Por Ronaldo Batista Pinto
Chamou a atenção dos operadores do Direito e, sobretudo, dos que militam no âmbito criminal, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em aresto do qual se extrai o seguinte trecho:
“Quanto à afirmada ilegalidade da prisão em flagrante, ante a ausência de imediata apresentação dos pacientes ao juiz de Direito, entendo inexistir qualquer ofensa aos tratados internacionais de direitos humanos. Isto porque, conforme dispõe o artigo 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais. No cenário jurídico brasileiro, embora o delegado de polícia não integre o Poder Judiciário, é certo que a lei atribui a esta autoridade a função de receber e ratificar a ordem de prisão em flagrante. Assim, in concreto, os pacientes foram devidamente apresentados ao delegado, não se havendo falar em relaxamento da prisão. Não bastasse, em 24 horas, o juiz analisa o auto de prisão em flagrante” (TJ-SP — HC 2016152-70.2015.8.26.0000 — relator Guilherme de Souza Nucci, j. 12.05.2015).
Ressalte-se, de plano, que tal decisão é anterior ao Provimento 03/2015, da Presidência do Tribunal de Justiça e Corregedoria-Geral da Justiça daquele tribunal, datado de 22 de janeiro de 2015 e que instituiu, no âmbito estadual, a chamada audiência de custódia.
Pois bem. Pelo teor da decisão, tem-se que a apresentação do preso ao delegado de polícia atenderia ao requisito exigido pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que, em seu artigo 7º, 5, dispõe que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais” (grifamos).
A despeito de entender que a realização da audiência de custódia — com a qual concordamos — esteja a merecer algum aprimoramento para sua aplicação prática (e a edição de uma lei nesse sentido, a substituir provimentos, seria bem-vinda), tenho como extremamente forçado equiparar a figura do juiz à do delegado de polícia, ambos considerados como “autoridades”, para fins de apresentação do preso.
A alusão formulada no acórdão, quanto à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), foi, sob minha ótica, totalmente equivocada. É que a CADH, no artigo 7º, 5, dispõe que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”. Redação idêntica tem o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos: “Todo o indivíduo preso ou detido sob acusação de uma infração penal será prontamente conduzido perante um juiz ou uma outra autoridade habilitada pela lei a exercer funções judiciárias” (artigo 9º, 3). Ambos os diplomas, como é sabido, foram ratificados pelo Brasil.
Não se trata, pois, de qualquer autoridade, como sugeriu a decisão, mas de autoridade legalmente autorizada ao exercício de função judicial. Creio não ser o caso do delegado de polícia. Haverá quem indague, em sentido contrário, em que consistiria essa “outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”. É difícil afirmar, já que os pactos possuem uma abrangência mundial, devendo atentar, bem por isso, a realidade interna de cada nação que o subscreve. Decerto que alguns países devem contar com uma autoridade que, embora não seja juiz, exerça as funções judiciais legalmente autorizado a tanto. Mas não precisamos ir longe. Em nosso país, mais precisamente no estado do Rio Grande do Sul, há ainda a figura do pretor, embora a Lei Estadual 14.235/13 preveja a extinção de tais cargos na medida em que forem se vagando. Tratava-se antes da vigência da mencionada lei gaúcha que os equiparou aos juízes, e uma autoridade que, embora não sendo um magistrado de carreira, exercia funções equiparadas ao juiz. Não tenho dúvida em afirmar, assim, a inexistência de qualquer impedimento no sentido de que, no estado do Rio Grande do Sul, eventualmente implantada a audiência de custódia, seja o preso apresentado a um pretor. Não será o caso, em relação às autoridades policiais, das demais unidades da federação que implantarem a mencionada audiência (já o fez, também, o estado do Espírito Santo).
Longe de se pretender estabelecer com essa premissa qualquer demérito à função do delegado de polícia. Com efeito, ele possui, obrigatoriamente, formação jurídica e assume as funções que lhe são inerentes mediante a aprovação em concurso público, tal qual juízes, promotores e demais membros das chamadas carreiras jurídicas. Inexiste, outrossim, qualquer subordinação hierárquica entre o delegado de polícia, o promotor de Justiça e o juiz de Direito. Essas impressões são reforçadas pela Lei 12.830/2013, que, em seu artigo 2º, identifica as funções de polícia judiciária como de natureza jurídica e determina que ao delegado de polícia seja dispensado “o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados” (artigo 3º).
Bem por isso, já assentou no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quando da análise de uma prisão em flagrante, que "o delegado de polícia não tem função robotizada. É bacharel em Direito. Submete-se a concurso público. Realiza, na própria instituição, cursos específicos. Tem, na estrutura de sua função, chefias hierárquicas e órgão correcional superior. Não se pode, pois, colocar seu agir sempre sob a suspeita de cometimento de crime de prevaricação, caso não lavre o flagrante, principalmente quando esse seu agir pressupõe decisão de caráter técnico-jurídico, como é no caso do auto de flagrante. Está na hora, pois, mormente neste momento em que se procura alterar o Código de Processo Penal, de se conferir ao delegado de polícia regras claras e precisas para que o exercício de sua função não seja um ato mecânico, burocrático, carimbativo, dependente, amedrontado ou heroico, enfim, não condizente com a alta responsabilidade e dever que a função exige, até para que se possa cobrar plenamente essa responsabilidade que lhe é conferida e puni-lo pelos desvios praticados" (HC 370.792).
Daí a se concluir que atenderia aos termos das convenções internacionais, as quais aderiu o Brasil, a apresentação do preso à autoridade policial, parece que vai grande distância. Imagine-se, de resto, a situação na qual o preso experimente alguma violência perpetrada por agentes policiais. Ora, a apresentação do preso ao delegado de polícia certamente frustraria o objetivo da norma. Lembremos que o artigo 7º, inciso I do Provimento 03/2015, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, elenca que dentre as atribuições do juiz a quem é apresentado o preso, durante a audiência de custódia, encontra-se a determinação de “exame clínico e de corpo de delito do autuado”, a fim de apurar “possível abuso cometido durante a prisão em flagrante”. Nada disso restaria apurado caso a apresentação ocorresse à autoridade policial.
São as razões pelas quais identifiquei o equívoco da decisão.
Ronaldo Batista Pinto é promotor de Justiça no estado de São Paulo, mestre em direito pela Unesp e professor universitário.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2015, 6h41
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