e insuportável.
A
Igreja apresenta indignações seletivas. Durante e após a II Guerra
Mundial, ela excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único
nazista. Hitler nunca foi excomungado assim como os ideólogos do
nazismo e os membros do partido. A Igreja somente demonstra o que ela
foi e é, colocando-se sempre ao lado dos fortes, dos poderosos, da
colaboração. Ela não resiste. Ela não se preocupa com os pobres. Ela
não demonstrou misericórdia a este ser frágil que foi violentado pelo
padrasto. Ela não apoiou esta menina. Ao contrário, ela ainda a
afligiu, considerando-a até culpada e responsável.
Eu li na
imprensa francesa que, para o bispo de Recife, o estrupo é menos grave
que o aborto. Quando alguém lhe perguntou porque o padastro não foi
excomungado, ele respondeu que “dar a morte é mais grave”. Dar a morte
a um feto é mais grave que o estupro e a pedofilia? O feto é um ser
potencialmente vivo que está programado para se tornar uma pessoa, mas
não é uma pessoa. Antes que se torne um ser humano, pode-se praticar o
aborto, e sobretudo, nestas condições, parece-me um ato evidente.
MF : Como explicar esta insistência em preservar a vida se, por outro lado, a Igreja sempre legitimou a violência dos Estados?
MO:
Ela pretende defender a vida, mas ela não a defende. Onde está a
dignidade nesta aventura? O que se pode chamar de vida? Onde ela se
encontra? Numa manifestação biológica? Neste caso a simples ejaculação,
na hora da masturbação, é um genocídio! É preciso parar com isso. O
espermatozóide é matéria viva. Neste caso, ela deveria excomungar todos
os homens que se masturbam, pois os espermatozóides vão terminar no
fundo de um vaso sanitário e não na destinação prevista que é a
fecundação do óvulo! É um delírio total esta posição da Igreja que se
diz defensora da vida e, ao mesmo tempo, justifica a pena de morte no
“Catecismo da Igreja Católica”.
Eu até ganhei uma caixa de
champanhe numa aposta com alguém que não acreditava que isso fosse
possível! No “Catecismo da Igreja Católica” está escrito,
explicitamente, que, em alguns casos extremos, pode-se aplicar a pena
de morte. Sinto muito, é uma questão de princípio: não se defende a
pena de morte quando se é cristão. E ainda querem que acreditemos que
defendem a vida quando se defende, ao mesmo tempo, a pena de morte?
A
Igreja defendeu a vida ao dar a bênção às bombas atômicas que
explodiram em Hiroxima e Nagasaki? Ela defendeu a vida ao dar a bênção
às armas que serviram para assassinar os republicanos espanhóis durante
a Guerra da Espanha?. A Igreja pretende defender a vida, mas o que ela
defende é o poder em vigor. Na verdade, o que fascina a Igreja é a
morte. É a morte que lhe interessa.
MF: O
que a imprensa francesa não citou, nos inúmeros artigos sobre este
trágico evento, é que a Igreja, no Brasil, enfrenta uma queda de braço
com o Estado. A República democrática brasileira se moderniza: a
pesquisa sobre as células troncos foi liberada, a legalização do aborto
está em discussão, a população se beneficia da distribuição gratuita de
preservativos e pílulas do dia seguinte. Como explicar que esta Igreja,
que não consegue acompanhar a evolução dos costumes morais e o
progresso da Ciência, está se tornando cada vez mais fundamentalista?
MO :
A questão não é o que ela está se tornando, o problema é que ela sempre
foi e é fundamentalista. Acredito que, ultimamente, a Igreja está
tentando colocar as coisas no seu eixo original. Com o recente retorno
do islamismo, no mercado intelectual, ideológico e espiritual, ela diz
que nem tudo está perdido para as religiões. Ela constata que,
finalmente, ainda existem pessoas que acreditam em Deus e que em nome
de Alá são capazes de morrer por ele, de lutar por ele, de viver por
ele, que se comportam, na existência de uma vida cotidiana, de acordo
com os preceitos que teriam sido ditados por ele. Penso que a Igreja
está numa lógica de reconquista e que é o momento ideal de avançar seus
peões. O papa Bento XVI, começou a avançá-los, por exemplo, com a
reabilitação dos bispos negacionistas. Quando percebeu que esta
estratégia estava provocando muito debate na imprensa internacional,
ele recuou.
Acredito que há uma espécie de desejo de reconquistar a fé em escala planetária. Eu li no Le Figaro,
o único jornal disponível no hotel, uma página inteira consagrada ao
Papa e à carta que ele enviou aos bispos. Ele cita que o desejo de São
Pedro era fazer proselitismo. O cristianismo e o número 1 dos cristãos,
Bento XVI, concluem: se o Islã faz proselitismo e obtem resultados
positivos, porque a Igreja Católica também não o faria? É uma maneira
de reconquistar o terreno perdido, em todos os países.
É o que aconteceu na Itália. Recentemente, houve uma eleição ultra politizada, uma espécie de referendumsobre
a questão do aborto, do reembolso deste tipo de intervenção, de células
troncos, etc. A Igreja pediu a abstenção. Uma boa tática que se
revelaria na hora da contagem dos votos, uma prova que a abstenção
seria a Igreja, com um número considerável de vozes. A era de João
Paulo II, da mediatização do tipo «rock star» e das viagens
planetárias, terminou. O eucumenismo, da época em que se dançava com os
aborígines, na Austrália, como pretexto de comunhão com o sagrado, tudo
isso acabou. O único objetivo da Igreja atual é o retorno à antiga boa
fé católica apostólica romana. Neste período de niilismo generalizado,
ela se impõe uma posição mais rígida. A suspensão da excomunhão dos
bispos negacionistas, o que se passou na Itália e no Brasil, são, para
mim, sinais convergentes.
MF : Com a
crise, o fundamentalismo pode piorar no seio das três grandes religiões
monoteístas? A micro resistência, à qual você sempre faz alusão, não
seria uma esperança como foi a Teoria da Libertação ou os Movimentos
Pastorais na América Latina?
MO: As
microresistências são a única solução possível. Eu penso que há
cristãos que não estão de acordo com esta opção de direita à extrema
direita da Igreja. Na “Golias”, uma excelente revista, publicada por
católicos franceses de esquerda, pode-se encontrar artigos extremamente
inteligentes. No último número, por exemplo, publicaram análises
interessantes sobre o caso do bispos negacionistas. Há sempre uma
categoria de católicos de esquerda com a qual se pode contar. Há sempre
alguém que não aceita o inaceitável, que não se submete. Há esta
esperança e há também a esperança no avanço do combate ateu.
Nos
Estados Unidos e na Inglaterra as obras sobre o ateísmo fazem muito
sucesso. «O Tratado da Ateologia» foi best seller na Austrália, Espanha
e Itália, quer dizer, se fizermos avançar o combate ateu, obteremos
soluções. Evidentemente, sem repetir o erro do «ser ateu» do século
XIX: anticlerical , mas fabricante de uma espécie de igreja atéia, de
clero ateu. Seria o pior que poderia acontecer, ou seja, querer
destruir, utilizando os mesmos métodos. É preciso avançar argumentos,
debater questões como as dos tratamentos paliativos, da eutanásia… A
França está com muito atraso em relação a estes assuntos. Porque a
eutanásia não avança, mas sim os tratamentos paliativos? Porque o lobby
cristão é potente para interferir nas decisões dos deputados e dos
senadores e impedir que a lei sobre a eutanásia seja votada?
MF:
Seus livros estão traduzidos em mais de vinte línguas e a venda de seus
CDs atingiram 50 mil exemplares. Parece-me um número impressionante, em
se tratando de conteúdo filosófico. Este sucesso seria a prova que a
Filosofia preenche um vazio deixado pela religião que já não satisfaz a
busca espiritual do ser humano do século XXI ?
MO:
Minha proposta é sair da era religiosa e teológica para entrar na era
filosófica. É preciso parar de projetar a vida em universos
inexistentes para construir a sua existência. Devemos nos contentar com
este mundo real, examinar o que podemos fazer de nossas existências
nesta vida que é pós moderna, pós industrial, pós fascista, pós
comunista e pós cristã, seguramente.
O que podemos fazer num
período de niilismo? Somente a Filosofia poderá trazer as respostas.
Gostaria que os livros de catecismo fossem substituídos, nas escolas,
por ateliers de Filosofia, gostaria que todos nós refletíssemos juntos
para, pelo menos, provocar a vontade de adquirir conhecimento.
Sobretudo para aqueles que ficaram às margens, pois um dia, alguém
disse que a Filosofia não era para eles; que ela foi feita para a
elite, para a aristocracia e quem não fizesse parte dela, não teria
direito a ela.
O desejo da filosofia é o desejo da sabedoria,
da necessidade de ética, de reflexão e de moral. Almejo uma Filosofia
que esclareça, que simplifique sem se empobrecer. Quando me deparo, nos
meus cursos da Universidade Popular de Caen, com anfiteatros lotados,
com mais de mil pessoas, com transmissão em vídeo no saguão, para
aqueles que não conseguiram entrar, eu constato que é possível, que a
Filosofia poderá vencer o irracional.
Fonte: PAULOPES WEBLOG
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